CORTIÇO VERSUS SOBRADO EM O CORTIÇO*

Alessandra Queiroz **

RESUMO - Análise sociológica dos espaços cortiço e sobrado, no romance O CORTIÇO de Aluísio Azevedo, buscando compreender como se projeta a relação personagem versus ambiente, bem como as relações sociais presentes na obra sob a ótica determinista de Aluísio Azevedo.

PALAVRAS-CHAVE- Cortiço; Sobrado; personagem; relações sociais; Ambiente; Ideologia.

Não obstante, as casinhas do cortiço, à proporção que se atamancavam, enchiam se logo, sem mesmo dar tempo a que as tintas secassem. Havia grande avidez em alugá-las; aquele era o melhor ponto do bairro para a gente do trabalho. Os empregados da pedreira preferiam todos morar lá, porque ficavam a dois passos da obrigação [...] Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem".

(Aluísio Azevedo. O Cortiço, cap. I, p.21).

Justamente por essa ocasião vendeu-se também um sobrado que ficava à direita da venda, separada desta apenas por aquelas vinte braças; de sorte que todo o flanco esquerdo do prédio, coisa de uns vinte e tantos metros, despejava para o terreno do vendeiro as suas nove janelas de peitoril. Comprou o um tal Miranda, negociante português, estabelecido na Rua do Hospício com uma loja de fazendas por atacado''. (Idem, ibidem, cap.I, p.13).

INTRODUÇÃO

Segundo consenso unânime da Crítica, historiadores e literatos brasileiros, O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo (1857-1913), expoente de nossa ficção nos moldes do tempo, é a obra prima do Naturalismo no Brasil.

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*Artigo apresentado ao Prof. Dr. Vitor Hugo Fernandes Martins, da disciplina Estudo da Produção Literária no Brasil da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus XXI, como requisito para complementação de nota.

** Acadêmica do 2º semestre, vespertino.

Diferentemente do romance realista que procura ver esteticamente os problemas sociais, o romance naturalista vai além direto e cientificamente aos problemas da sociedade, buscando desvendar suas causas segundo os preceitos deterministas.

Partindo do pressuposto de suas leituras científicas e observando obras naturalistas de escritores europeus como Èmile Zola e Hipólito Taine, para quem o homem era produto do meio da raça e do momento histórico, o romancista maranhense seguiu a risca o estilo naturalista de determinismo e evolucionismo ilustrado seguidamente na obra supracitada.

Faremos em o cortiço uma leitura sociológica optando particularmente pelo esquema do professor Afonso Romano de Sant`Anna (1973), buscaremos compreender como se projeta a relação personagem versus ambiente em Cortiço versus Sobrado, na obra O Cortiço de Aluísio Azevedo.

Ainda que tenhamos nos valido predominantemente nesta abordagem de O Cortiço, das idéias do professor Sant'Anna, buscaremos também o suporte teórico de outros autores, pois a leitura que se apega a uma única corrente tende a ser reducionista. Desse modo as contribuições de Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1991), Massaud Moisés (2003) Salvatore D`onofrio (2006), Alfredo Bosi (1994), nos serão imprescindíveis.

Nosso artigo é composto de três seções; na primeira seção intitulada:

O ESPAÇO NO ROMANCE NATURALISTA discutiremos de que forma o espaço como instrumento de análise se projeta nas obras naturalistas; na segunda,

CORTIÇO: ESPAÇOS DE JOÃO ROMÃO analisaremos a estrutura horizontal do cortiço bem como sua composição elementar de coletivismo patológico segundo os preceitos deterministas; finalmente na terceira, SOBRADO: ESPAÇO DO MIRANDA mostraremos a vigência da verticalidade a partir do sobrado, bem como a representação da burguesia ascendente do séc. XIX.

A edição de O Cortiço por nós utilizada para a elaboração deste artigo foi a 9ª ed. Santa Catarina, Avenida 2005.

1.O ESPAÇO NO ROMANCE NATURALISTA

O espaço tomado como instrumento de análise apresenta vários aspectos. Dentre eles, destaca-se a noção de espacialidade dimensional que pode ser mensurável e divide-se em vertical e horizontal.

