WERNER LEBER

CONSIDERAÇÕES SOBRE ÉTICA E NATUREZA NA VISÃO DE HANS JONAS

Considerações sobre o Capítulo I “A Natureza Modificada do Agir Humano”, de Hans Jonas. Em face de haver, possivelmente, edições mais antigas ou mais recentes, segue a paginação da seguinte edição: JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para uma civilização tecnológica. 1ª reimpressão. Tradução do alemão de M. Lisboa e Luiz B. Montez. Rio de janeiro: Editora da PUC-RIO, 2011, páginas 29-66. Portanto, cada vez que for citado literalmente uma passagem ou apenas feito menções a passagens do texto de modo generalizante, elas referem-se tão somente às páginas em que se encontra o Capítulo I, da reimpressão de 2011, lidas pelo autor destas Considerações.

Logo de início Jonas quer desfazer um pressuposto antigo. Conforme observa (p. 29) a visão ética até os dias atuais considerou a natureza das coisas e a natureza humana como estanque, imutável, como se tivessem traços fundamentais que fixam (ou definem) a natureza humana e a natureza das coisas de uma vez por todas. É exatamente aqui que está o erro das éticas atuais. Ele mesmo escreve assim: A argumentação que se segue pretende demonstrar que esses pressupostos perderam a validade [...] Mais especificamente, creio que certas transformações em nossas capacidades acarretaram uma mudança na natureza do agir humano (JONAS, 2011, p. 29).

O que isso implica, é o que Jonas nos tentará dizer no capítulo I. Vamos seguir seus passos.

A ética tradicional não responde e nem corresponde às exigências de uma era tecnológica, mesmo que o ser humano sempre tivesse tido consciência de seu poder e sua capacidade para o Mal. [Jonas inicia com a Antígona, de Sófocles, que narra a justamente a capacidade de mudança, de desvio e adaptação do ser humano]. A argumentação do autor indica que a tecnologia criou potencialidades que ultrapassam a capacidade que o ser humano tem de conhecer os alcances de sua ação. Uma ação bem intencionada não é sinônimo de boa ética. Na ética tradicional, só a intenção da ação humana é julgada. Se ela é boa, a ação correspondente (o resultado) também o será, visto que partiu de boas ações e boas intenções, mesmo que não se alcance o resultado desejado ou que prejudique severamente alguém. Assim sempre foi até bem poucas décadas. Mas hoje isso não basta. O ser humano atual encontra-se em uma situação em que não conhece o que faz inteiramente, não domina o resultado final de suas ações. Cada ato nosso hoje tem implicações as mais diversas, e, às vezes, nefastas, mesmo que as intenções iniciais sejam boas. Jonas propõe, ou se pergunta, como fazer para limitar o “poder” humano. Frear as ações humanas parece ser a proposta inicial do autor.

Para Jonas, durante séculos e milênios o ser humano não precisou verificar que lugar ocupa a natureza no todo das coisas. O ser humano definia os padrões éticos de acordo com somente a natureza humana. Era, diga-se assim, uma visão antropocêntrica: o que importa é ação humana e não as coisas. Assim escreve nosso autor “em suma, a atuação sobre objetos não humanos não formava um domínio eticamente significativo”, (Op. cit., p. 35).

Acreditava-se que a natureza humana era única, estabelecida desde sempre, mesmo que impérios, tronos, guerras e cidades tivessem surgido e desaparecido, nada disso levou a se perguntar sobre a “natureza do agir humano” (Id. p. 33). Sempre se acreditou que a responsabilidade humana fosse capaz de dar conta do ser humano e jamais permitir que as coisas fujam do controle. A Cidade, onde os padrões éticos surgiram primeiramente em nossas civilizações (p. 34) indicava que a inteligência humana e a sua capacidade inventiva fossem suficientes para não deixar o trem sair dos trilhos. Mas saiu. E agora? Uma nova ética, conforme o autor propõe é, portanto, urgente. Como ela seria?  Ao longo das páginas 35 a 37, onde o autor discorre sobre os problemas da ética antiga (chamada ética tradicional) ele continua a elencar situações que apontam que até o presente momento, como ele escreve, a ética só se ocupou da relação ser humano versus ser humano, sem nunca colocar em pauta as condições em que a vida humana e toda forma de vida se encontra.

Considerem que Hans Jonas escreveu o texto que aqui analisamos em 1979 e faleceu em 1993. Desse modo, quando ele diz “presente momento”, está a se referir a um período em que as questões ambientais e ecológicas ainda encontravam-se em fase embrionária de preocupação acadêmica e governamental. Nos países de Terceiro Mundo, nesse época, Ecologia e Meio Ambiente eram assuntos nem sequer haviam aparecido.

