Cortiço Versus Sobradoem O Cortiço
Publicado em 13 de junho de 2008 por Alessandra Queiroz
CORTIÇO VERSUS SOBRADO EM O CORTIÇO*
Alessandra Queiroz **
RESUMO - Análise sociológica dos espaços cortiço e sobrado, no romance O CORTIÇO de Aluísio Azevedo, buscando compreender como se projeta a relação personagem versus ambiente, bem como as relações sociais presentes na obra sob a ótica determinista de Aluísio Azevedo.
PALAVRAS-CHAVE- Cortiço; Sobrado; personagem; relações sociais; Ambiente; Ideologia.
Não obstante, as casinhas do cortiço, à proporção que se atamancavam, enchiam se logo, sem mesmo dar tempo a que as tintas secassem. Havia grande avidez em alugá-las; aquele era o melhor ponto do bairro para a gente do trabalho. Os empregados da pedreira preferiam todos morar lá, porque ficavam a dois passos da obrigação [...] Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem".
(Aluísio Azevedo. O Cortiço, cap. I, p.21).
Justamente por essa ocasião vendeu-se também um sobrado que ficava à direita da venda, separada desta apenas por aquelas vinte braças; de sorte que todo o flanco esquerdo do prédio, coisa de uns vinte e tantos metros, despejava para o terreno do vendeiro as suas nove janelas de peitoril. Comprou o um tal Miranda, negociante português, estabelecido na Rua do Hospício com uma loja de fazendas por atacado''. (Idem, ibidem, cap.I, p.13).
INTRODUÇÃO
Segundo consenso unânime da Crítica, historiadores e literatos brasileiros, O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo (1857-1913), expoente de nossa ficção nos moldes do tempo, é a obra prima do Naturalismo no Brasil.
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*Artigo apresentado ao Prof. Dr. Vitor Hugo Fernandes Martins, da disciplina Estudo da Produção Literária no Brasil da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus XXI, como requisito para complementação de nota.
** Acadêmica do 2º semestre, vespertino.
Diferentemente do romance realista que procura ver esteticamente os problemas sociais, o romance naturalista vai além direto e cientificamente aos problemas da sociedade, buscando desvendar suas causas segundo os preceitos deterministas.
Partindo do pressuposto de suas leituras científicas e observando obras naturalistas de escritores europeus como Èmile Zola e Hipólito Taine, para quem o homem era produto do meio da raça e do momento histórico, o romancista maranhense seguiu a risca o estilo naturalista de determinismo e evolucionismo ilustrado seguidamente na obra supracitada.
Faremos em o cortiço uma leitura sociológica optando particularmente pelo esquema do professor Afonso Romano de Sant`Anna (1973), buscaremos compreender como se projeta a relação personagem versus ambiente em Cortiço versus Sobrado, na obra O Cortiço de Aluísio Azevedo.
Ainda que tenhamos nos valido predominantemente nesta abordagem de O Cortiço, das idéias do professor Sant'Anna, buscaremos também o suporte teórico de outros autores, pois a leitura que se apega a uma única corrente tende a ser reducionista. Desse modo as contribuições de Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1991), Massaud Moisés (2003) Salvatore D`onofrio (2006), Alfredo Bosi (1994), nos serão imprescindíveis.
Nosso artigo é composto de três seções; na primeira seção intitulada:
O ESPAÇO NO ROMANCE NATURALISTA discutiremos de que forma o espaço como instrumento de análise se projeta nas obras naturalistas; na segunda,
CORTIÇO: ESPAÇOS DE JOÃO ROMÃO analisaremos a estrutura horizontal do cortiço bem como sua composição elementar de coletivismo patológico segundo os preceitos deterministas; finalmente na terceira, SOBRADO: ESPAÇO DO MIRANDA mostraremos a vigência da verticalidade a partir do sobrado, bem como a representação da burguesia ascendente do séc. XIX.
A edição de O Cortiço por nós utilizada para a elaboração deste artigo foi a 9ª ed. Santa Catarina, Avenida 2005.
1.O ESPAÇO NO ROMANCE NATURALISTA
O espaço tomado como instrumento de análise apresenta vários aspectos. Dentre eles, destaca-se a noção de espacialidade dimensional que pode ser mensurável e divide-se em vertical e horizontal.
