CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA SOB PANORAMA DO BRASIL

 

Mariana Teixeira da Silva

 

RESUMO: Este artigo possui o intuito de explorar e discorrer sob o panorama do Brasil acerca do Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990,que versa sobre a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e que inspirou a elaboração do Artigo 227 da CF e o ECA.

  

Palavra-chave: Direito Internacional Público; Direitos Fundamentais; Direito da criança e do adolescente; Aplicabilidade de tratados internacionais no Brasil;

 

1- INTRODUÇÃO

 Inicialmente  far-se necessário afirmar que no ordenamento jurídico brasileiro está vigente, e é aplicável a doutrina da proteção integral, que prioriza mediante condutas protetivas o respeito aos direitos humanos e fundamentais, em especial daqueles mais vulneráveis que nesse contexto são as crianças. Entretanto a atenção que atualmente se constata na atual legislação nem sempre foi dispensada à infância e à juventude, subsistindo por décadas atitudes estatais repressivas que violavam seus direitos. As transformações estruturais no universo político no fim dos anos 80, eram muito propicias a mudanças de paradigma, e contrapuseram duas doutrinas em transição, denominadas de situação irregular (Direito do Menor) e da proteção integral (Direito da Criança e do Adolescente). 

Acerca do Código de Menores, LIBERATI[1] estabeleceu:

“[...] não passava de um Código Penal do “menor”, disfarçado em sistema tutelar; suas medidas não passavam de verdadeiras sanções, ou seja, penas, disfarçadas em medidas de proteção. Não relacionava nenhum direito, a não ser aquele sobre assistência religiosa; não trazia nenhuma medida de apoio a família; tratava da situação irregular da criança e do jovem, que, na verdade eram seres privados de seus direitos. Na verdade, em situação irregular está a família, que não tem estrutura e que abandona a criança; o Estado, que não cumpre as suas politicas sociais básicas, nunca a criança ou o jovem (LIBERATI, 1991, p.2).

Por isso fez-se necessário a transição de doutrina para proteger e resguardar os direitos das crianças, preconizando a prioridade absoluta de garantir todas suas necessidades, possibilitando o total desenvolvimento de sua personalidade, visando amparar aqueles que se encontram em situações de vunerabilidade, deixando de ser considerados meramente como “objetos de direitos”, para ser reconhecidos como “sujeitos de direitos” fundamentais que lhe são inerentes. Foi a partir desse momento que a teoria da proteção integral estabeleceu-se como pressuposto paradigmático necessário para a formação do Direito da Criança e do Adolescente no Brasil.

São visíveis os avanços alcançados ao longo dos anos para obter o reconhecimento daa criançaa como sujeitos de direitos. A comunidade internacional elegeu o ano de 1979 como o Ano Internacional da Criança. A repercussão do evento e uma proposta oferecida anteriormente pela delegação  polonesa junto á ONU deram início as discussões que, 10 anos depois, iriam desembocar na assinatura da Convenção sobre os Direitos da Criança.[2]

O Estatuto da Criança e do Adolescente portanto surgiu como um sistema legislativo inovador cerca de dois anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual já havia atendido ao clamor da opinião pública e reservado espaço para a constitucionalização dos direitos dos menores e, em especial, à proteção integral da infância e da juventude.

 

2- A CONVENÇÃO E SEU CONTEXTO

Conforme explana Christiane Falsarella:

“Os tratados internacionais, após adotados pelo país, passam a integrar o ordenamento jurídico interno. No caso específico dos tratados de direitos humanos, seu impacto no direito interno é ainda mais significativo, na medida em que, obedecido o procedimento previsto no art. 5 º, §3º, da CF, são integrados co status ao de emendas constitucionais.” [3] 

No Brasil o direito da criança e do adolescente são normativados na Constituição Federal, especificamente em seu artigo 227, e na Lei 8.069/1990, em todo o seu teor. No âmbito internacional, são consagrados em tratado específico: 

“A convenção sobre os direitos da criança. Referida convenção foi adotada pelas Nações Unidas em novembro de 1989. Entrou em vigor em 1990, sendo ratificada no Brasil em 24 de setembro do mesmo ano. No total, 193 países ratificaram a Convenção sobre os Direitos da Criança.[4]

Valido ressaltar que a presente convenção possui campo de proteção amplo, já que o Estatuto da Criança e do Adolescente considera em seu Artigo 2º: criança a pessoa com até 12 anos de idade incompletos (sujeitos somente a medidas protetivas), e adolescente aquela pessoa entre 12 e 18 anos de idade (sujeitos também a medidas socioeducativas). 

Já a Convenção sobre os Direitos da Criança estabelece em seu art 1º: “Para efeitos da presente Convenção considera-se como criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes.”