A idéia de verticalidade se relaciona com o espaço divino ou sobrenatural, a noção de horizontalidade opõe-se a verticalidade, uma vez que a horizontalidade é própria do espaço humano ou natural.

É sabido que todo o texto literário possui seu espaço na medida em que se propõe mostrar uma parte da realidade, ao mesmo tempo em que estabelece uma fronteira entre o mundo real e o imaginário.

A estética realista confere extrema importância ás influências do ambiente na constituição da personalidade das personagens e, sobretudo nas obras de Zola, Eça de Queirós e Balzac, assim como nas obras naturalistas brasileiras como O Cortiço de Aluísio Azevedo visualiza-se um indisfarçado determinismo que leva a prever com precisão quais as ações e reações das personagens uma vez descritos seu espaço vital.

Segundo Salvatore D'onófrio(1992), seja qual for o texto literário, é imprescindível o levantamento e a análise dos elementos espaciais, porque o espaço,

"mais dócil que o tempo às exigências racionais do espírito, é um fator de inteligibilidade e um apelo ao conceito. É ele que impõe seu molde às coisas e as realiza, que permite ultrapassar a zona do sonho e a contemplação das virtualidades; é graças a ele que o mundo acede a existência e à objetivação. Mais seguro e mais eficaz, o espaço é suscetível de ser designado por palavras que podem conjurar e reprimir os poderes misteriosos; enquanto o tempo é promessa de morte, o espaço é o meio vital onde se encarna nossa atividade".

(D'onófrio,1992, p.286)"

Partindo desse pressuposto, percebemos que o espaço atinge contornos de grande relevância nas narrativas, uma vez que impondo seu molde às coisas contribui para tornar verossímil a diegese bem como aponta a condição social e psicológica das personagens.

A descrição é o principal instrumento que o romancista dispõe para conceber o espaço em que ocorre a história, isso explica o fato de que em romances como o realista e o naturalista principalmente, o estudo do meio e as descrições ocorram com freqüência.

Corroborando com essa idéia, Moisés (2003), afirma que

"[...] a descrição da paisagem vale como uma espécie de projeção das personagens ou o local ideal para o conflito carece de valor em si, está condicionada ao drama em causa; não é pano de fundo mas algo como personagem inerte, interiorizada e possuidora de força dramática [...]

(Moisés, 2003, p.8)

Dessa forma, o romance naturalista busca muito mais que compor uma narrativa, mas, projetar as personagens e suas ações numa posição em que os espaços falam por si só carregando toda ideologia determinista de que o homem é produto do meio.

A partir desse perfil elencado acima, destacaremos nos próximos capítulos a narrativa naturalista clássica, que utiliza em seu enredo teses deterministas, além das histórias de João Romão e Miranda em seus respectivos espaços a saber, Cortiço e Sobrado que estão presentes na obra O Cortiço de Aluísio Azevedo e

imortalizada nas páginas da Literatura Brasileira.

Resumo da Obra

O romance O Cortiço de Aluísio Azevedo* foi publicada em 1890, trata-se de umromance naturalista. Conta-nos a história de João Romão e sua saga rumo ao enriquecimento.

Paralelamente entrelaça as histórias dos moradores do Cortiço São Romão, dentre eles o português Jerônimo e Rita Baiana e a luta pela sobrevivência diária, ao mesmo tempo em que narra a história dos moradores ricos do Sobrado do Miranda este a princípio oponente de João Romão, depois seu aliado.

1. CORTIÇO: ESPAÇO DE JOÃO ROMÃO

Bem ao estilo naturalista, o cortiço - espaço de João Romão define-se por sua estrutura horizontal e composição primária de coletivismo patológico. Neste espaço, o homem é influenciado pela raça, meio e momento histórico em uma habitação coletiva em que coabitam pessoas de várias etnias no bairro do Botafogo no Rio de Janeiro.

O Cortiço é considerado a personagem mais convincente da obra, uma vez que se projeta de tal forma, que se destaca mais do que as próprias personagens que ali vivem.

