Controle de Convencionalidade x Controle de Constitucionalidade: Equívocos de Tribunais Brasileiros Introdução Este trabalho visa analisar a dificuldade de compreensão dos tribunais brasileiros para reconhecer sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos que declarou a invalidade da Lei de Anistia brasileira (Lei nº 6.683/1979), por meio de controle de convencionalidade. Para isso, pretende explicar o que é este tipo de controle, bem como diferenciá-lo em relação ao controle de constitucionalidade. Por conseguinte, passa-se a análise de equívocos cometidos por cortes nacionais e importância do pendente pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre o tema. Origem da problemática A problemática da compatibilidade entre o controle de constitucionalidade e o controle de convencionalidade tomou maior repercussão a partir de dois julgamentos distintos envolvendo o mesmo dispositivo normativo, qual seja a Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, conhecida como “Lei da Anistia”. Esta lei concedeu anistia aos que cometeram crimes políticos, ou conexos com estes, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. O primeiro julgamento foi exarado pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, em 28 de abril de 2010, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A Ordem pretendia que a Suprema Corte anulasse o perdão dado aos representantes do Estado (policiais e militares) acusados de praticar atos de tortura durante o regime militar. O caso foi julgado improcedente por 7 votos a 2 e culminou no entendimento de que a Lei da Anistia era constitucional. Já o segundo julgamento foi proferido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) de 24 de novembro de 2014, no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, com objetivo de imputar a responsabilidade do Brasil pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçada de 70 pessoas, entre eles camponeses e membros do Partido Comunista do Brasil (PC do B), em razão de ações promovidas pelo Exército brasileiro entre 1972 e 1975 com o objetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia. Nesta ocasião, decidiu-se a desconformidade da Lei da Anistia em relação ao Pacto de São José da Costa Rica do qual o Brasil é signatário. Portanto, determinou-se que a inconvencionalidade de lei perante esse tratado. Controle de Convencionalidade x Controle de Constitucionalidade O controle de convencionalidade e o controle de constitucionalidade são fenômenos jurídicos semelhantes. Ambos consistem em analisar a conformidade de atos jurídicos, entretanto, com parâmetros distintos. O primeiro cuida de analisar o ato jurídico e sua compatibilidade em face à tratados internacionais, enquanto que o segundo cuida de verificar a compatibilidade de acordo com a Constituição Federal. Uma norma jurídica deve guardar conformidade com ambas as ordens, tanto com a constitucional, quanto com a internacional. Portanto, pode ocorrer que uma lei esteja em conformidade com o direito interno, mas não com o direito internacional, bem como o contrário. Entretanto, basta que ocorre desconformidade com um desses âmbitos normativos para que ocorra a necessidade de excluí-la do ordenamento jurídico. Ademais, cumpre ressaltar que a decisão das Cortes Internacionais, como ocorre com as cortes nacionais, gozam de imperatividade. Não se pode desprezar o seu cumprimento sob a égide de que o Estado é soberano, pois é justamente a partir do exercício desta soberania é que se derivou a legitimidade e exigibilidade das decisões internacionais, já que o Estado escolheu se submeter às normas dispostas nos tratados internacionais, sobretudo naquelas que instituem as Cortes Internacionais e estipulam a imperatividade das suas decisões. O Brasil promulgou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) por meio do Decreto 678/1992. Com o Decreto 4.463/2002, reconheceu de maneira expressa e irrestrita como obrigatória, de pleno direito e por prazo indeterminado, a competência da Corte IDH em todos os casos relativos à intepretação e aplicação da convenção. O artigo 68 da convenção estabelece que os Estados-partes se comprometem a cumprir a decisão da Corte em todo caso no qual forem partes. Caso descumprida as sentenças desse tribunal internacional, o Brasil poderá sofrer sanções internacionais e ser excluído da Organização dos Estados Americanos (OEA), além de gerar desprestigiar o país no cenário internacional. Além disso, ratifica a plena repercussão dos julgamentos da CIDH no ordenamento interno o fato de que as sentenças das cortes internacionais sequer se enquadram no artigo 105, inciso I, alínea “i”, da Constituição Federal. Ou seja, não há necessidade de homologação pelo Superior Tribunal de Justiça. As sentenças que se enquadram no artigo são aquelas proferidas por juiz de tribunal estrangeiro e não as emanadas pelas cortes internacionais. Assim, as decisões dos tribunais internacionais vinculam a ordem interna, ainda que se decida a inconvencionalidade de determinada norma após o reconhecimento de sua constitucionalidade, pois não há relação de prejudicialidade entre os dois institutos. O que pode ocorrer é a necessidade de adequação das duas ordens, isto é, quando uma norma de direito internacional passa a integrar o espaço constitucional, como ocorreu no caso dos tratados internacionais de direitos humanos