CONSUMISMO NA INFÂNCIA: A IMPORTÂNCIA DA PARTICIPAÇÃO DA FAMÍLIA NA CONTRUÇÃO DO CARÁTER DA CRIANÇA

Elida Vieira Ribeiro¹
Marceli Pani Stulzer²
Odilton Leão Coutinho Neto³

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¹Aluna do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo.
E-mail: [email protected]

²Aluna do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo.
E-mail: [email protected]

³Aluno do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo.
E-mail: [email protected]


RESUMO - Este artigo aborda a construção do caráter das crianças frente a ideologia neoliberal de consumismo, através da observação de três crianças em três estabelecimentos comerciais. Ressalta a importância da família na construção de um caráter menos consumista, consequentemente desenvolvendo seu olhar para a luta de uma sociedade menos desigual. Por fim, tenta provocar os educadores a necessidade de abordagem de um tema tão importante dentro da escola, buscando a formação de novas idéias que atinjam pais, alunos e a comunidade.

ABSTRACT - This article discusses the construction of the character of children against the neoliberal ideology of consumerism, through the observation of three children in three shops. Emphasizes the importance of family in building a character less consumerist thus developing his look at the struggle of a society less unequal. Finally, try to provoke the need for educators to approach such an important issue within the school, seeking the development of new ideas to reach parents, students and community.

PALAVRAS-CHAVE: neoliberalismo, comportamento infantil, influência da mídia, família, escola.

KEYWORDS: neoliberalism, childish behavior, media influence, family, school.


INTRODUÇÃO

Este ensaio teve início após articularmos as idéias que construímos sobre uma pesquisa realizada para a apresentação de um trabalho acadêmico realizado na disciplina Pesquisa, Extensão e Prática Pedagógica II, do currículo do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo, e trata da importância das relações familiares na constituição do caráter das crianças. A pesquisa teve como ponto de partida a observação de três crianças do sexo masculino, com idade entre cinco e sete anos, aproximadamente, que foram a três supermercados, localizados em municípios da Grande Vitória, estado do Espírito Santo (Vitória, Vila Velha e Serra), no dia 24 de outubro de 2009, no horário entre 09 e 11 horas da manhã.
Antes de mais nada é necessário considerar que vivemos em uma sociedade onde o consumo é estimulado a todo o momento, principalmente através da mídia. Entendemos que os valores ideológicos constituídos pelo sistema neoliberal são responsáveis pela vontade de consumir e, por vezes, essa vontade se torna necessidade, alterando outros valores onde não conseguimos enxergar o próximo, suas necessidades reais mais que nossas "necessidades" supérfluas. É através dessa realidade que vemos pais educar seus filhos de diversas maneiras. Algumas vezes explicando a eles o real valor do dinheiro, dos bens materiais e da necessidade de olhar para o outro, esse outro que está tão perto e que por muitas vezes são privados das necessidades que permitem a dignidade de um ser humano para sua existência. Outras vezes permitindo, através da ausência de diálogo com seus filhos, que a mídia exerça sua influência e constitua seus ideais sobre essas crianças.
É acreditando no poder da educação familiar, no diálogo entre pais e filhos como construtor de caráter que abordamos o tema, considerando o contexto (supermercado) em que nossos sujeitos foram observados, em que a organização, a disposição dos produtos facilita e contribui para aumentar a vontade das crianças em consumirem tais produtos. A partir das observações realizadas, pretendemos mostrar, se, quando e como, o diálogo entre adultos e crianças despertou nelas uma consciência menos consumista, que pode se traduzir em práticas mais humanizadoras.