"E durante dois anos o Cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se inquieto com aquela exuberância brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta implacável que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas e cujas raízes piores e mais grossas do que serpentes minavam por toda parte, ameaçando rebentar o chão em torno dela, rachando o solo e rebentando tudo". (AZEVEDO, 2005, p.23)

Percebe-se aqui a fórmula naturalista em que as descrições do espaço tornam-se fundamentais para o entendimento da obra. É como afirma Bossi (1994), "Existe o quadro: dele derivam as figuras"

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*Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo (1857-1913), nascido em São Luís do Maranhão, foi o primeiro escritor brasileiro a viver unicamente da literatura, foi ainda jornalista, cronista, caricaturista e teatrólogo.Tornou-se o grande nome do naturalismo brasileiro. Exercendo funções diplomáticas morreu em Buenos Aires na Argentina.

­­­­­­caso do português Jerônimo, antes respeitado empregado da pedreira, que ao se apaixonar pela brasileira Rita Baiana vê sua vida mudar completamente. Por ela Jerônimo deixa a família, o trabalho e transforma-se numa pessoa totalmente voltada aos prazeres da carne.

"O português abrasileirou-se para sempre; fez se preguiçoso, amigo das extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fora-se lhe de vez o espírito da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer e deu-se todo, todo inteiro à felicidade de possuir a mulata e ser possuído só por ela, só ela e mais ninguém." (AZEVEDO, 2005, p.205)"

Com isso, observamos a tese determinista sendo comprovada de que o homem é produto do meio.

No espaço de João Romão o narrador insiste na antropomorfização das personagens caindo no código anti-romântico de despersonalização; para o narrador, no Cortiço, já não se distinguem homens de animais, objetos ou vegetais.

"Sentia-se, naquela fermentação sangüínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra."

( AZEVEDO,2005, p.34)

Visualizamos desta forma, a impessoalidade com que o narrador acentua a degradação das pessoas aproximando-as insistentemente de animais.

Na obra O Cortiço, Aluísio Azevedo retrata literariamente a realidade do Brasil no século XIX, sua ideologia e as relações sociais presentes no país de capitalismo incipiente em que o explorador vive perto do explorado.

O Cortiço é o espaço atópico, lugar da luta e do sofrimento; lá todas as personagens são empregados, biscateiros ou assalariados e dependem economicamente do grupo que mantém o capital e os meios de produção.

A obra apresenta-se como uma contra-ideologia uma vez que segundo Sant'Anna (1973), embora voltada para o referente externo e para a verossimilhança ambiental, ela já não é transparente ao real, porque propõe um novo real, por onde afirma sua relativa opacidade em relação à ideologia dominante. (SANT'ANNA,1973.p.34)

Dessa forma, percebemos que a obra é contra-ideológica posto que denúncia o código social do momento como também crítica o espaço da ideologia dominante.

O narrador mostra João Romão "na sua moléstia nervosa de possuir" como a única personagem que não se deixa corromper pelo espaço mixórdico de moradia e faz uma distinção ente os que já venceram e os que se esgotam na labuta diária pela própria sobrevivência.

Isso nos faz pensar no que diz Bosi (1994), quando expõe que

[...] uma análise mais percuciente atribuiria ao sistema desumano do trabalho, que deforma os que vendem e úlcera os que compram, à consciência do naturalista aparece como um fado de origem fisiológica, portanto inapelável. Como de caráter absoluto ao que é efeito da iniqüidade social, o naturalista acaba fatalmente estendendo a amargura da sua reflexão à própria fonte de todas as suas leis: a natureza humana afigura-se a uma selva onde os fortes comem os fracos."( BOSI,1994, p. 191)

Observamos aqui as contradições sociais e humanas fruto das atribulações histórico-concretas do nosso país, que nascem no naturalismo como invenção de um "destino" ambiental e biológico, sobre o qual o ato humano não teria nenhum valor.

3. SOBRADO DO MIRANDA

O espaço oponente ao Cortiço de João Romão é o sobrado aristocratizante do comerciante Miranda e sua família. O sobrado representa a burguesia ascendente do século XIX.

Oespaço fictício supracitado, enquadrado na obra situa-se no bairro do Botafogo no Rio de Janeiro e explora a exuberante natureza local como meio determinante.

