Iniciamos este artigo explicando ao amigo leitor uma regrinha básica que vamos elucidar de forma clara e simples: todas as leis, normas, portarias, etc. não podem ter validade maior do que a Constituição Federal. Na Constituição, existem ainda o que chamamos de artigos pétreos (que vem de pedra) que não podem ser modificados; dentre eles citamos o artigo 1º, inciso III, que define a dignidade da pessoa humana como fundamento básico desta República, e o artigo 5º inciso XXXII, que determina que o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor. A Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor – CDC), é norma decorrente desse mandamento constitucional, devendo-se considerá-la como cláusula pétrea da Constituição Federal.

            Qualquer lei que conflite com a CF de 88, e conseqüentemente ao CDC, é considerada no meio jurídico como 'inconstitucional', como é o caso da Lei nº. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 que no seu artigo 6º, § 3º, inciso II, não caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade. Esse artigo sob o qual as companhias de energia elétricas alegam cortarem o fornecimento dentro de uma permissão legal é, portanto, inconstitucional. 

            A mesma lei que citamos acima, que dá o direito do corte de fornecimento de energia elétrica (8.987/95 - que dispõe sobre o regime de concessão e permissão de serviços públicos), estabelece no seu art. 6º, que "Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários", afirmando no § 1º o conceito de serviço adequado como sendo "o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”.        

            O serviço de energia é serviço público essencial, subordinado ao princípio da continuidade, na forma do art. 22 do Código do Consumidor, da mesma forma que o serviço de telefonia e água.

            Enuncia o art.22 e seu parágrafo único do CDC , que "Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais contínuos".

            Como o CDC não define o que vem a ser 'serviço essencial', a Portaria nº. 03/99 da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (publicada em 19/0399), reconheceu como serviço essencial o fornecimento de água, energia elétrica e telefonia.

            No mesmo sentido estabelece o art. 22, parágrafo único do CDC:

"Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados na forma prevista neste Código" .

            Antônio Herman Benjamin conclui ao comentar o parágrafo único do art.22 do CDC. que: "Uma vez que a Administração não esteja cumprindo as quatro obrigações básicas enumeradas pelo caput do art.22 (adequação, eficiência, segurança e continuidade), o consumidor é legitimado para, em juízo, exigir que sejam as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las. Mas não é o bastante para satisfazer o consumidor, uma vez que a Administração é coagida a cumprir os seus deveres apenas a partir de decisão, ou seja, para o futuro, por isso mesmo, impõe o ressarcimento dos prejuízos sofridos pelos consumidores".(1)

            Diante dos conflitos de consumo, que surgem a cada dia entre o fornecedor e o consumidor, verifica-se o desequilíbrio entre as partes, em face de uma prática comercial abusiva ditada pela parte mais forte, demonstrando a manifesta vantagem excessiva. Surge assim a necessidade do intervencionismo estatal, permitindo inclusive a revisão das cláusulas contratuais pactuadas em razão do abuso, que implica lesão ao direito do consumidor.

            Está evidente que as práticas abusivas ocasionam um desequilíbrio na relação de consumo, podendo ocasionar uma lesão à parte mais desfavorecida.

            Segundo Maria Cecília Nunes Amarante, o poderio econômico da parte mais forte faz evoluir o desequilíbrio da força contratual, que dita condições, faz prevalecer interesses egoístas, contrata sem combate, mascarando os privilégios e assegurando a eficiência e a rentabilidade.(2)

            Na relação de consumo entre a companhia de energia elétrica e o consumidor, fica claro que os princípios contratuais clássicos são deixados de lado e temperados pelo princípio da onerosidade excessiva (o que chamamos no meio jurídico de teoria da imprevisão e teoria da lesão).

            Se existe uma desvantagem exagerada, fica caracterizado para o consumidor uma lesão (laesio), sendo este tema abordado pela doutrina como Teoria da Lesão.

            Segundo o professor Sílvio Capanema, “a lesão é vício do negócio jurídico em grau de igualdade do dolo, erro ou vício do negócio jurídico, sendo certo que o fato de a parte contratar não implica que a mesma não possa discutir o contrato, buscando a revisão de cláusulas com onerosidade excessiva”.(3)

            Por isso, no caso da manifesta vantagem excessiva a doutrina jurídica denomina este fato de dolo de aproveitamento, que é vedado pelo Código de Defesa do Consumidor, não prevalecendo em relação à parte mais vulnerável.

            O fato de o fornecedor efetuar o desligamento de energia elétrica do consumidor inadimplente ocasiona uma lesão ao direito do consumidor, dificultando o direito de acesso à justiça para discussão do débito indevido, consolidando em vantagem manifesta excessiva para o fornecedor (autotutela). E mais, o Estado, por força de preceito constitucional, tem responsabilidade solidária pelos danos causados por seus agentes a terceiros (CF, artigo 37, §6º), ou seja, as sanções não devem ser aplicadas somente à companhia de energia elétrica como também ao Governo que delegou a concessão dos serviços.

            Alguns ainda podem alegar o princípio jurídico de que a lex posteriori revoga legis a priori - “ a lei posterior revoga a lei anterior” (princípio do retrocesso), mas, mesmo assim, admitir a possibilidade do corte de energia elétrica implica em um flagrante retrocesso ao CDC, que foi consagrado a nível constitucional.                 Além do mais, o princípio de retrocesso veda que lei posterior possa desconstituir qualquer garantia constitucional. Ainda que lex posteriori se estabeleça nesse sentido, a norma deverá ser considerada inconstitucional.

            Os serviços de fornecimento de energia elétrica, água e telefonia são considerados essenciais, não podendo sofrer descontinuidade. Por isso, deve-se pôr fim à suspensão desses serviços por inadimplemento do usuário. A população de baixa renda é a maior prejudicada pelos cortes de energia elétrica e água. Não raro, o consumidor não efetua o pagamento não porque não quer, mas porque há situações imprevisíveis que fogem a esfera de sua vontade, tais como o atraso no salário, problemas de saúde, etc... inviabilizando o pagamento da conta de energia elétrica. Nesta situação, como é que alguém pode pagar as tarifas de luz e/ou água em dia?                         Quando o corte é efetuado em uma sexta-feira o transtorno e a humilhação do usuário e de sua família é ainda maior. E mais, o consumidor ainda tem de pagar para que o serviço de religação seja efetivado. Isso é uma vergonha! O corte de energia elétrica pelo seu não pagamento é a violação clara do direito líquido e certo do consumidor, um desrespeito e um grande desafio ao poder judiciário, em particular ao Ministério Público.