A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NAS RELAÇÕES SOCIAIS

Partimos das idéias de Campos e Souza (2003, p. 01), que afirmam que a sociedade em que vivemos caracteriza-se pelas intensas relações de consumo, e essas influenciam diretamente nas relações sociais. Nossa chegada aos locais escolhidos para a observação evidencia as afirmações das autoras. Informativos de promoções espalhados por todos os lados. Balas, doces, revistinhas em quadrinhos próximos aos caixas, posicionadas estrategicamente para chamar a atenção do público infantil.
Escolhemos um dia da semana propício, o sábado, já que nesse dia as escolas não funcionam e os adultos, talvez até por falta de opção, acabam por levar as crianças ao supermercado. Para Campos e Souza, "a cultura do consumo molda o campo social, construindo, desde muito cedo, a experiência da criança (...) que vai se consolidando em atitudes centradas no consumo." (p. 14).
Após a análise das observações, levantamos alguns questionamentos que, ao decorrer desse texto, não pretendemos responder, considerando a complexidade do assunto. Mas tentaremos levantar algumas hipóteses acerca da construção dessas relações, ao mesmo tempo provocar nos educadores, a vontade de aprofundar o tema.
Entendemos, primeiramente, que todas as três crianças, sujeitos de nossa observação, se interessaram por alguns dos produtos expostos nos supermercados e reagiram de diferentes maneiras diante da vontade de consumi-los. Levantamos, então, as seguintes questões: o que motiva a vontade de consumo em crianças tão novas? Por qual motivo reagiram de diferentes maneiras diante da vontade de obtê-los? Qual o papel do adulto (família) ao se deparar com essas situações? Esse adulto dará conta de enxergar as consequências desse comportamento, estando ele tão envolvido no mesmo ideal consumista? Quais são essas consequências?
Campos e Souza (2003), partindo das idéias de Postman (1999), concluem que a mídia, através de seus meios de comunicação, tornou impossível o controle da informação. Essa idéia nos leva a pensar a mídia como responsável por despertar nas crianças ideais consumistas. Acreditamos que esses ideais irão refletir nas atitudes tomadas por nossos sujeitos durante a observação.
Cabe ressaltar que a criança representa hoje um papel significativo na família, atuando ativamente, conforme nos mostram Campos e Souza (2003, p. 16), ao relatarem que "a infância muda seu lugar social: sai do lugar de inapta, incompleta, para o de consumidora, transformando sobremaneira sua forma de inserir-se no mundo". Fiates, Amboni e Teixeira (2008) completam a idéia ao afirmarem que

...crianças são influenciadoras importantes, opinando sobre as compras diárias em seus lares. Nos últimos anos, o poder econômico e a influência das crianças modernas sobre as decisões familiares aumentaram ainda mais: elas exercem influência considerável sobre as compras da família em várias categorias de produtos, (...) principalmente cereais matinais, lanches e guloseimas.
(FIATES, AMBONI, TEIXEIRA, 2008, p. 01)

Essa influência determina, inclusive, a aquisição de produtos que encontramos nos supermercados. Ao olharmos sobre esse prisma, onde a mídia exerce influência direta sobre a sociedade (especialmente nas crianças, através da televisão), a mudança no papel da criança na sociedade e na família e diante do que observamos nos supermercados, torna-se mais fácil compreender as "necessidades" desses sujeitos, manifestadas pela imposição de consumo dos mesmos, nos estabelecimentos comerciais.


COMPORTAMENTO INFANTIL NO SUPERMERCADO

Postman (1999) nos apresenta a idéia de que a infância está em declínio. Por outro lado, observamos uma mudança importante no comportamento do adulto, que influencia na educação familiar que deveria ser garantida às crianças para que houvesse uma relação diferenciada do homem com a sociedade, traduzidas em práticas de boa convivência e ideais mais humanizadores. Segundo esse autor, esse processo de infantilização é observado em adultos que se alimentam em fastfoods, que têm dificuldades de assumir suas famílias, de cuidar dos idosos e tem pouco compromisso na educação de seus filhos.
Observamos que um de nossos sujeitos estava acompanhado de pais que não tinham a preocupação em dialogar com ele. Quando pedia ou questionava algo, as respostas eram evasivas: sim ou não. Ao pedir que os pais lhe comprassem um determinado tipo de biscoito e receber como resposta somente um não, sem maiores explicações, pegou seu carrinho e começou a bater no saco de arroz, na tentativa de chamar a atenção. A mãe então, ao invés de conversar com o filho sobre a importância de não desperdiçar alimentos, pediu ao pai para "dar um jeito" na criança. A reação dele foi começar a pedir cada vez mais coisas.
Já a relação do segundo sujeito com sua mãe foi de diálogo constante. Sua mãe explicava-lhe o valor de determinados produtos, dizia o que era caro, que não possuía dinheiro para comprar. Ele se mostrou bem tranqüilo durante todo o trajeto das compras. Teve um comportamento normal de uma criança da sua idade. Não quis ficar o tempo todo no carrinho, mas pareceu compreender o que sua mãe explicava, os motivos pelos quais ela não levaria determinando produto que ele queria.
E o terceiro sujeito teve atitudes que nos deixou curiosos. A princípio não pediu nada. Passado um tempo, começou a pegar vários produtos e colocá-los dentro do carrinho. Apesar de não haver diálogo entre ele e a avó, acreditamos que esse diálogo já fazia parte de uma conduta dentro de casa, pois quando ela falou com a criança que não tinha dinheiro para levar todos os produtos que ele havia pegado, ele não questionou mais. Na saída do supermercado, avó e neto conversaram sobre diversos assuntos, apesar de não ter sido sobre o fato ocorrido, o que nos leva a tal conclusão.
Alvarez (2000) afirma que momentos de prazer que se estabelecem entre adultos e crianças permitem o diálogo e a troca de experiências e a criança sente que esses momentos lhe são inteiramente dedicados. Além disso, a família deve ser modelo para as crianças, uma vez que é no seio desta que se constroem os modelos de conduta básica das pessoas.
Em outro momento da observação, a primeira criança citada tinha conseguido se afastar de seus pais e estava sozinho na seção de doces imaginando que bala iria comprar. Escolhia uma, falava que iria comprar aquela, depois a deixava de lado e fazia a mesma coisa com outra. Sabemos que é através da imitação do adulto, que a criança constitui suas concepções acerca da realidade, como nos mostra Cesiara (2000), partindo do conceito de zona proximal de Vigotsky:

