CONSTITUIÇÃO[1]: PROFANAR PARA CONHECER

João Gilberto Engelmann[2]

O enunciado radica-se no já conhecido binômio sagrado/profano de Agamben[3], trazido à arena jurídico-constitucional por Bolzan de Morais e Ângela Espindola[4]. Trata-se, no referido filósofo, de duas estruturas antagônicas que, originalmente, dispõem a localização do homem em relação a deus. O que é humano pertence à categoria do profano, ao passo que o sagrado contém as reticências que circunscrevem a trajetória divina, e da qual emanam as leis daquele. Rigorosamente, aplicado ao direito, significa dizer que a Constituição, enquanto texto magno, recipiente de toda principiologia democrática, retém a ideia do sagrado. Um processo de profanação constitucional diria respeito à tentativa de tornar acessível ao homem a sua base democrática.

Sendo sempre algo de mitológico, misterioso e contemplativo, a tentativa de conhecer o sagrado esbarra em sua inacessibilidade ou acesso dificultoso. O divino se priva de aparecer, para que a existência se afirme continuamente sem desassossegar[5] suas enternecidas estruturas reais. Exterior, ou mesmo intuído pelos poucos sacerdotes, o deus não é conhecido pelo homem que, sendo deslustro, precisa da divindade para sua limpeza espiritual e salvação. Analogamente, a constituição é esse sacralizado templo que, ainda que desconhecido, apesar de não totalmente inacessível, contém a ordem de todo o individuo humano. O ser e o dever-ser[6] desse indivíduo estão pautados nesse acerto de contas formal entre a cidadania e o sujeito de direitos. A constituição representa essa vontade democrática pelo digno, pelo bem-estar.

Trata-se, ainda, enquanto expressão positiva de um leque de garantias ante as reivindicações do sujeito moderno, daquilo que Hegel antes chamou de primeira aparição da liberdade. Propõe:

"A vontade livre em si e para si, tal como se revela no seu conceito abstrato, faz parte da determinação específica do imediato. Neste grau, é ela realidade atual que nega o real e só abstratamente se refere a si." (HEGEL, 1997)

Essa determinação do imediato registra tão somente um aparecimento formal da nervura que expressará o direito enquanto exercício, o direito quando se deparará com as vicissitudes do conteúdo jurídico. Ao passo que é referência de si mesma, a vontade que se identifica na forma, texto positivo, não figura uma realidade objetiva ainda, mas tão somente uma garantia também abstrata, uma possibilidade para o conteúdo- primeira aparição. Essa personalidade (possibilidade do direito) "contém, em geral, a capacidade do direito e constitui o conceito e o fundamento (também abstrato) do direito abstrato". (HEGEL, 1997)

Essa perseguição do conceito de abstrato indica o âmbito em que se situa a letra constitucional. Por si só, edifica um núcleo de fundamental importância para a dialética que constrói a cidadania. Trata-se do segundo passo ruma à construção do bem-estar geral, se se pode considerar sua maturação sociológico/filosófico como estágio primeiro; ou ainda, considerarmos a leitura da vontade popular como passo inicial. Esse estágio do abstrato identifica aquilo que Michelman chamou de "normas reguladoras [..] para elaboração e execução de outras leis." (in, SARLET, 2006) Sob esse ângulo, a Constituição é considerada como que o pressuposto positivo de onde emanam regras que decidirão o futuro das codificações específicas.

Essa importância que a formalidade contém, justamente por tornar palpável as garantias conseguidas[7], por sua vez, não diminui a necessidade de serem levadas a cabo, o que importa fazê-las surtir na existência diária do conteúdo jurídico, ou seja, na execução objetiva do caso concreto. Se aquele estágio diz respeito à forma dada ao direito, então é apenas a aparição imediata da vontade humana que se regula a partir do que lhe é direito e dever. O próprio conceito de liberdade da ação passa a estar pautado dentro da possibilidade desse direito.

Representando uma vontade universal, a constituição logra para si aideia de instituto generalizador da vida do homem citadino, no sentido de comunidade de iguais. Somada às demais determinações que formam o aparato jurídico, concluem uma previsão da atuação dos sujeitos no grupo social. No entanto, ainda que norteada por princípios, representam tão somente o esqueleto genérico do homem, ou seja, o registro abstrato de que não estão desamparados.

Analogamente, Alain Lacroix, ao dispor sobre o conhecimento em Kant[8], localiza também uma estrutura abstrata que precede a empreitada do sujeito rumo ao mundo objetivo, da qual logramos a compreensão do fenômeno jurídico." Ela (a representação de um conteúdo sensível) não é somente pura, mas originária[9], sobretudo, pois ela está no fundamento de toda consciência empírica determinada."(LACROIX, 2009)Considerada, assim, como essa representação abstrata do porvir, a lei constitucional identifica o a priori da determinação do sujeito, ou seja, a previsão de uma ação deste. E ao passo que é originária, traz sobre si a ideia de fonte da qual emana toda a justificação e sentido da sociedade racional, cuja vontade se expressa nesse corpo de leis. Isso significa que a constituição sintetiza a vontade geral que determinará as ações em específico.

