Todo aniversário de Nagiko, órfã de mãe, era marcado pelo mesmo ritual: o pai escrevia no seu rosto, na nuca e nas costas uma oração em ideograma e a tia, em voz alta, lia trechos do livro de Sei Shonagon. Eram momentos preciosos. Nagiko sentia o movimento do pincel se contornando em caligrafia e escutava o texto proferido com clamor. Encantamentos da palavra e da escuta. Presente sem dinheiro, mas com absoluto valor. Instante revelador do poder das palavras. Palavras que adentravam a pele de menina, conduzindo-a aos ciclos da vida e transformando seu corpo em mulher.

Difícil saber com quantas palavras se faz um corpo (2). Nem mesmo Nagiko, seu pai ou sua tia saberiam responder. Mas é preciso ter consciência das substancias potentes que existem nas palavras, porque elas são capazes de criar, salvar, unir, deformar, esquartejar e até matar um ou vários corpos. Sejam ditas ao vento ou escritas em suportes, elas dão forma aos conceitos, modulam sentidos e concretizam ações, ideologias, afetos, políticas e compreensões sobre a vida - embora não sejam a vida em si. Como disse Tiburi, toda palavra é um sistema de pensamento inteiro e compactado. O fragmento na sua verdade sistemática e imediatamente expressa. Espécie de botão de flor do pensamento, mais do que semente (3).

Ter consciência que as palavras são peles dos conceitos é transformador. Se todos pensassem a esse respeito talvez desvelaríamos outros laços com a vida. Se assim fosse, talvez escolheríamos qual palavra carregar, retirar ou (res)significar em nós e sobre nós. Porque nem sempre são palavras de bênçãos que dão forma aos corpos, nem sempre a pele absorve palavras advindas do amor, como no caso de Nagiko. Às vezes, na verdade, é ao contrário.

Basta só lembrar dos momentos que por ventura recebemos palavras de dor. Ou na quantidade de vezes que escutamos: “Maria está gorda; Maria precisa de dietas; Maria é nova para ter filhos; Isso é coisa de mulher; José é desengonçado; José malha para ficar bonito; José precisa de anabolizante; José já passou da hora de casar; João é gay; João é negro; João é índio; Homem é assim mesmo; Josefa não é normal; Josefa é deficiente” e por aí vai. Quem nunca conheceu (ou foi) Maria, José, João ou Josefa? Quem nunca foi torturado por palavras e conceitos dentro de si? Quem nunca buscou por algum momento alcançar estéticas ou atender regulações sociais? Quem, mesmo por instantes, não deixou de aceitar o espelho de si por não refletir a imagem dos outros? Não é possível saber as respostas, mesmo porque nem todos, ao contrário de Nagiko, perceberam que seus corpos são livros, com palavras gravadas por todos os poros.

É bem verdade que Nagiko é personagem fictício e não anda pelas ruas. Mas qualquer um pode vê-la nas cenas do filme “O livro de cabeceira” (1996), do diretor Peter Greenaway. E assim acompanhar a menina crescendo, tornando-se modelo profissional e fazendo valer o conceito de “livrocorpo” em suas varias relações sexuais e afetivas. O filme é pura poesia, construído com fotografias e textos que mesclam prazeres, escritas, dores, sexo, livros e amores. Como afirma Rafaelli, não é um filme japonês, mas um filme realizado por um cineasta ocidental que se expressa através das referências orientais, procurando criar uma mistura entre Ocidente e Oriente, pelas referencias musicais e estéticas inspiradas por pintores como Utamaro, Hosukai e Hiroshige – entre os orientais – e Gauguin, Degas, Whistler, Schiele, Toulouse- Lautrec, Vuillard e Klint – entre os ocidentais (4).

Embora eu não esteja analisando o filme, as cenas de Nagiko, mescladas aos debates das aulas do DIVERSITAS/USP (5), levaram-me a refletir sobre o poder das palavras e aquilo que entendemos e percebemos como corpo. Não só o corpo do indivíduo, mas também o corpo social que constitui e regula a todos no tempo e no espaço, mesmo quando considerados isolados, marginalizados ou excluídos. Levaram-me a pensar sobre a importância do pensar, sobre a importância das tensões e das integrações dos sentidos.

Machado de Assis ensina que palavra puxa palavra, uma idéia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução (6). E deve ser. Ao longo da vida vão escrevendo (e vamos aceitando) palavras em nossos corpos, dizendo como ele é, como ele deveria ser, o que ele sente, o que ele deveria sentir, o que ele faz, o que ele deveria fazer e muito mais. Entretanto, se parássemos para perceber, com atenção e sem julgamentos, as palavras constituintes do nosso corpo (com sentimentos, sensações, contradições e contextos), atravessaríamos a superfície, aprofundaríamos a vida e transmutaríamos a carne.

Palavras são pele. Conceitos são carne. Ambos pedem atenção, zelo e trato. Usar as palavras é trabalhar os conceitos e vice-versa, porque um não existe sem o outro, não havendo, portanto, pensar, ou pensamento sem palavras. Esse entendimento nos convida a esfoliar a pele para (res)significar a carne. Em exercício físico e simbólico para favorecer fluxo, energia e movimento à existência, com consciência e dedicação. Feito como quem se permite respeitar e conhecer, como quem se liberta para novos ciclos ou feito como Nagiko, quando criança, recebendo o presente do pai e da tia, renovando a vida com bênçãos sobre o corpo e poesias pelos ouvidos. É preciso ritualizar as palavras que adentram os poros, empoderar o rosto, proteger a nuca e fortalecer as costas para celebrar não só o aniversário, mas toda uma possível e contínua experiência de poder escrever a si mesmo o livro que seu corpo merece ser.

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(1) Carrijo, Elizângela – Historiadora. E-mail: [email protected]

(2) Brum, Eliane. Meus desacontecimentos – A história da minha vida com as palavras. SP, Leya, 2014.

(3) Tiburi, Marcia. Profanação: ato metafísico e democrático. Revista Cult. Junho, 2007.

(4) Raffaelli, Rafael. O Livro de Cabeceira: o livrocorpo. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. FPolis. Florianópolis/SC: Universidade Federal de Florianópolis, outubro, 2005.

(5) Diversitas – Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos, da Universidade de São Paulo (USP). Disciplina Conhecimento, compreensão e Novas Legitimidades, ofertada pelo Programa de Pós-Graduação, Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades, conduzida neste 2o semestre de 2015 pelos professores/as: Eucenir F. Rocha; Marcelo A. Nerling e Gilson Schwartz. Ver mais em: http://diversitas.fflch.usp.br/ .

(6) Assis, Machado. Primas de sapucaia, In: Historias sem data. Obra Completa, vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1884. Disponível em http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/contos/macn004.pdf , acesso 28 nov. 2015.

Fotos: Filme “O Livro de Cabeceira” (1996). Divulgação. Internet.