... primeiro a criança faz aquilo que ela viu o outro fazendo, mesmo sem ter clareza de seu significado, para então, a medida que deixa de repetir por imitação, passar a realizar a atividade conscientemente. Assim sendo, imitar não é considerada uma atividade mecânica ou de simples cópia de um modelo, uma vez que a criança ao realizá-la está construindo em nível individual o que observou nos outros.
(CESIARA 2000, p. 88)

Além disso, acreditamos que o imaginário, "o lúdico é, sem dúvida, um dos caminhos (...) que encontra, assim, meio de manifestação e expressão" (SANTOS e LEONOR 1999, p. 205). Cabe destacar também que Fiates, Amboni e Teixeira (2000), em sua pesquisa sobre comportamento consumidor, conclui que "nas famílias que encorajam a comunicação sócio-orientada, as crianças tendem a respeitar mais os padrões de consumo".


CONSUMISMO X HUMANISMO

Dando continuidade às tentativas de responder os questionamentos levantados a partir da análise de nossas observações, encontramos apoio nas pesquisas de Lourenço e Jinzenji (2000) que nos indica que "É possível que a influência da TV no ambiente doméstico esteja reduzindo o período durante o qual os pais são a principal força socializadora nas vidas de seus filhos". Já Fiates, Amboni e Teixeira (2000) entendem que "... a televisão estaria veiculando valores que contribuem maciçamente para a construção dos ideais infantis nos dias de hoje".
Campos e Souza (2003) nos mostram que:

O processo de construção da identidade na cultura de consumo apresenta-se como cambiante, fluido, fragmentado e parcial. Objetos e mercadorias são usados para demarcar as relações sociais e determinam estilos de vida, posição social, além da maneira de as pessoas interagirem socialmente.
(CAMPOS e SOUZA, 2003).

Ora, se levamos em consideração a idéia de que a mídia é a principal promotora do sistema neoliberal e se acreditamos que esse sistema é o responsável por dizimar as práticas humanistas, favorecendo a exclusão; e se ainda nos baseamos na crença de que esse sistema o faz de maneira oculta, camuflada, podemos concluir que existe então uma grande dificuldade por parte dos pais em perceber a construção dos ideais consumistas de seus filhos e de dialogar com eles na tentativa de ensiná-los a olhar o outro, de perceber suas dificuldades e de trabalhar em prol de uma sociedade com menos desigualdades sociais. Até porque esses mesmos pais então mergulhados nessa ideologia perversa.
Seguindo ainda essa linha de raciocínio, concluímos que o consumismo está paralelamente afastando as práticas humanistas, que permitem que possamos ver o outro como ser de necessidades materiais e afetivas, como identifica Costa (1994):

Quando o ser humano não tem mais a regra subjetiva que lhe faça ver no outro um semelhante, ele não experimenta pelo outro nenhuma preocupação, nenhuma consideração. O outro é um estranho. (...) Como eu não tenho critério de reconhecimento, como eu não sou formado para dizer que aquele é igual, eu não posso me identificar na dor e no sofrimento e nem na dignidade com o outro e aí eu não vou me importar.
(COSTA 1994, p. 12)


