CONSTATAÇÕES SOBRE A PROBLEMÁTICA DA PEC 37/2011[1]

 

Ícaro Carvalho Gonçalves[2]

 

 

 

RESUMO

 

Este trabalho trata-se de uma análise ao Projeto de emenda à Constituição da República Federativa do Brasil número 37/2011. Busca-se o real significado desta proposta que ganhou notória repercussão na mídia e nas ruas pelo seu conteúdo. Seus detratores argumentavam que a PEC 37/2011 limitava o poder de investigação criminal exercido pelo Ministério Público. O trabalho mostra, contudo, que a PEC não limitava nenhum poder institucional do Ministério Público, posto que este poder de investigação criminal não existe para tal instituição. As constatações feitas neste trabalho são fruto de uma análise hermenêutica da Constituição da República, de textos infraconstitucionais, doutrinas e opiniões de estudiosos da área jurídica. Tem-se como fundamento para construção deste artigo, a realização de uma análise literal do corpo normativo da CR/88, pois por emanar-se num campo de debate sobre funções, não se pode de forma alguma haver ampliação ou restrição do alcance da norma, com risco de ferir a separação dos poderes.

 

Palavras-chave: PEC. Ministério Público. Investigação Criminal.

 

 

 

  1. INTRODUÇÃO

 

Com o presente trabalho, busca-se aperfeiçoar o debate sobre o projeto de emenda à Constituição da República Federativa do Brasil número 37/2011, apesar de tardiamente, pois o destino dado à referida PEC já foi votado, tendo seu rumo esperado: a não aprovação.

O debate sobre o tema ficou a cargo da mídia, que sem o devido conhecimento técnico-jurídico caiu no senso comum. E a imprensa, como em qualquer Estado burguês, ao se colocar como um quarto poder, apresenta-se de maneira a exercer certa influência sobre a população. Quando incumbia a Investigação Criminal privativamente a Polícia Judiciária, a PEC 37/2011, segundo opinião da mídia, limitava poderes do Ministério Público, afirmando tratar-se a mesma de um favorecimento à criminalidade. Desta forma todo o setor midiático acaba influenciando assim a maioria da sociedade civil, chegando ao ápice de ser um tema de caráter indiscutível, onde os que fossem a favor da PEC estariam coadunando com a criminalidade e a corrupção, e os que fossem contra a PEC 37/2011 estariam a favor de um Estado Democrático intolerante com a criminalidade e a corrupção. O rumo que se toma é o de um debate maniqueísta, onde ou se é favorável à PEC e, portanto do lado ruim, ou se é contra a PEC e, portanto do lado do bem.

O Ministério Público, com apoio dos sistemas de comunicação do país, taxaram a PEC 37/2011 como “PEC da Impunidade”. Várias campanhas nesse sentido foram divulgadas em diferentes meios de comunicação de todo o território nacional. Como essa “taxativação” imediata, a sociedade brasileira perdeu um debate, que poderia trazer mudanças profundas e futuras para a Segurança Pública no Brasil. Não seria a hora de perceber que ao invés de legitimar a um órgão, uma função que não é sua, o Estado brasileiro deveria garantir ao delegado de polícia prerrogativas para exercer sua função de forma independe e autônoma? A sociedade brasileira perdeu este debate no momento em que se deixou de discutir a Proposta de Emenda.

Por isso analisar a PEC 37/2011, mesmo passada a votação que a sepultou, não deixa de ser importante, talvez seja o momento ideal para se discutir. Repensar posicionamentos anteriores para refletir o que se deseja para a Segurança Pública.

 

  1. CONTEXTO HISTÓRICO DA VOTAÇÃO DA PEC 37/2011

 

As manifestações de junho e julho de 2013 ficarão marcadas na história recente do Brasil principalmente por significarem o efetivo retorno da participação popular em questões sobre política. A população não se manifestava desde o episódio ocorrido em 1992, onde se teve como resultado o impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Melo. Nos ares das revoltas populares em todo o território brasileiro, a discussão sobre o projeto de emenda à Constituição da República Federativa do Brasil número 37/2011 ganhou notoriedade, sendo inclusive, pauta das inúmeras manifestações que ocorreram.

A PEC 37/2011 é de autoria do deputado maranhense Lourival Mendes, ex-delegado, e buscava acrescentar ao texto constitucional o parágrafo 10º no artigo 144, no Capítulo III (Da Segurança Pública) do Título IV (Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas). Este § 10º colocaria como competência privativa da Polícia Civil e Federal a investigação criminal. Aproximadamente 90% da mídia considerou essa PEC como uma tentativa de limitar poderes do Ministério Público, desta forma, favorecendo políticos e atitudes corruptivas, tão comuns na República brasileira. O problema é que parte da população comprou essa ideia, transformando-a em “PEC da Impunidade”, sendo este termo utilizado no auge das manifestações já aqui mencionadas, em inúmeros cartazes pelo Brasil.