"A casa era boa; seu único defeito estava na escassez do quintal; mas para isso havia remédio: com muito pouco compravam - se umas dez braças daquele terreno de fundo, que ia até a pedreira, e mais uns dez ou quinze palmos do lado em que ficava a venda."

(AZEVEDO, 2005, p.17)

Analisando a estrutura vertical do sobrado do Miranda, percebe-se o confronto entre as personagens do Cortiço e do sobrado. O primeiro nivela-se por baixo, pela pobreza; o segundo caracteriza-se pela capacidade de barganha e mediação necessárias a sua própria sobrevivência.

Vejamos.

"Prezava acima de tudo sua posição social e tremia só com a idéia de ver-se novamente pobre, sem recursos e sem coragem para recomeçar a vida, depois de se haver habituado a umas tantas regalias e afeito à hombridade de português rico que já não tem pátria na Europa."

(AZEVEDO, 2005, p.14)

Compreende-se dessa forma a capacidade de troca mútua de favores existente nas relações das personagens do sobrado em que ambos se beneficiam. Miranda por um lado teme a pobreza, Estela sua esposa, por seu turno, precisa manter-se casada para ser respeitada diante da sociedade da época.

O sobrado pode ser entendido como o espaço tópico, lugar conhecido onde se vive em segurança e conforto apesar dos conflitos existentes entre os seus moradores.

Os integrantes do espaço sobrado diferentemente da comunidade do Cortiço que buscam no instinto e na violência meios para conseguir seus objetivos, utilizam -se de regras culturalmente complexas e definidas para atingir suas metas.

Reafirmando o que dissemos anteriormente, o próprio Miranda, homem rico, porém, infeliz desde que pegou sua mulher em adultério, não se separa para não perder a fortuna proveniente do dote da esposa, Miranda vê no baronato uma forma de superar sua "pequenez" investindo em algo que só a ele pertenceria, sem ter que restituí-lo a ninguém.

Observemos.

"Semelhante preocupação modificou o em extremo". Deu logo para fingir-se escravo das conveniências, afetando escrúpulos sociais, empertigando-se quando e disfarçando sua inveja pelo vizinho com um desdenhoso ar de superioridade condescendente. Ao passar-lhe todos os dias pela venda, cumprimentava-o com proteção sorrindo sem rir e fechando logo a cara em seguida, muito sério. ( AZEVEDO,2005, p.25)

Nota-se nesta citação o uso das máscaras sociais e o uso de regras definidas culturalmente como forma de possuir o bem que se almeja.

Miranda é o representante da elite burguesa do século XIX, sua condição social o diferencia das classes baixas, sobretudo de João Romão que apesar de deter o capital não participa da vida em sociedade. Com Miranda, João Romão entende que não basta ter dinheiro, é preciso ostentar uma vida reconhecida e ativa na vida burguesa.

Segundo Sant'anna,(1973, p.99), toda movimentação de Romão, é para sair do solo puramente biológico einstintivo em que se agita o cortiço e entrar numa organização social regida por um sistema jurídico e político representativo da Cultura[...] representado pelo espaço do Miranda.

Para imitar as conquistas do rival, João Romão promove várias mudanças na estalagem, que ostenta depois das reformas ares aristocráticos.

O cortiço muda, perdendo seu caráter desorganizado e miserável para se transformar na vila São Romão, superando em estrutura e beleza o sobrado do Miranda.

Considerações Finais

Referências Bibliográficas

Aguiar E Silva, Vitor Manuel de. A Estrutura do Romance. In Teoria da Literatura. 8ª ed. Coimbra: Almedina, 1991, p.22 a 49.

Azevedo, Aluísio. O Cortiço. 9ª ed. Santa Catarina: Avenida, 2005.

Bosi, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 41ª ed. São Paulo: Cultrix, 1994, p. 190.

D'ONOFRIO, Salvatore. Plano do Enunciado. In Teoria do Texto. 2ª ed. São Paulo: Àtica, 2006, p. 96 a 99.

MASSAUD. Moisés. Análise de Texto em Prosa. In Análise Literária. 14ª ed. São Paulo: Cultrix, 2003, p. 107 a 109.

SANT'ANNA, Afonso Romano de. O Cortiço. In Análise Estrutural de Romances Brasileiros. Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes, 1973 p.97 a 114.