A idéia de verticalidade se relaciona com o espaço divino ou sobrenatural, a noção de horizontalidade opõe-se a verticalidade, uma vez que a horizontalidade é própria do espaço humano ou natural.
É sabido que todo o texto literário possui seu espaço na medida em que se propõe mostrar uma parte da realidade, ao mesmo tempo em que estabelece uma fronteira entre o mundo real e o imaginário.
A estética realista confere extrema importância ás influências do ambiente na constituição da personalidade das personagens e, sobretudo nas obras de Zola, Eça de Queirós e Balzac, assim como nas obras naturalistas brasileiras como O Cortiço de Aluísio Azevedo visualiza-se um indisfarçado determinismo que leva a prever com precisão quais as ações e reações das personagens uma vez descritos seu espaço vital.
Segundo Salvatore D'onófrio(1992), seja qual for o texto literário, é imprescindível o levantamento e a análise dos elementos espaciais, porque o espaço,
"mais dócil que o tempo às exigências racionais do espírito, é um fator de inteligibilidade e um apelo ao conceito. É ele que impõe seu molde às coisas e as realiza, que permite ultrapassar a zona do sonho e a contemplação das virtualidades; é graças a ele que o mundo acede a existência e à objetivação. Mais seguro e mais eficaz, o espaço é suscetível de ser designado por palavras que podem conjurar e reprimir os poderes misteriosos; enquanto o tempo é promessa de morte, o espaço é o meio vital onde se encarna nossa atividade".
(D'onófrio,1992, p.286)"
Partindo desse pressuposto, percebemos que o espaço atinge contornos de grande relevância nas narrativas, uma vez que impondo seu molde às coisas contribui para tornar verossímil a diegese bem como aponta a condição social e psicológica das personagens.
A descrição é o principal instrumento que o romancista dispõe para conceber o espaço em que ocorre a história, isso explica o fato de que em romances como o realista e o naturalista principalmente, o estudo do meio e as descrições ocorram com freqüência.
Corroborando com essa idéia, Moisés (2003), afirma que
"[...] a descrição da paisagem vale como uma espécie de projeção das personagens ou o local ideal para o conflito carece de valor em si, está condicionada ao drama em causa; não é pano de fundo mas algo como personagem inerte, interiorizada e possuidora de força dramática [...]
(Moisés, 2003, p.8)
Dessa forma, o romance naturalista busca muito mais que compor uma narrativa, mas, projetar as personagens e suas ações numa posição em que os espaços falam por si só carregando toda ideologia determinista de que o homem é produto do meio.
A partir desse perfil elencado acima, destacaremos nos próximos capítulos a narrativa naturalista clássica, que utiliza em seu enredo teses deterministas, além das histórias de João Romão e Miranda em seus respectivos espaços a saber, Cortiço e Sobrado que estão presentes na obra O Cortiço de Aluísio Azevedo e
imortalizada nas páginas da Literatura Brasileira.
Resumo da Obra
O romance O Cortiço de Aluísio Azevedo* foi publicada em 1890, trata-se de umromance naturalista. Conta-nos a história de João Romão e sua saga rumo ao enriquecimento.
Paralelamente entrelaça as histórias dos moradores do Cortiço São Romão, dentre eles o português Jerônimo e Rita Baiana e a luta pela sobrevivência diária, ao mesmo tempo em que narra a história dos moradores ricos do Sobrado do Miranda este a princípio oponente de João Romão, depois seu aliado.
1. CORTIÇO: ESPAÇO DE JOÃO ROMÃO
Bem ao estilo naturalista, o cortiço - espaço de João Romão define-se por sua estrutura horizontal e composição primária de coletivismo patológico. Neste espaço, o homem é influenciado pela raça, meio e momento histórico em uma habitação coletiva em que coabitam pessoas de várias etnias no bairro do Botafogo no Rio de Janeiro.
O Cortiço é considerado a personagem mais convincente da obra, uma vez que se projeta de tal forma, que se destaca mais do que as próprias personagens que ali vivem.