A ideia de tornar privativa a investigação criminal para as policias judiciárias, surge em um contexto de grande comoção nacional para com a corrupção. Em 2012 houve o julgamento da Ação penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal, considerado um dos maiores esquemas de corrupção da história do Brasil, o “mensalão” trouxe um sentimento à população que a impunidade contra os corruptos é intolerável. A política brasileira está totalmente desacreditada, segundo uma pesquisa do EdelmanTrust Barometer[3], a confiança do cidadão brasileiro no governo é de apenas 33%, sendo a Mídia detentora de uma confiança de 66%.

É nesse contexto de desconfiança com o governo, que surge o “salvador da pátria”: o Ministério Público. Com sua imagem de imaculado órgão da República, o Ministério Público ganhou destaque na Mídia por sua atuação de combate a corrupção. Então, faz-se observar que, ao serem propostas leis ou projetos de emenda à Constituição Federal, que possam ter de algum modo o propósito de atingir o Ministério Público, tem-se a certeza de que será visto como algo maligno a sociedade.

 

  1. PEC 37/2011 E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL: MINISTÉRIO PÚBLICO PODE INVESTIGAR?

     

    O Ministério Público é com base no Art. 127 da Constituição da República órgão essencial a função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Não se trata de um quarto poder, sendo este uma instituição vinculada ao poder Executivo, mas apesar de estar vinculada a este, seus agentes gozam de “plena liberdade funcional, desempenhando suas atribuições com prerrogativas e responsabilidades próprias, estabelecidas na Constituição e em leis especiais.”[4].

    Notando-se a importância do Ministério Público no ordenamento constitucional, o legislador constituinte originário definiu as funções do Ministério Público. No Art. 129 da CF/88 foram taxadas todas as funções institucionais do Ministério Público, sendo necessária para este trabalho a análise do inciso I, III, VII, VIII e IX:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;

VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;

IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedadas a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

 

A Constituição Federal de 1988 não dá poderes de investigação criminal ao Ministério Público. O inciso VIII possibilita que o Ministério Público requisite diligências e instauração de Inquérito Policial à autoridade competente para tal: a polícia judiciária. O inciso III é claro e taxativo: O Ministério público pode promover o inquérito civil. Como existe uma ausência de previsão que permita ao Ministério Público promover o inquérito criminal, não pode de forma alguma, sob pena de ferir ideais republicanos, interpretar este inciso de forma extensiva, permitindo assim que o Ministério Público faça a investigação criminal. Em entrevista, o Ministro do STF Marco Aurélio Melo diz:

Eu não vejo nenhuma razão de ser desta proposta de emenda constitucional, já que o tema está tratado em bom vernáculo, em bom português, na Constituição Federal em vigor, e ela exclui o Ministério Público, como parte de futura ação penal, de proceder a investigação criminal para tal fim.[5]

 

 Em conformidade com o pensamento do Ministro, a PEC apenas reforça o que já está previsto constitucionalmente, sendo, se for friamente analisada, redundante. Mas, em face de ocorrência de investigações criminais realizadas pelo Ministério Público de forma inconstitucional, faz-se necessário a redundância.

Existem correntes doutrinárias que tratam do tema da Investigação Criminal exercida pelo Ministério Público, como sendo uma função implícita na Constituição da República. Porém não se pode coadunar com este posicionamento adotado por alguns estudiosos da Constituição, pois ao tratar-se de funções, prerrogativas, poderes, deveres, está se falando de um rol taxativo. Os órgãos estatais, principalmente os previstos na Constituição da República, possuem funções delimitadas taxativamente no corpo constitucional, assim como é o caso do Ministério Público. Analisar essas funções implica uma interpretação literal, caso contrário, o estado democrático de direito estará ameaçado, pois um dos pilares da democracia é a separação dos poderes.

Ao passo que ao ampliar determinadas funções de um órgão, implicaria na redução das mesmas de outro, não respeitando com isso a organização para tal já delimitada por norma. Ou essa função é expressamente descrita em norma, ou essa função não existe.