As consequências da destruição ou ocupação indevida de espaços naturais ficava a “[...] critério do acaso, do destino ou da providência”, nos informa (Ibidem, p. 35). A velha e bem conhecida máxima “ama teu próximo como a ti mesmo”, ou então “faz aos outros somente o que queres que façam a ti”, bastavam. Em suma, nunca tratar nosso semelhante como meio e sim sempre como fim, era o preceito da ética tradicional. Como se sabe, há muito da filosofia de Kant nessa visão ética.  Jonas critica duramente Kant, a quem acusa de ser reducionista. Veja a afirmação que ele dirige a seu compatriota “nenhum outro teórico da ética foi tão longe na diminuição do lado cognitivo do agir moral” (op. cit., p. 37). Kant, juntamente com os que vieram antes e depois dele, nunca pensaram que a ética deveria estar alicerçada na ações e resultados de cientistas e pesquisadores. A tradição ética sempre se comportou como se houvesse nos seres humanos algo como uma intuição ética ao alcance de todos de boa vontade. Não é o saber do cientista que importa, mas a intenção ética que está ao alcance de todos que deveria regular o campo ética. Claro, Jonas condena essa visão, porque a considera estreita e ingênua. E Jonas afirma: “O braço curto do poder humano não exigiu qualquer braço comprido do saber [...]” (Id. ibid, p. 37).  Para Jonas, o conhecimento, o saber técnico, científico é que deve ser posto em xeque. A era tecnológica trouxe desafios que extrapolam a visão simplista de Kant, segundo ele. Na parte III do Capítulo I (p. 39 - 42), Jonas repete várias coisas que vem afirmando, entre elas reforça a sua convicção de que a técnica e o desenvolvimento científico produziram uma viragem tão grande de paradigma que nenhuma ética que considere apenas a ação humana pode açambarcá-las. Misericórdia, amor ao próximo podem continuar a ser importantes, mas também impotentes. Exige-se agora uma Responsabilidade nunca nem sequer sonhada por gerações anteriores.  Sobre isso, cabe a seguinte citação:

O hiato entre a força de previsão e poder do agir humano produz um novo paradigma ético. Reconhecer a ignorância torna-se, então, o outro lado da obrigação do saber, e com isso torna-se uma parte da ética que deve instruir o autocontrole, cada vez mais necessário, sobre nosso excessivo poder. Nenhuma ética anterior vira-se obrigada a considerar a condição global da vida humana e o futuro distante, inclusive a existência da espécie. O fato de hoje eles estejam em jogo exige, numa palavra, uma nova concepção de direitos e deveres, para a qual nenhuma ética e metafísica antiga pode sequer oferecer os princípios, quanto mais uma doutrina acabada (Op. cit., p. 42)

O autor, às vezes em tom profético, repete sempre que a natureza, ou seja, as condições naturais do Planeta, precisam ser vistas com autonomia e não como apêndice das boas intenções dos bem intencionados, como queria Immanuel Kant com o Imperativo do dever.