"E durante dois anos o Cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se inquieto com aquela exuberância brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta implacável que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas e cujas raízes piores e mais grossas do que serpentes minavam por toda parte, ameaçando rebentar o chão em torno dela, rachando o solo e rebentando tudo". (AZEVEDO, 2005, p.23)
Percebe-se aqui a fórmula naturalista em que as descrições do espaço tornam-se fundamentais para o entendimento da obra. É como afirma Bossi (1994), "Existe o quadro: dele derivam as figuras"
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*Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo (1857-1913), nascido em São Luís do Maranhão, foi o primeiro escritor brasileiro a viver unicamente da literatura, foi ainda jornalista, cronista, caricaturista e teatrólogo.Tornou-se o grande nome do naturalismo brasileiro. Exercendo funções diplomáticas morreu em Buenos Aires na Argentina.
caso do português Jerônimo, antes respeitado empregado da pedreira, que ao se apaixonar pela brasileira Rita Baiana vê sua vida mudar completamente. Por ela Jerônimo deixa a família, o trabalho e transforma-se numa pessoa totalmente voltada aos prazeres da carne.
"O português abrasileirou-se para sempre; fez se preguiçoso, amigo das extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fora-se lhe de vez o espírito da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer e deu-se todo, todo inteiro à felicidade de possuir a mulata e ser possuído só por ela, só ela e mais ninguém." (AZEVEDO, 2005, p.205)"
Com isso, observamos a tese determinista sendo comprovada de que o homem é produto do meio.
No espaço de João Romão o narrador insiste na antropomorfização das personagens caindo no código anti-romântico de despersonalização; para o narrador, no Cortiço, já não se distinguem homens de animais, objetos ou vegetais.
"Sentia-se, naquela fermentação sangüínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra."
( AZEVEDO,2005, p.34)
Visualizamos desta forma, a impessoalidade com que o narrador acentua a degradação das pessoas aproximando-as insistentemente de animais.
Na obra O Cortiço, Aluísio Azevedo retrata literariamente a realidade do Brasil no século XIX, sua ideologia e as relações sociais presentes no país de capitalismo incipiente em que o explorador vive perto do explorado.
O Cortiço é o espaço atópico, lugar da luta e do sofrimento; lá todas as personagens são empregados, biscateiros ou assalariados e dependem economicamente do grupo que mantém o capital e os meios de produção.
A obra apresenta-se como uma contra-ideologia uma vez que segundo Sant'Anna (1973), embora voltada para o referente externo e para a verossimilhança ambiental, ela já não é transparente ao real, porque propõe um novo real, por onde afirma sua relativa opacidade em relação à ideologia dominante. (SANT'ANNA,1973.p.34)
Dessa forma, percebemos que a obra é contra-ideológica posto que denúncia o código social do momento como também crítica o espaço da ideologia dominante.
O narrador mostra João Romão "na sua moléstia nervosa de possuir" como a única personagem que não se deixa corromper pelo espaço mixórdico de moradia e faz uma distinção ente os que já venceram e os que se esgotam na labuta diária pela própria sobrevivência.
Isso nos faz pensar no que diz Bosi (1994), quando expõe que
[...] uma análise mais percuciente atribuiria ao sistema desumano do trabalho, que deforma os que vendem e úlcera os que compram, à consciência do naturalista aparece como um fado de origem fisiológica, portanto inapelável. Como de caráter absoluto ao que é efeito da iniqüidade social, o naturalista acaba fatalmente estendendo a amargura da sua reflexão à própria fonte de todas as suas leis: a natureza humana afigura-se a uma selva onde os fortes comem os fracos."( BOSI,1994, p. 191)
Observamos aqui as contradições sociais e humanas fruto das atribulações histórico-concretas do nosso país, que nascem no naturalismo como invenção de um "destino" ambiental e biológico, sobre o qual o ato humano não teria nenhum valor.
3. SOBRADO DO MIRANDA
O espaço oponente ao Cortiço de João Romão é o sobrado aristocratizante do comerciante Miranda e sua família. O sobrado representa a burguesia ascendente do século XIX.
Oespaço fictício supracitado, enquadrado na obra situa-se no bairro do Botafogo no Rio de Janeiro e explora a exuberante natureza local como meio determinante.