O Supremo Tribunal Federal Recurso em Ordinário em Habeas Corpus nº 81.326-7-DF, 2 a. Turma, Rel. Min. Nelson Jobim. DJU 1 ago. 2003, teve o seguinte posicionamento:

A Constituição Federal dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (CF, art. 129, III). A norma constitucional não contemplou a possibilidade de o parquet realizar e presidir inquérito policial. Não cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime. Mas requisitar diligência nesse sentido à autoridade policial.[6]

 

As notas técnicas produzidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) tentaram, e conseguiram introduzir, problemas que a PEC supostamente produziria se fosse aprovada. O primeiro dos argumentos utilizado pelos conselhos é o de que a PEC 37/2011 tiraria o controle externo das policias judiciárias, exercido pelo Ministério Público. Contudo, ao analisar minuciosamente a PEC, verifica-se que esta não retira a citada função do Ministério Público, sendo que tal instituição pode e deve atuar em face de garantir a moral, a eficácia e eficiência do Inquérito Policial, dando lhe justa causa para ação penal, mas nunca, presidindo-a ou iniciando-a sponte própria. Como diz a Nota Conjunta da ADEPOL-BR (Associação dos Delegados de Polícia do Brasil) e da ADPF (Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal):

O Ministério Público, mesmo com a aprovação do substitutivo em comento, manterá suas prerrogativas de participar efetivamente da investigação criminal realizada pela Polícia Judiciária, por meio de requisições de instauração de inquérito policial e de diligências investigatórias.[7]

 

O Juiz de Direito, Guilherme de Souza Nucci, em seu Manual de Processo Penal destaca:

Enfim, ao Ministério Público cabe, tomando ciência da prática de um delito, requisitar a instauração de investigação pela polícia judiciária, controlar todo o desenvolvimento da persecução investigatória, requisitar diligências e, ao final, formar sua opinião, optando por denunciar ou não eventual pessoa apontada como autora. O que não lhe é constitucionalmente assegurado é produzir, sozinho, a investigação, denunciando a seguir quem considerar autor da infração penal, excluindo, integralmente, a polícia judiciária e, consequentemente, a fiscalização salutar do juiz.[8]

 

Quando o Ministério Público preside uma investigação criminal, indiscriminadamente como se tem atualmente, sem qualquer lei que limite esta investigação, corre-se o risco de que promotores e procuradores, seres humanos falíveis e por vezes parciais:

A prerrogativa de investigar quando quiserem, quem quiser, da forma que melhor servir, pelo prazo que achar adequado, sem qualquer tipo de controle externo, com ausência absoluta de tramitação por outro organismo, sem nenhum acesso pelo investigado e, ao final ele próprio decidir se arquiva ou não aquele mesmo procedimento inquisitorial.[9]

 

 Isso seria um retrocesso do pré-procedimento penal brasileiro, retornando à era da Inquisição, em que não existe uma legal divisão de funções acusativas e investigativas. Cabe ao réu se defender através de um advogado, ao Ministério Público acusar, ao Juiz julgar e a polícia investigar. Um promotor ao investigar e acusar ao mesmo tempo fere um princípio processual penal constitucional (implícito): o do promotor imparcial. Chega-se ao ponto de questionar a imparcialidade do promotor que investiga. O Ministro do STF Marco Aurélio Melo faz uma ressalva:

Qual será de início a postura do Ministério Público? Ele estampará no inquérito o que fizer e o que não sirva à persecução criminal? Ou que não sirva a formalização da denúncia? A ordem natural das coisas direciona em sentido contrário, dele realmente colocar no lixo tudo que seja contrário, que seja conflitante com a propositura da ação penal.[10]

 

 Trará esse promotor/procurador a imparcialidade desejada para a investigação? Ou coletará elementos probatórios que favoreçam a acusação em detrimento da defesa?

Em uma análise publicada no Jornal o Globo, o professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Pedro Abramovay, diferencia bem a Investigação Criminal realizada pela autoridade policial e a Investigação Criminal realizada pelo Ministério Público:

[...] Diferentemente do que acontece com as polícias, onde a legislação estabelece um rígido controle sobre como essa investigação é feito, não há previsão similar para o MP. As apurações, muitas vezes, se dão sob sigilo e sem o devido controle judicial, o que dá margens a sérios abusos.[11]

 

 Quem controla o Ministério Público? Fala-se muito que se fosse aprovada, a PEC 37/2011 daria poderes demais a polícia judiciária e ao delegado de polícia, porém fecham-se os olhos para perceber que está se dando poderes além dos que compete ao Ministério Público. Tal instituição teria além da titularidade da Ação Penal também poderes de Investigação Criminal, sem que se tenha para tais poderes o devido controle externo.