Para José Afonso da Silva, a constituição transcende a uma classificação puramente positiva, e como "todo Estado tem constituição, que é o simples modo de ser do Estado", então designa uma noção ontológica da existência do estado a partir de uma base constitucional. (SILVA, 2004). Ontológica no sentido de que toda a ideia de Estado, situados, é claro, no contexto moderno, pressupõe uma estruturação constitucional imediata, íntima e necessária. Se o Estado se propõe à democracia e as conquistas pós-revolucionárias do século XVIII, então será sedimentado por uma Constituição.

Ainda nessa mesma perspectiva, e falando sobre a vocação do tempo recente (fim do século XIX) para a legislação, bem como da formalidade dos tempos antigos, Savigny depõe:

"só estão faltando (às legalidades recentes) as principais vantagens das antigas formalidades- a saber, sua palpabilidade e a tendência popular em seu favor, enquanto as nossas são consideradas por todos como algo arbitrário e, portanto, opressivo[10][11]."(in MORRIS, 2002)

Para Savigny, a formalidade dos recursos jurídicos antigos não impedia que o povo, contratante com o estado, demandasse e deliberasse ao poder constituído para governar. No entanto, essa capacidade de deliberação do povo está intimamente ligada às condições de conhecimento constitucional. Se havia, contudo, a chamada tendência ao popular, concomitantemente havia um saber sobre os desígnios da constituição.

É ainda importante mencionar que a chegada do pensamento político/filosófico à ideia de uma garantia ao indivíduo, fundada, sobretudo, com a emergência das revoluções do século XVIII, passa a galgar limites oceânicos no sentido de trazerem a discussão dos direitos humanos, por exemplo, para a esfera do sujeito, do governado, e não mais firmá-la a partir de quem governa[12]. E ao passo que interage nessa comunidade da igualdade formal de maneira a dar-lhe um conteúdo, uma face real que carrega consigo os limites, as necessidades, esse sujeito produz uma matéria-prima diversificada que passa a dar corpo ao direito. Essa saída de si e ingresso na vida real são, ao passo que construção do conteúdo do direito, a construção da própria vida humana, ou edificação de sua dignidade, que, garantida formalmente, precisa ser buscada na estrutura objetiva que a sociedade origina. Sobre isso, José André da Costa depõe:

"Para o homem humanizar-se e garantir seus direitos humanos não pode permanecer encasulado em sua subjetividade, necessita objetivar-se, o que só pode ocorrer através da sociabilidade com seus semelhantes." (COSTA, 2004)

Esse encasulado representa a esfera da formalidade do ser enquanto personalidade. Ademais, significa dizer que o homem toma a sua personalidade, que é a capacidade do direito, e dá-lhe corpo, o que Costa chama de objetivar-se. Nesse sentido, a constituição formal dá ao indivíduo a possibilidade de ser sujeito, ou dá-lhe personalidade; ainda, garante-lhe o direito mediante uma base formal, ou seja, dá-lhe a garantia do direito abstrato.

Nesse sentido, duas coisas se esclarecem: a) que a constituição figura uma base formal e b)que o sujeito a ultrapassa (lhe dá conteúdo) à medida que age tendo em vista seus direitos. A essa altura, a discussão remete-nos àquela dimensão do conhecer os direitos, representados na analogia de sua profanação; se precisa estar garantido formalmente para objetivar seus direitos, primeiro é preciso conhecer esses direitos, do que se conclui que, por ignorância, deixa de exercer e reivindicá-los para si.

O pressuposto está radicado a partir de uma estrutura lógica simples, expressa numa formulação casuística:se conhece os seus direitos, então lhes pode exercer e, caso não estejam disponíveis, reivindicá-los. A grande exigência do exercício e reivindicação do direito parece mesmo ser a possibilidade de existirem para o sujeito, ou seja, de serem conhecidos[13]. Nesse sentido, conhecê-los significa saber da constituição e de seus códigos derivados.O acesso à constituição representa, assim, o pressuposto teórico para se ter diretos, ao passo que os diretos não existem para si mesmos, mas em função do sujeito que os exerce.

Morais e Espindola, apossados do conceito de profanação de Agamben, sugerem justamente isso: a profanação da constituição como atividade de fazer existirem direitos, naquela proposição anterior que liga existência e conhecimento. Se o sagrado não é conhecido,e sendo a constituição uma fórmula que tende ao sacro, então é notório que seja profanada, no sentido de ser acessada, posta em discussão e vivida. Essa profanação é amediação recursal que une o direito ao seu sujeito. É o liame que institui uma relação mediatizada entre a o saber da coisa e a sua existência.