"A casa era boa; seu único defeito estava na escassez do quintal; mas para isso havia remédio: com muito pouco compravam - se umas dez braças daquele terreno de fundo, que ia até a pedreira, e mais uns dez ou quinze palmos do lado em que ficava a venda."
(AZEVEDO, 2005, p.17)
Analisando a estrutura vertical do sobrado do Miranda, percebe-se o confronto entre as personagens do Cortiço e do sobrado. O primeiro nivela-se por baixo, pela pobreza; o segundo caracteriza-se pela capacidade de barganha e mediação necessárias a sua própria sobrevivência.
Vejamos.
"Prezava acima de tudo sua posição social e tremia só com a idéia de ver-se novamente pobre, sem recursos e sem coragem para recomeçar a vida, depois de se haver habituado a umas tantas regalias e afeito à hombridade de português rico que já não tem pátria na Europa."
(AZEVEDO, 2005, p.14)
Compreende-se dessa forma a capacidade de troca mútua de favores existente nas relações das personagens do sobrado em que ambos se beneficiam. Miranda por um lado teme a pobreza, Estela sua esposa, por seu turno, precisa manter-se casada para ser respeitada diante da sociedade da época.
O sobrado pode ser entendido como o espaço tópico, lugar conhecido onde se vive em segurança e conforto apesar dos conflitos existentes entre os seus moradores.
Os integrantes do espaço sobrado diferentemente da comunidade do Cortiço que buscam no instinto e na violência meios para conseguir seus objetivos, utilizam -se de regras culturalmente complexas e definidas para atingir suas metas.
Reafirmando o que dissemos anteriormente, o próprio Miranda, homem rico, porém, infeliz desde que pegou sua mulher em adultério, não se separa para não perder a fortuna proveniente do dote da esposa, Miranda vê no baronato uma forma de superar sua "pequenez" investindo em algo que só a ele pertenceria, sem ter que restituí-lo a ninguém.
Observemos.
"Semelhante preocupação modificou o em extremo". Deu logo para fingir-se escravo das conveniências, afetando escrúpulos sociais, empertigando-se quando e disfarçando sua inveja pelo vizinho com um desdenhoso ar de superioridade condescendente. Ao passar-lhe todos os dias pela venda, cumprimentava-o com proteção sorrindo sem rir e fechando logo a cara em seguida, muito sério. ( AZEVEDO,2005, p.25)
Nota-se nesta citação o uso das máscaras sociais e o uso de regras definidas culturalmente como forma de possuir o bem que se almeja.
Miranda é o representante da elite burguesa do século XIX, sua condição social o diferencia das classes baixas, sobretudo de João Romão que apesar de deter o capital não participa da vida em sociedade. Com Miranda, João Romão entende que não basta ter dinheiro, é preciso ostentar uma vida reconhecida e ativa na vida burguesa.
Segundo Sant'anna,(1973, p.99), toda movimentação de Romão, é para sair do solo puramente biológico einstintivo em que se agita o cortiço e entrar numa organização social regida por um sistema jurídico e político representativo da Cultura[...] representado pelo espaço do Miranda.
Para imitar as conquistas do rival, João Romão promove várias mudanças na estalagem, que ostenta depois das reformas ares aristocráticos.
O cortiço muda, perdendo seu caráter desorganizado e miserável para se transformar na vila São Romão, superando em estrutura e beleza o sobrado do Miranda.
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
Aguiar E Silva, Vitor Manuel de. A Estrutura do Romance. In Teoria da Literatura. 8ª ed. Coimbra: Almedina, 1991, p.22 a 49.
Azevedo, Aluísio. O Cortiço. 9ª ed. Santa Catarina: Avenida, 2005.
Bosi, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 41ª ed. São Paulo: Cultrix, 1994, p. 190.
D'ONOFRIO, Salvatore. Plano do Enunciado. In Teoria do Texto. 2ª ed. São Paulo: Àtica, 2006, p. 96 a 99.
MASSAUD. Moisés. Análise de Texto em Prosa. In Análise Literária. 14ª ed. São Paulo: Cultrix, 2003, p. 107 a 109.
SANT'ANNA, Afonso Romano de. O Cortiço. In Análise Estrutural de Romances Brasileiros. Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes, 1973 p.97 a 114.