Sobre o impacto dos tratados internacionais de direitos humanos no Direito brasileiro, Flávia Piovesan, entende que:

“Ao tratar do impacto dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos na ordem jurídica brasileira, apresenta três possiblidades. O direito enunciado no tratado internacional poderá: a- coincidir com o direito assegurado pela Constituição (neste caso a Constituição reproduz preceitos do Direito Internacional dos Direitos Humanos; b- integrar, complementar e ampliar o universo de direitos constitucionalmente previstos; c- contrariar preceito do direito interno.”[5]

Entende Flávia Piovesan que “os tratados internacionais de direitos humanos inovam significantemente o universo dos direitos nacionalmente consagrados – ora reforçando sua imperatividade jurídica, ora adicionando novos direitos, ora suspendendo preceitos que sejam menos favoráveis a proteção dos direitos humanos. E em todas essas três hipóteses, os direitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a a aprimorar e fortalecer, nunca a restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo constitucional. Neste sentido, pode-se afirmar que os tratados de direitos humanos fixam pisos protetivos mínimos, prevalecendo a dispositivos que for mais benéfico para o direito em questão.”[6]

A presente Convenção sobre os direitos da criança complementou e deu caráter vinculante a Declaração aprovada pelas Nações Unidas 30 anos antes. “A Convenção se divide em 4 blocos: um detalhado preâmbulo com 4 artigos; uma primeira parte com princípios gerais e 36 artigos em que reconhece o direito da criança e do adolescente; uma segunda parte com 4 artigos em que estabelece seu órgão de controle, o Comitê para os Direitos da Criança; e uma terceira parte, com 9 artigos, em que estabelece os mecanismos para as ratificações, adesões, reservas e emendas.[7]

Em seu preâmbulo reconhece que as Nações Unidas e todos que aderiram a convenção proclamaram e acordaram na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos Pactos Internacionais de Direitos Humanos que toda pessoa possui todos os direitos e liberdades nele enunciados, sem distinção de qualquer natureza, seja de raça, cor, sexo, idioma, crença, opinião política ou de outra indole, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição. Proclamando ainda que a infância tem direito a cuidados e assistência especiais. 

A Convenção seus artigos 27 e 40, versa sobre alguns dos direitos que a criançe o "dever" da criança que comete ato infracional, respectivamente, e que no âmbito interno também é regulado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

"ARTIGO 27.

1 – Os Estados Partes reconhecem à criança o direito a um nível de vida suficiente, de forma a permitir o seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social.

2 – Cabe primacialmente aos pais e às pessoas que têm a criança a seu cargo a responsabilidade de assegurar, dentro das suas possibilidades e disponibilidades económicas, as condições de vida necessárias ao desenvolvimento da criança.

3 – Os Estados Partes, tendo em conta as condições nacionais e na medida dos seus meios, tomam as medidas adequadas para ajudar os pais e outras pessoas que tenham a criança a seu cargo a realizar este direito e asseguram, em caso de necessidade, auxílio material e programas de apoio, nomeadamente no que respeita à alimentação, vestuário e alojamento.

4 – Os Estados Partes tomam todas as medidas adequadas tendentes a assegurar a cobrança da pensão alimentar devida à criança, de seus pais ou de outras pessoas que tenham a criança economicamente a seu cargo, tanto no seu território quanto no estrangeiro. Nomeadamente, quando a pessoa que tem a criança economicamente a seu cargo vive num Estado diferente do da criança, os Estados Partes devem promover a adesão a acordos internacionais ou a conclusão de tais acordos, assim como a adopção de quaisquer outras medidas julgadas adequadas. " 

"Artigo 40:

1 – Os Estados Partes reconhecem à criança suspeita, acusada ou que se reconheceu ter infringido a lei penal o direito a um tratamento capaz de favorecer o seu sentido de dignidade e valor, reforçar o seu respeito pelos direitos do homem e as liberdades fundamentais de terceiros e que tenha em conta a sua idade e a necessidade de facilitar a sua reintegração social e o assumir de um papel construtivo no seio da sociedade.

 2 – Para esse efeito, e atendendo às disposições pertinentes dos instrumentos jurídicos internacionais, os Estados Partes garantem, nomeadamente, que:

a) Nenhuma criança seja suspeita, acusada ou reconhecida como tendo infringido a lei penal por acções ou omissões que, no momento da sua prática, não eram proibidas pelo direito nacional ou internacional; 

b) A criança suspeita ou acusada de ter infringido a lei penal tenha, no mínimo, direito às garantias seguintes:

i) Presumir-se inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida;

 ii) A ser informada pronta e directamente das acusações formuladas contra si ou, se necessário, através de seus pais ou representantes legais, e beneficiar de assistência jurídica ou de outra assistência adequada para a preparação e apresentação da sua defesa;

iii) A sua causa ser examinada sem demora por uma autoridade competente, independente e imparcial ou por um tribunal, de forma equitativa nos termos da lei, na presença do seu defensor ou de outrem assegurando assistência adequada e, a menos que tal se mostre contrário ao interesse superior da criança, nomeadamente atendendo à sua idade ou situação, na presença de seus pais ou representantes legais;

iv) A não ser obrigada a testemunhar ou a confessar-se culpada; a interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e a obter a comparência e o interrogatório das testemunhas de defesa em condições de igualdade;

v) No caso de se considerar que infringiu a lei penal, a recorrer dessa decisão e das medidas impostas em sequência desta para uma autoridade superior, competente, independente e imparcial, ou uma autoridade judicial, nos termos da lei; 

vi) A fazer-se assistir gratuitamente por um intérprete, se não compreender ou falar a língua utilizada;

vii) A ver plenamente respeitada a sua vida privada em todos os momentos do processo. 

