Referência bibliográfica:

LIBANIO, João Batista. Crer num mundo de muitas crenças e pouca libertação. São Paulo: Paulinas, 2003.

Dentro de uma disciplina base como é a Teologia Fundamental, a obra de João Batista Libanio proporciona um despertar para a questão teológica. Toda a formação teológica dos que aspiram fazer teologia deve brotar de um local certo: das comunidades, dos movimentos e organizações da Igreja. E pelo fato de a Teologia Fundamental tratar de fundamentos, o livro apresenta-se como proposta de escavação, como se a teologia fosse um solo rico em que devemos escavar para encontrar as riquezas que estão sedimentadas neste solo.

Dessa forma, o livro está dividido em oito capítulos. E o grande tema em todos os capítulos é fundamentar a teologia. Para tal, o ponto de partida do problema teológico, e para que este esteja bem fundamentado, é buscar sua dimensão permanente e a conjuntura à qual ela se insere. A teologia é um instrumental para que o cristão tente dar respostas à sua fé. A fé cristã, em toda sua história, tem buscado esses esforços em relação a diversos pontos, controvertidos ou não. Analisando a história da fé cristã, a Modernidade é o período em que floresceu uma teologia apologética, pois sua conjuntura era de Reforma e de um racionalismo, o que levava à teologia, desse período, buscar respostas aos questionamentos vindos de tal contexto.

Assim, nesse primeiro capitulo, Libanio instiga aos que são estudantes de teologia (ou a quem vem a ler seu livro) a uma inquietação e a uma postura de respostas às razoes de nossa fé. Essas respostas devem ter uma implicação direta na prática pastoral que cada um de nós desempenha. Desse modo, unem-se teoria e prática da teologia.

A teologia apresenta-se num pressuposto: ela não caminha sem a fé. Ela é razão conjugada com a fé, ambas, como dizia João Paulo II, são asas que levam o espírito humano para a contemplação da verdade. Tanto fé quanto razão são dons colocados no coração do homem. Mais que isso, Libanio diz que fé é graça e ato da liberdade humana. Tal liberdade tem sua historicidade também, pois se estende por todo o período da história humana. Do mesmo modo que a teologia experimentou do contexto histórico de modernidade uma busca de respostas ao racionalismo e à Reforma, a liberdade experimenta, no contexto de Modernidade, a descoberta da subjetividade. Esta, por sua vez, apresenta-se como interiorização do ser humano como sujeito que carrega valores e significados e que interpreta o mundo que o cerca pautado nesses valores e nesses significados. Mais tarde, a subjetividade sofre uma repressão por parte de movimentos que pedem teorias e práticas sociais, desembocando, mais à frente, num individualismo exacerbado, necessitando ser superado por uma articulação que integre história, sociedade e cosmo-visão inovadora que a pós-modernidade traz. Enquanto teologia pastoral, a proposta é feita no encontro de uma expressão de fé que valorize, de certa forma, a subjetividade dentro da modernidade e da pós-modernidade, mas que se deixe enriquecer pela dimensão histórica e social e pela consciência de cosmos que se tem.

Continuando suas reflexões, o livro apresenta também a diversidade de formas religiosas que se apresentam na sociedade de hoje. Essa diversidade, que conta com as clássicas denominações religiosas, apresenta, ao mesmo tempo, fascínio e medo. A experiência do sagrado, muitas vezes, apresenta-se, também, de forma velada nos eventos de culto ao corpo, grandes eventos musicais ou desportivos, enfim.

Já o cristianismo, cuja fé nasce no Ressuscitado, assumiu diversas formas religiosas ao longo de sua história, nutrindo a fé popular. Desse modo, e em seu modo peculiar, cumpriu uma função de anúncio de uma Boa-Nova que necessitava ser acolhida através da fé. Assim, a Igreja Católica assumiu a regra de ampliar sua face institucional em detrimento dos anseios e aspirações religiosas. Nos dias atuais, a Igreja vive intensamente tal situação. Há uma procura enorme de outras formas religiosas que tenham mais expressão, fato que tem feito com que a Igreja Católica encontre, a cada dia, suas assembléias mais vazias. Partindo, desse modo, para uma reflexão pastoral, questiona-se o como entender os fenômenos religiosos em geral e até mesmo o movimento carismático dentro da Igreja.

A fé cristã inculturou-se na razão. Numa tradição vinda desde o início da Igreja, presente no Novo Testamento, passando pelos Padres da Igreja e por teólogos de todos os tempos, a fé buscou maior clareza de si mesma por meio de procedimentos da razão. A relação entre a Igreja e a razão sofreu mudanças bastante variadas. No início, houve uma apologia frente aos filósofos pagãos, afirmando-se como fé respeitadora da razão e refutando as monstruosidades que lhe maltratavam. E, na Idade Média, criou-se até mesmo uma relação de imensa harmonia entre fé e razão, cujo maior representante foi, sem dúvidas, Santo Tomás de Aquino, que respeitou as autonomias e valorizou os pontos de contato.

Já a modernidade presenciou uma época turbulenta, cujas marcas vemos ainda hoje. A razão adquiriu autonomia plena, colocando-se numa situação de difícil diálogo com a fé. Conseqüência disso é que vemos um mundo cada vez mais descrente e ateu. Entretanto, vemos, por outro lado, que a fé, também, quando absolutizada, gera uma posição dogmática. Há que se recuperar o diálogo que fé e razão traziam desde os tempos da Idade Média, sem que uma despreze ou menos preze a outra, mas que se complementem.