aprovados internamente com o procedimento das emendas constitucionais. Essa questão, ainda sim, tratava-se efetivamente de um controle de constitucionalidade. Logo, não há qualquer conflito entre os julgamentos do Excelso Pretório e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A partir do momento em que foi proferida a sentença desta última corte, a Lei de Anistia passou a estar em desacordo com o ordenamento jurídico brasileiro e as manifestações das cortes brasileiras deveriam dispor nesse sentido. Equívocos de tribunais brasileiros Entretanto, os tribunais brasileiros proferem decisões ignorando a repercussão da decisão interamericana de direitos humanos. Nesse sentido, se manifestou o Ministério Público Federal, por meio da sua Procuradoria-Geral da República nos autos do processo da ADPF nº 320 (Parecer Nº 4.433/AsJConst/SAJ/PGR)., de autoria do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) que contesta a validade da lei em face da sentença da CIDH. Veja-se: “Não obstante o esforço do Ministério Público Federal, evidenciado pelas 9 ações penais já ajuizadas e pelas 187 investigações em andamento a respeito de delitos cometidos durante a ditadura militar, é necessário reconhecer a ocorrência de decisões judiciais posteriores e contrárias à sentença do caso GOMES LUND, veiculadoras de resoluções aptas afetar a integridade de preceitos fundamentais (para citar a expressão empregada pelo Ministro CELSO DE MELLO no julgamento da ADPF 187/DF). “Conforme apurou a Procuradoria-Geral da República, das 9 ações ajuizadas pelo MPF em face de 22 agentes civis e militares envolvidos em crimes de lesa-humanidade cometidos durante a ditadura militar, apenas 3 se encontram com instrução em andamento nas outras 6 ocorreu trancamento da ação penal por decisão em habeas corpus ou rejeição da denúncia, ratificada ou não posteriormente pelo tribunal correspondente. Em vários casos, o fundamento da paralisação foi justamente a Lei da Anistia. Em outros processos invocou-se prescrição e em outros ainda, descaracterizou-se a natureza permanente do crime de desaparecimento forçado (definido no Código Penal brasileiro como sequestro ou ocultação de cadáver). Duas dessas ações referem-se especificamente a fatos da Guerrilha do Araguaia e caracterizam afronta direta ao decidido pela Corte Interamericana. Portanto, órgãos judiciais do Estado brasileiro efetivamente erguem obstáculos concretos à persecução penal, não propriamente por ausência de lei interpretativa, como afirma a inicial. O que se verifica é o não reconhecimento do efeito vinculante da sentença do caso GOMES LUND por “interpretações judiciais que se antagonizam em torno do alcance que se deve dar, à luz dos grandes postulados constitucionais”,12 ao art. 1o da Lei 6.683/1979, aos preceitos concernentes à imprescritibilidade penal, à caracterização do desaparecimento forçado de pessoas e à existência de coisa julgada – diante da sentença internacional válida e vinculante para as autoridades e órgãos do país.” Portanto, conforme aduz o MPF, os tribunais atuam em sentido contrário à decisão da Corte Interamericana de direitos humanos ao impedirem a persecução penal devido à anistia e a prescrição. Quanto à esta, cumpre ressaltar que a CIDH no sentido de que não há prescrição, os crimes de desaparecimento forçado de pessoas são permanentes ou continuados, “cujos efeitos não cessam enquanto não se estabelece a sorte ou o paradeiro das vítimas e sua identidade sejam determinada” (parágrafo 179 da sentença do caso Gomes Lund vs. Brasil). Além disso, o Parquet procurou demonstrar a negligência do Judiciário brasileiro em relação ao tema, por meio da exposição de uma série 5 de julgados. Primeiramente a decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região no HC 0068063-92.2012.4.01.0000/PA, nos seguintes termos: “A lei da anistia tornou juridicamente impossível a persecução penal em exame, sem falar que os fundamentos da decisão, que, em juízo de retratação, recebeu a denúncia, têm base em premissas cuja lógica é apenas teórica e conceitual, sem uma efetiva conexão com os fatos do processo, com a devida licença. [...] Não é aceitável, sem ilegalidade, que o juízo de admissibilidade da ação, diante de fatos já exauridos nos planos da análise histórica, política e, sobretudo, jurídica, desconsidere-os todos, inclusive o veredicto do STF sobre a matéria, que se alça ao nível de impossibilidade jurídica do pedido, ao fundamento de ser necessária a instrução processual. A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento do caso GOMES LUND, cujo resultado, ao que se afirma, impôs ao Estado Brasileiro a realização, perante a sua jurisdição ordinária, de investigação penal dos fatos ocorridos na chamada Guerrilha do Araguaia, não interfere no direito de punir do Estado, e nem na decisão do STF sobre a matéria. [...].” Por conseguinte, a decisão da 2ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro de rejeição da denúncia na ação penal 0801434- 65.2013.4.02.5101: [...] a decisão do caso LUND vs BRASIL é de eficácia duvidosa, posto que prolatada em desconformidade com o termo de submissão do Brasil à competência da Corte IDH. [...] Ante o exposto, resta concluir que aqui não me cabe confrontar a Lei da Anistia com a sentença proferida pela Corte IDH no caso GOMES LUND vs BRASIL. Trata-se de sentença com eficácia restrita ao