O PAPEL DO EDUCADOR FRENTE A ESSAS QUESTÕES

Na discussão da análise de nossas observações, levantamos entre tantos outros, um questionamento que nos inquietava: qual o papel da escola e do educador diante dessas questões? É necessária a intervenção da escola, se entendemos ela como instituição que não trabalha somente com a criança, mas com seus pais e comunidade? Acreditamos que nós, educadores podemos e devemos fazer da escola uma instituição de transformação. Para isso devemos, portanto, repensar suas ações no que tange a constituição de sujeitos, da construção da cidadania, em criar em nossos alunos ideais transformadores, porque, se não for essa a função principal da escola, também ela se transforma em um meio de alienação. E acreditamos em uma escola que atue na emancipação de seus sujeitos.
Kramer (1999) nos propõe a necessidade de criar escolas e espaços de educação onde sejam possíveis outros modelos de educação e de outros modos de criança. Certos de que as crianças, cada vez mais envolvidas pelos ideais neoliberais, centradas em si mesmas e em suas necessidades supérfluas e consumistas, é nosso dever agora pensar maneiras de produzir nas crianças, em seus pais, sua comunidade, a vontade de olhar para o próximo, de se importar com ele, de enxergá-lo, para que possamos, dessa maneira, construir um mundo com menos desigualdades e mais condições para todos.


CONCLUSÕES

Nossa análise, baseada nos referenciais teóricos nos conduziu a algumas conclusões e outros tantos questionamentos. É claro que temos que levar em consideração a difícil tarefa de analisar sujeitos que tem uma história de vida, de relações sociais com a família, com a escola, com a sociedade. Relações essas que os fazem constituir idéias, pensamentos acerca do mundo onde vivem.
Contudo, chegamos à conclusão que a família tem um papel de grande importância na construção de pensamentos de suas crianças. Além disso, entendemos que a presença, bem como a ausência de diálogo foi fator de grande relevância nas atitudes comportamentais de nossos sujeitos. Percebemos que, quando houve diálogo, a criança apresentou comportamentos mais calmos, mostrando-se mais segura diante da negação por parte de seus responsáveis com relação aos produtos que desejavam consumir.
Por outro lado, percebemos também que a mídia é, através de seus meios, capaz de alienar o homem, o que seria bastante prejudicial para que a família exerça bem seu papel de construtor de um caráter que assegura práticas mais humanistas. Portanto, se a força do sistema neoliberal se faz tão presente a ponto de difundir seus ideais entre os adultos, como poderão os pais dar conta de educar seus filhos fora dessa ideologia perversa?
Por fim, provocamos os leitores acerca da necessidade de trabalhar essas questões na dentro de espaços educacionais, formais ou não, junto com as crianças, com seus pais e com a comunidade. Para que isso aconteça de maneira eficaz, acreditamos que primeiramente seja necessário aprofundar o tema, através de formações com a finalidade de entender de que formas ocorrem a difusão dessa ideologia.
REFERÊNCIAS

ALVAREZ, C. G. Estrategias y procedimientos para fomentar la lectura en la familia y en la escuela. Universidad de La Coruña, 2000.

CAMPOS, C. C, G. de; SOUZA, S. J.e. Mídia, Cultura do Consumo e Constituição da Subjetividade na Infância. Rio de Janeiro, 2003.

CESIARA, A. B. A educação infantil e as implicações pedagógicas do modelo histórico-cultural. Caderno Cedes n.º 35, 2000.

COSTA, J. F. Vida: um princípio básico no bem-comum e na ética do convívio. Revista Proposta. N. 60, 1994.

FIATES, G. M. R; AMBONI, R. D. de M. C; TEIXEIRA, E. Comportamento consumidor, hábitos alimentares e consumo de televisão por escolares de Florianópolis. Rev. Nutr., Campinas, v. 21, n. 1, fev. 2008 . Disponível em: www.scielo.br. Acessado em 11/11/2009.

LOURENCO, E; JINZENJI, M. Y. Ideais das crianças mineiras no século XX: mudanças e continuidades. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 16, n. 1, Apr. 2000 . Disponível em: www.scielo.br. Acessado em 11/11/2009.

POSTMAN, N. O Desaparecimento da Infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.

SANTOS, A. P. dos; LEONOR, M. F. F. Recreação/Educação Infantil: transição e frutos. IN; KRAMER, Sonia (org). Infância e Educação Infantil. Campinas: Papirus, 1999.