O HOMO FABER ACIMA DO HOMO SAPIENS

A técnica, a ciência moderna, a engenharia do saber científico, aliado aos interesses comerciais, capitalistas e seja lá o que for, fez uma inversão nas coisas. O Homo Faber (o ser do trabalho e da criação) subordinou o Homo Sapiens à lógica da Techne (do desenvolvimento e progresso da técnica e da ciência), da qual ele era, antes, apenas parte. Jonas está nos dizendo mais ou menos o seguinte: a lógica do empreendimento científico, técnico e tecnológico conferiu ao ser humano um poder que extrapola as questões essenciais da vida. Os problemas metafísicos, ontológicos, existenciais foram eclipsados pelo poder de multiplicação que o poder da técnica conferiu à ação humana. O ser humano atual é cada vez mais o preparador daquilo que em seguida ele estará em condições de fazer. Nosso autor faz uma afirmação que considero contundente, “Se a esfera do produzir invadiu o espaço do agir essencial, então a moralidade deve invadir a esfera do produzir, da qual ela se mantinha afastada anteriormente, e deve fazê-lo na forma de política pública” (Op. cit., p 44). Então já não se pode dizer como nos tempos idos, faça-se justiça mesmo que o mundo pereça. O mundo não pode mais perecer. A capacidade humana precisa ser freada por uma racionalidade ética que ainda não existe. Em suma, imaginar que o mundo era um dado primário de onde vinha a teoria sobre o dever dos humanos, acabou. É a conduta humana que está agora no crivo da ética. Ela precisa ser interpretada como um poder sobre o qual nós humanos perdemos o controle. O mundo físico e sua integridade estão ameaçados pelo agir humano. Diante desse quadro, Jonas propõe inverter a velha máxima kantiana “aja de tal modo que tu também possas querer que a tua máxima se torne lei geral” em “aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra” (Id. Ibid., p 47-48). Em suma, Jonas está a se perguntar e também a propor que qualquer perspectiva ética, qualquer teoria ética, leve em consideração a racionalização somada à técnica e à tecnologia. Porque, como podemos ler em outro autor contemporâneo, Sygmund Bauman, o Facebook e a tecnologia nos tornaram de uma vez todas Globais. Não se pode mais pensar ética como algo isolado. Jonas quer uma ética racional para uma sociedade planetária, globalizada. Cada ação, cada novo invento traz consequências para áreas onde nem sequer se imagina que elas possam chegar. Mas o Mote central da reflexão de Hans Jonas é a racionalização científica, o emprego da razão para produzir artefatos e produtos, cujos alcances são ignorados por aqueles que os inventam. A nossa racionalidade tem condições de produzir quinquilharias, prever certas situações naturais e interferir nelas, alterar a biosfera e o comportamento dos recursos naturais do Planeta como nunca se foi capaz em época alguma. Portanto, é assim que eu interpreto o autor, o que ele está propondo não é um estudo da ética sob os critérios filosóficos até agora conhecidos. O que ele está propondo são ações globais de governos, entidades civis para frear a razão humana. Os recursos limitados do planeta e a fragilidade da vida não permitem que o ser humano banque o sábio criador, o inventor livre, sem se dar conta de que a sua “invenção” pode ser o “inferno” dele mesmo ou o “fim” de alguma espécie ou dele mesmo. Daí que o novo imperativo ético deveria ser assim, conforme diz-nos Jonas: “[...] clama por outra coerência: não a do ato consigo mesmo, mas a dos efeitos finais para a continuidade da atividade humana no futuro” (op., cit., p. 49). Jonas termina essa perícope afirmando que a nossa responsabilidade encontra-se em uma dimensão inacabada.

RESPONSABILIDADE E O SER HUMANO COMO OBJETO DA TÉCNICA

A parte final do Capítulo (p. 51-66) é recheada de informações repetidas sobre a relação entre saber e poder e também as considerações críticas sobre a visão estreita, conforme Jonas, da ética de Kant. Desse modo, quero agora apenas trazer ainda pontos novos, como por exemplo, a técnica que transformou o ser humano em objeto dele mesmo e o vácuo ético. Diante desse quadro, Jonas clama pela Responsabilidade. Sigamos brevemente esses passos para encerrar nosso resumo. É interessante, por exemplo, que Jonas explica a relação com o presente nas éticas antigas. Para o Marxismo, por exemplo, seria interessante sacrificar (utilizar como simples meio) as gerações presentes para alcançar um futuro promissor. Também a ascetismo religioso (guardar distância das coisas do mundo) e mesmo as situações em que se renuncia ao mundo em nome da vida eterna – no caso dos sacrifícios da própria felicidade - (p. 51-52), ou nos casos revolucionários, como no marxismo que acima foi mencionado, o que move a visão ética é sempre o presente. Nenhuma ética pensou seriamente no futuro. Eis a questão! Mas como ir ao futuro sem desconsiderar o presente e sem fazer do presente simples meio para algo futuro? Aqui a resposta de Jonas é menos eloquente do se espera. Primeiramente ele nos diz que quase todas as perspectivas de futuro que tivemos basearam no presente, e, portanto, não servem aos propósitos de uma ética de responsabilidade, cuja finalidade é lidar justamente com o poder presente que molda o futuro (p. 53). Jonas, porém, abre uma exceção ao marxismo revolucionário, “[...] que pressupõe uma escatologia dinâmica da história, desconhecida do passado” (JONAS, 2011, p. 54). O que isso efetivamente significa, encontra-se nas palavras que seguem:

O agir ocorre em função de um futuro que não será não será usufruído nem por seus atores, nem por suas vítimas ou contemporâneos. A obrigação para com o presente provém de lá, e não do bem-estar ou do mal-estar de seu mundo de seu mundo contemporâneo; e, as normas do agir são tão provisórias e mesmo tão inautênticas quando a situação que ele pretende superar. A ética da escatologia revolucionária vê a si mesma como uma ética de transição, enquanto a ética autêntica, ainda inteiramente desconhecida, só poderá vigorar depois que aquela tiver criado as condições para tanto e, com isso, abolido a si própria (JONAS, op. cit., p. 56).