3 – Os Estados Partes procuram promover o estabelecimento de leis, processos, autoridades e instituições especificamente adequadas a crianças suspeitas, acusadas ou reconhecidas como tendo infringido a lei penal, e, nomeadamente:

 a) O estabelecimento de uma idade mínima abaixo da qual se presume que as crianças não têm capacidade para infringir a lei penal; 

b) Quando tal se mostre possível e desejável, a adopção de medidas relativas a essas crianças sem recurso ao processo judicial, assegurando-se o pleno respeito dos direitos do homem e das garantias previstas pela lei.

4 – Um conjunto de disposições relativas, nomeadamente, à assistência, orientação e controlo, conselhos, regime de prova, colocação familiar, programas de educação geral e profissional, bem como outras soluções alternativas às institucionais, serão previstas de forma a assegurar às crianças um tratamento adequado ao seu bem- estar e proporcionado à sua situação e à infracção." 

Esses direitos reconhecidos em um tratado internacional ampliam em tese os direitos constitucionais, ainda que muitos destes coincidam, com aqueles constantes na CF e no ECA. Entretanto segundo pesquisa realizada por Christiane Falsarell, e mencionada na Revista de Direito Constitucional e Internacional (abr/jun de 2013, p.417), "na jurisprudência do STF tendo como parâmetro Convenção sobre os Direitos da Criança foram localizados somente dez acórdãos. Já uma pesquisa tendo como parâmetro o direito da criança apresenta diversos resultados, sendo 107 acórdãos e uma decisão em repercussão geral. Nota-se, assim, não ser frequente a alusão a dispositivos da Convenção sobre os Direitos da Criança na jurisprudência do STF. Essa situação pode ser explicada pela identidade entre a maioria dos direitos garantidos pela Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente, de um lado, e pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, de outro. Sendo o parâmetro interno igual ao internacional, na medida em que o mesmo direito é garantido por ambos os parâmetros, há uma tendencia na jurisprudencia em apoiar-se em dispositivo interno 

 

3- CONCLUSÃO

Após superficial reflexão acerca do tema que envolve assunto de aspectos que circunstanciam a vida (que são os direitos fundamentais) das crianças, é possível “afirmar ter sido justificada sua aparição e vitoriosa sua trajetória. Porém, ao reconhecer importantes direitos de caráter social a esse coletivo, a Convenção obrigou os Estados a reorganizar suas estruturas orçamentárias, administrativas e de recursos humanos, tarefa muitas vezes negligenciadas. A ausência dessas estruturas, determinantes para a efetividade de direitos que exigem prestações estatais, somada á pouca coercitividade do mecanismo convencional de garantia dos direitos estabelecidos, pode levar, naqueles países relapsos com suas obrigações, ao incumprimento do diploma internacional.” [8]

Quanto a análise jurisprudencial do STF acerca da Convenção do Direito da Criança, conclui-se que via de regra existe um recorte, aplicação e apoio do dispositivo interno ao da Convenção. Entretanto não é possivel somente com esses dados negar a existência de influencia da convenção sob o panorama brasileiro. Segundo Falsarella: "A influência existe e começou com o próprio processo de formaçãoda legislação interna relativa aos direitos da criança. Observa-se que o ECA recebeu em sua elaboração o influxo das diretrizes fixadas na Convenção sobre os Direitos da Criança. Os dois documentos, em conjunto com a CF, vieram inaugurar uma nova fase na defesa dos direitos da criança, caracterizado por sua proteção integral,como sujeito de direito. Existe portanto um impacto positivo da Convenção sobre os Direitos da Criança no âmbito brasileiro.

 

 

 

[1] 

[2] ANDRADE, Anderson Pereira de. A Convenção sobre os Direitos da Criança em seu Décimo Aniversário: avanços, efetividade e desafios. Revista do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. v.3, p. 37-52, jan/jun de 2000. 

[3] FALSARELLA, Christiane. O impacto da Convenção sobre os direitos da Criança no Direito Brasileiro. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v.21, p.410, abr/jun de 2013.

[4] Idem p.412.

[5] FALSARELLA, Christiane. O impacto da Convenção sobre os direitos da Criança no Direito Brasileiro. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v.21, p.416, abr/jun de 2013.

[6] PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 3.ed. São Paulo: Saraiva,2009.p.24-25.

[7] ANDRADE, Anderson Pereira de. A Convenção sobre os Direitos da Criança em seu Décimo Aniversário: avanços, efetividade e desafios. Revista do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. v.3, p. 40, jan/jun de 2000.

[8] Idem, p.49.