Sendo assim, forma-se uma ligação imediata entre o pleno exercício do direito, enquanto legitimação e acesso, e a fase cognoscente que o origina. Mencionando Agamben, profanar a constituição seria a forma didática de torná-la conhecida. Se conhece o seu texto magno e suas garantias, mesmo tendo-se consciência das dificuldades reais de finalização da dignidade, então o povo passa a ter um poder maior de deliberação e de exigência de seus direitos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MORAIS, J.L. Bolzan; ESPINDOLA, Angela A.S. O estado e seus limites: reflexões em torno dos 20 anos da Constituição brasileira de 1988. 1. Hermenêutica Jurídica. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2008.

SILVA, José A. Curso de direito constitucional. 23° Ed. São Paulo:Malheiros Editores, 2004- p. 37.

AGAMEN, Giogio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007

LACROIX, Alain. A razão. Trad.: Márcio Alexandre Cruz. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2003

______________ Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária, 1993.

HEGEL, Georg Whillelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Trad. Norberto de Paula Nóbrega. Petrópolis: Vozes, 1997.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7a ed. Malheiros, São Paulo, 1998

MORRIS, Clarence. Organizadora. Os grandes filósofos do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 6° Ed. São Paulo: Renovar, 2002.

COSTA, José André. Saber, sabor, sabedoria: reflexões sobre temas do cotidiano. Passo Fundo: IFIBE, 2007.

SARLET, Ingo W. Jurisdição e direitos fundamentais. Anuário 2004/2005 Ajuris. Porto Alegre: livraria do Advogado Editora, 2006



[1] Constituição é aqui entendida como sinônimo de lei constitucional, que já para John Austin significava " a moralidade objetiva, ou ao composto de moralidade positiva e lei positiva que fixa a constituição ou a estrutura do governo supremo dado." (MORRIS, 2002) Ou seja, todo o aparato jurídico positivo que funda a possibilidade de o direito existir enquanto regra objetiva. Seguindo ainda uma compreensão de José Afonso da Silva, a palavra constituição mune-se de diversos significados à medida que representa, além do texto pronto, um modo de ser do Estado. Conf.: SILVA, José A. Curso de direito constitucional. 23° Ed. São Paulo:Malheiros Editores, 2004- p. 37. Consoante, para Frank Michelman, atentando para uma compreensão formal, a Constituição "é uma norma reguladora de maior hierarquia, um estatuto do qual se extraem conseqüências jurídicas diretas." (in, SARLET, 2006).

[2] Acadêmico de Filosofia e Direito.

[3] Conf.: AGAMEN, Giogio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

[4] Conf.: MORAIS, J.L. Bolzan; ESPINDOLA, Angela A.S. O estado e seus limites: reflexões em torno dos 20 anos da Constituição brasileira de 1988. 1. Hermenêutica Jurídica. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2008.

[5] Como propõem Bolzan e Espindola em relação ao pensamento aquietado, contemplativo e inerte.

[6] Breve referência do ato jurídico e de sua previsão legal. Ainda assim, as categorias de ser e dever ser remetem-nos sempre à estrutura formal da existência do eu abstrato e a sua moralidade. Em Kant, essa moralidade sempre dirá respeito à razão pura que, para ser prática, requere-se autônoma. Trata-se de uma relação imediata entre o ser autônomo e o seu dever, que, justamente pela autonomia, originam uma única forma da ação. Para Kant, não basta que o ato jurídico existente não contrarie a sua previsão legal, mas que o faça por livre vontade, e não por se ver obrigada a isso, o que acarretaria a intervenção da sensibilidade na existência dessa ação que, por isso,, seria desqualificada como moral; seria, assim, uma ação conformedever, mas não uma ação moral.

[7] Palpável no sentido de segurança escrita de que as garantias existem. O processo posterior, que tratará de torná-las palpáveis no sentido de serem efetivadas, não compete à dimensão formal da existência da norma.

[8] Conf.: LACROIX, Alain. A razão. Trad.: Márcio Alexandre Cruz. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

[9] Grifo do autor.

[10] Analogamente, a o estado contemporâneo incorpora o adjetivo arbitrário, no sentido de ter conhecimento do atentado sistemático contra os direitos humanos, por exemplo e, mesmo assim, manter-se inerte.

[11] Grifo do autor.

[12] Conforme MORAIS, J.L. Bolzan; ESPINDOLA, Angela A.S. O estado e seus limites: reflexões em torno dos 20 anos da Constituição brasileira de 1988. 1. Hermenêutica Jurídica. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2008.

[13] Grosso modo, a existência do direito é o seu conhecimento. Aquilo que não faz parte da concepção do sujeito como possibilidade do direito, localiza-se fora de seu campo de visão. Num exemplo, jamais o indivíduo exigirá uma restituição indenizatória por dano se não souber que está prevista. Esse saber, assim, constitui-se como a própria existência do direito.