Contudo, o otimismo de autor com a escatologia revolucionária termina também logo a seguir ainda dentro do contexto em que surge a citação acima, quando constata que “[...] os poderes da técnica sobre o destino humano ultrapassaram o poder do próprio comunismo, que, como todos, pensava apenas servir-se deles” (op. cit., p. 56). Mas o que quer Jonas, afinal. Ele mesmo explica assim: “Nossa tese e de que os novos tipos e limites do agir exigem uma ética de previsão e responsabilidade compatível com esses limites, que seja tão nova quanto as situações com as quais ela tem de lidar” (op. cit., p. 57).

As páginas finas do capitulo, o autor aborda outra vez a questão do Homo Faber, que subjugou o Sapiens como objeto (p. 57-58) Nesse aspecto, Jonas aborda temas como o prolongamento da vida por meio da revolução genética e os processos bioquímicos de nosso envelhecimento. O homem moderno comporta-se como se a morte não fosse mais um problema. Lembrem-se, Hans Jonas publicou o texto em 1979. Imaginem se fosse hoje, com células-tronco, genoma e outras questões ligadas ao assunto, que na época eram apenas perspectivas distantes! O que fica para nós deste texto é a abordagem de Hans Jonas, segundo a qual o ser humano modificou, pela técnica e pelos controles que pode exercer sobre a natureza e sobre si, as condições em que se deve pensar o que seja “ética” e, consequentemente, o que seja “responsabilidade”. Antes, partia-se um dado fixo, ou que se considerava imutável: a natureza, o mundo físico e a própria natureza humana (caráter?). Mas o avanço técnico-científico modificou a forma do agir humano. O ser humano é hoje tão turbinado que suas ações lhe escapam. Ele nem sequer imagina o alcance de seus atos e o tamanho poder que a técnica, aliada a interesses econômicos e políticos, lhe conferem. Jonas, porém, em 1979, já conhecia o que a bioquímica podia fazer pelo nosso cérebro, ou seja alterar nossas normas de comportamento por agentes químicos e mesmo implantando eletrodos em nossos cérebros (p. 59). É claro que não há por parte do autor uma condenação dessas ações. Mas onde está o limite? Quem controla o quê? As possibilidades técnicas, ao mesmo tempo que criam possibilidades de cura para enfermidades antes não tratáveis, trazem consigo o perigo do descontrole, a possibilidade da arrogância e da ganância também. A manipulação genética (p. 61) está também na mira de Jonas. O que se segue é bem conhecido de nossa parte. O autor está a interrogar justamente o perigo que a manipulação genética representa, embora se saiba também das enormes vantagens que ela trouxe.

SABEDORIA

“Quando mais necessitamos de sabedoria é quando menos acreditamos nela” (op. cit., p. 63).  As éticas de tipo kantiano e outras, mesmo quando trataram do futuro ou da utopia, o fizeram com critérios do presente. O futuro, porém, não é quantificável. Desse modo, a solução não está na técnica e na ciência, mas na ignorância, na desconfiança dos dogmatismos cristalizados, na sabedoria. O futuro não é um objeto ao nosso alcance. Quando ele realmente vier nós já não estaremos mais aí (p. 64). Para Jonas, entre tudo que já disse, permanece que a humildade deve ser uma porta para ação política de Governos e Estados. Essa humildade não é como no passado, humilde porque o ser humano é pequeno diante do enigmático mundo, mas bem ao contrário, humilde diante dos excessivos poderes que a civilização tecnológica e científica nos conferiu (p. 63). O que sobrou foi um “vácuo ético”, depois que a moderna sociedade tecnológica destruiu a ideia de norma ética. Precisamos de uma nova norma, e que não mais se baseie nos pressupostos fixos, estáticos da natureza e da ação humana, como as éticas passadas. Há algo a construir.  O autor termina essa primeira parte com uma constatação que pode desapontar muita gente. A saída, se é que há, precisa ancorar-se na sabedoria. E esta, não prescinde de questões religiosas. A passagem dá o tom da conversa: “[...] da religião pode-se dizer que ela existe ou não existe como fato que influencia a ação humana, mas no caso da ética é preciso dizer que ela tem de existir” (op. cit., p. 65).  O autor acredita, que as tradições religiosas funcionam como balizas culturais que ordenam e regulam o poder dos humanos. Religião para ele aqui é bem que tradição religiosa de um deus pessoal. Religião, se bem entendi, é um complexo cultural que cultiva a humildade diante da arrogância e prepotência humanas.

REFERÊNCIA

JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para uma civilização tecnológica. 1ª reimpressão. Tradução do alemão de M. Lisboa e Luiz B. Montez. Rio de janeiro: Editora da PUC-RIO, 2011, páginas 29-66.