A modernidade e sua razão autônoma é apenas um dos desafios que a fé cristã enfrenta nos dias atuais. O crescimento de uma consciência religiosa individual, que gera situações favoráveis à escolha de uma religião individual também, através de escolhas próprias de ritos, de práticas religiosas correspondentes aos interesses e aos anseios próprios de cada individuo, é um desses desafios da sociedade hodierna. Essa consciência individual (e individualista) deixa os indivíduos sem preocupações de colocar num vínculo com qualquer que seja a Instituição, Igreja ou mesmo comunidade.

Desse modo, a crítica da fé cristã a esse tipo de consciência é ferrenha. Defende-se a fé como dom, como graça de Deus. Contudo, essa fé só pode e só tem sentido de ser vivida na comunidade, pois a razão de ser da fé é comunitária, baseada na Trindade, que cria o homem com natureza comunitária, não como um ser sozinho no mundo. É neste capítulo que se encontra a tese central da que Libanio se propõe a refletir: o questionamento de como crer num mundo de muitas crenças e pouca libertação?

Daí os demais capítulos da reflexão de Libanio propõe um pensamento acerca da Escritura e da Tradição e as conjecturas de um continente com perspectivas desafiadoras. Escritura e Tradição são pilares essenciais para a fé cristã, enquanto caminhada do catolicismo. Há uma necessidade, dentro de toda religião revelada, a presença da Escritura. Contudo, dentro da fé católica, esta anda junto com a interpretação e o enriquecimento da Tradição, que se relaciona com a Escritura. Retomando sua pergunta tese no capitulo VIII de seu livro, apresenta-se uma realidade bastante desafiadora para o continente latino-americano. Continente esse repleto de diversos estilos de expressões religiosas, de diversos sincretismos, entre outros.

É inegável a constatação de que toda a sociedade, não só a brasileira, mas a mundial, tem passado nos últimos tempos por enormes transformações. Mudanças no campo político, no social, no religioso, enfim. Todos os âmbitos da vida humana vêm sofrendo mudanças significativas ao longo de tantas décadas.

Todas as sociedades, influenciadas pela globalização, tem se transformado em sociedades em que cada vez mais se constata o individualismo. Entretanto, numa realidade de América Latina, vê-se uma busca muito grande pela religião. Contudo, não mais aquela religião que comprometa ou somente vivida pela tradição. As pessoas hoje procuram religiões que apenas cumpra um certo papel de emergência. E a América Latina, em especial, é um continente em que fervilham as mais diversas formas, cada qual ao gosto de cada pessoa.

Desse modo, muitas religiões acabam sendo apenas cumpridoras de um efêmero fenômeno religioso. Sua preocupação se pauta em pagamentos de dízimos e nem tanto na estruturação espiritual de seus fiéis. Isso gera, por vezes, as mais severas prisões. Muitos fiéis deixam de consumir coisas necessárias para sua existência para poder dar um pouquinho mais de dinheiro para a igreja.

É nesse sentido que muitos teólogos da libertação caminham: na crítica acirrada e consciente de que as religiões também alienam, também escravizam, também exploram seus fiéis. E como buscar uma fé autêntica, uma fé verdadeira, em meio a esse mercado de novas formas de se pregar a prosperidade imediata, a felicidade duradoura, aquele trabalho para o desempregado, as mais miraculosas curas?

A resposta, ao mesmo tempo em que parece simples, é, também, complexa. Para uma verdadeira religião, que liberte, que dê autonomia e que restabeleça a dignidade das pessoas que comungam de seus ideais, é necessário voltar na reflexão primeira que uma igreja séria e comprometida deve ter. Para as religiões, cuja centralidade se faz na opção do Cristo, a resposta parece mais obvia. A opção fundamental da Igreja, nesse caso, é pelos pobres, é pelos marginalizados, é pelos excluídos da sociedade.

Para tanto, não se pode ficar nos púlpitos das igrejas, nas pregações, enfim. Há uma necessidade de inserir-se na realidade que cerca nossas cidades, afinal, uma das grandes características das sociedades contemporâneas é essa: as pessoas são de cultura muito mais urbana do que rural. Esse inchaço urbano tem gerado as mais diferentes desigualdades sociais: desempregados, semi-analfabetos e analfabetos, pessoas com pouco grau de instrução, pessoas em condições de subempregos, com a saúde cada vez mais prejudicada, etc. Nem mesmo as políticas públicas parecem estar interessadas ou dão-se ao trabalho de enxergar essas situações.

Uma das funções da religião se pauta no binômio: denunciar e anunciar, em se tratando de cristianismo. A função da religião é ir contra as mazelas que seu povo vive, gritar junto, clamar por mudanças. Se as mudanças não são fáceis de se conquistar, ao menos buscar edificar a dignidade de cada ser humano. O anúncio, que deve ser conseqüência da denúncia, é feito para todos: ricos e pobre, afro-descendentes, caucasianos, indígenas... Enfim, é para a raça humana, para todos, sem distinção.

Nesse sentido, o continente latino-americano tem uma carência de religiões que realmente estejam comprometidas com a libertação dos pobres do jugo injusto e pesado da sociedade neoliberal e capitalista a que estão todos inseridos. Estamos num continente que apresenta as mais variadas disposições religiosas. Mas, a verdadeira pergunta que fica, e ao que parece permanecerá muito tempo, exige uma resposta comprometedora. São poucos os que se preocupam com isso. Enquanto isso, a dignidade humana vai se tornando um vocabulário sem vida, sem expressão, batido (de tão usado) e que não provoca transformações em ninguém. Se não começar a se buscar uma nítida conversão, começando pelos dirigentes das igrejas, continuaremos a ver, por muitas décadas mais, uma sociedade alienada, desbaratina e perdida, já que não tem mais nenhum referencial a respeito daquilo que perdem dia após dia: sua dignidade.