Estado-parte, desvinculada dos fatos narrados na presente denúncia, e que geraria – independentemente de qualquer obrigação indenizatória no campo internacional por descumprimento – inoportuna e ilegal revisão de normas estáveis de direito interno. Manifestou-se sobre a decisão da 10ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária de São Paulo de rejeição da denúncia no processo 000420432.2012.4.03.6181, em 22 de maio de 2012: “No que se refere ao efeito vinculante da sentença proferida pela Corte IDH no caso GOMES LUND, impende ressaltar que, embora não tenha o STF enfrentado especificamente tal ponto, porque posterior ao julgamento da ADPF 153, não deixou de consignar que a Lei de Anistia não pode sofrer desconstituição (ou inibição eficacial) por parte de instrumentos normativos promulgados após sua vigência.” Expôs decisão da 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região no recurso em sentido estrito 0004204- 32.2012.4.03.6181/SP: “Alegações de inoponibilidade da anistia e de descumprimento de decisão o da Corte Interamericana de Direitos Humanos que se aduz ser posterior a ADPF no 153 rejeitadas porquanto decisões proferidas em sede de arguição de descumprimento de preceito fundamental têm eficácia erga omnes e efeito vinculante, ou seja, atingem todos e atrelam os demais órgãos do Poder Público, cabendo ao próprio Supremo Tribunal Federal eventual revisão, ademais tendo o Brasil promulgado a Declaração de Reconhecimento da Competência Obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos sob reserva de reciprocidade e para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998, o que não é o caso dos autos. Inteligência dos artigos 10, § 3o, da Lei 9.882/99 e 102, inciso I, alínea l, § 1o, da Constituição Federal.” E, finalmente, decisão do Tribunal Regional Federal da 2a Região no HC 0005684-20.2014.4.02.0000: [...] tanto a denúncia quanto a decisão que a recebeu, revelam notável inconformismo com o sepultamento de investigações de fatos ocorridos em época de governo militar, definitivamente lançados à paz do arquivo, não só em função da extinção da punibilidade de todos os envolvidos em face do tempo decorrido, mas também pelo perdão e esquecimento outorgados pelos legítimos representantes do povo brasileiro, através do instituto da anistia. Inconformismo, ressalte-se, em relação a apenas um dos lados dos envolvidos naqueles fatos. É possível observar pelos julgamentos expostos que as decisões das cortes brasileiras contrárias ao julgamento da CIDH ignoram o julgamento desta Corte quase como “nada jurídico” ou, ainda que a reconheça, estabelece uma espécie de conflito com o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, clara demonstração de equívoco quanto a aplicação dos preceitos relativos ao controle de constitucionalidade e ao controle de convencionalidade. Necessário, contudo, esclarecer que existem decisões nos tribunais brasileiros que reconhecem a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos e afasta a aplicação da Lei nº 6.683/79 e a prescrição como óbices da persecução penal dos casos que lhe são apresentados. Logo, há conflito jurisprudencial sobre tema que merece ser esclarecido. O Supremo Tribunal Federal terá a oportunidade de manifestar-se novamente sobre a Lei nº 6.683, após o julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a partir da oposição de embargos declaratórios pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil na ADPF nº 153 e na ADPF nº 320. O que se espera da Suprema Corte Brasileira é o reconhecimento da inadequação da Lei de Anistia no ordenamento jurídico brasileiro e o afastamento da noção de que o controle de constitucionalidade e o controle de convencionalidade possuem relação de prejudicialidade entre si. Assim, o direito brasileiro avançará para a resolução sobre esses temas e facilitará a solução de novos conflitos que envolvam a aplicação do direito internacional. Conclusões De todo o exposto, é possível compreender de o controle de convencionalidade não se confunde com o controle de constitucionalidade e não possui relação de prejudicialidade com este. Ambos são aptos para invalidar dispositivo normativo infraconstitucional, pois é requisito a plena consonância deste com as ordens interna e internacional. A Corte Interamericana de Direitos Humanos possui legitimidade para proferir decisões que vinculam e obrigam o Brasil. Logo, é necessário que o Judiciário brasileiro reconheça a eficácia das suas decisões. Entretanto, tornou-se preocupante nos tribunais brasileiros as interpretações dadas para a sentença proferida no caso Gomes Lund vs. Brasil por aquela corte internacional. É notória a indiferença de alguns julgados em relação a Corte IDH, quando não as analisa, de forma equivocada, como conflitante com julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, tornou-se oportuno e necessário a manifestação desta Suprema Corte para sanar os equívocos cometidos e possibilitar avanços nas interpretações que envolvem o direito internacional. Referências Parecer nº 4.433/AsJConst/SAJ/PGR BIANCHI CERQUEIRA, L. E. “Aplicação das Sentenças das Cortes Internacionais no Brasil”. Revista SJRJ, Rio de Janeiro, v. 18, n.32, p. 115-134, dez 2011. CLAUDIUS ROTHENBURG, W. “Constitucionalidade e Convencionalidade da Lei de Anistia Brasileira.” Revista Direito GV, São Paulo, v. 9, p. 681-706, jul-dez 2013.