O que se tem discutido ao longo deste ensaio nada mais é do que a não competência do Ministério Público para a instauração de Investigação Criminal, tema este que norteia PEC 37/2011. Diante do exposto faz-se necessário observar que a própria Constituição Federal, em seu art.144, ao tratar da segurança pública como dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, já determina também os órgãos instituídos para exercício de tal função.

Caberá, conforme previsto na Constituição da República, aos órgãos constituídos pelas polícias judiciárias a condução das investigações necessárias à elucidação do fato delituoso, colhendo provas pré-constituídas e formando o inquérito, que instituirá a base para sustentação de uma futura ação penal, que será por vez de iniciativa exclusiva do Ministério Público. Ainda, com relação às Polícias Judiciárias, temos que o legislador ao atribuir às mesmas suas funções de colhimento de provas para o órgão acusatório, assim o faz de forma clara, conforme determinado pelo §4º do art.144:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

§ 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

 

 Assim como também se deve observar disposição do art.4º do Código de Processo Penal:

Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.

 

 Outras investigações podem ser instituídas por outras autoridades, a quem por lei seja determinada a mesma função. Nesse sentido, não há uma previsão normativa que venha como tal instituir e delimitar poderes para instauração de investigação criminal ao Ministério Público. A atividade de investigação criminal exercida pelo Ministério Público tem como base a Resolução nº 13 de 2006 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que é inconstitucional tanto no seu aspecto material quanto no aspecto de processamento legislativo. Em seu aspecto material, a Resolução 13/2006 do CNMP é infraconstitucional e deve respeitar a Constituição da República, onde em nenhum artigo, nenhum parágrafo e nenhum inciso, permite a investigação criminal presidida pelo Ministério Público, desta forma a referida Resolução é inconstitucional. Por não respeitarem o processo legislativo instituído para tal, é que esta resolução está inapropriada para fundamentar tal atividade investigativa criminal ao Ministério Público.

Ao possibilitar que o Parquet tenha em mãos poderes de investigação criminal, assim sem lei que os defina e delimite, tem-se dado ao órgão atribuições que já estão delimitadas constitucionalmente a autoridade policial, que é o Delegado de polícia. Cabe ao Ministério Público acompanhar as diligências, exercendo assim o controle externo de tais atividades. Trata-se de uma distribuição de competências, delimitadas por lei.

 

  1. INTERESSES ENVOLVIDOS NA APROVAÇÃO OU DESAPROVAÇÃO DA PEC 37/2011

 

No discurso do senso-comum, o principal interessado na discussão sobre a PEC 37/2011 era a classe política, visto que, a maior parte das investigações realizadas pelo Ministério Público estariam ligadas aos crimes de corrupção. Entendeu-se, de forma errônea, que quem era a favor da PEC 37/2011, ou seja, contra a investigação criminal realizada pelo Ministério Público, estava sendo a favor a corrupção. Essas ideias ganharam uma propagação em face da atividade para tal exercida pela mídia, como já colocado aqui em momento anterior.

O interesse principal pela desaprovação da PEC 37/2011, é sem sombras de dúvidas, transformar o Ministério Público em um órgão completamente sem limites. O titular da Ação Penal estaria também investigando; poder-se-ia até mesmo esperar que no futuro este mesmo órgão ocupe o lugar de Juiz e também julgue? Estaria assim a um passo de abandonar o sistema acusatório de Processamento Penal, para incorporar o sistema inquisitivo de Processamento Penal? O mesmo órgão que acusa, vai investigar, e quando o judiciário estiver totalmente desacreditado, o Ministério Público também vai julgar? O Brasil nunca será mais o Estado Democrático de Direito que o constituinte originário de 1988 idealizou? Membro do próprio Ministério Público Federal, Juarez Tavares ensina:

É inconcebível que se atribua a um órgão do Estado, qualquer que seja, inclusive ao Poder Judiciário, poderes sem limites. A democracia vale, precisamente, porque os poderes do Estado são limitados, harmônicos entre si, controlados mutuamente e submetidos ou devendo submeter-se à participação de todos, como exercício indispensável da cidadania.[12]

 

Os membros do Ministério Público, na tentativa de desacreditar a Polícia Judiciária, argumentam que esta é uma instituição corrupta e seus agentes são omissos ao lidar com a criminalidade, o Ministro do STF Luís Roberto Barroso, em uma análise, explicou bem a situação da polícia no meio da criminalidade, e o risco de lidar diretamente com ela:

No sistema brasileiro, é a Polícia que atua na linha de fronteira entre a sociedade organizada e a criminalidade, precisamente em razão de sua função de investigar e instaurar inquéritos criminais. Por estar à frente das operações dessa natureza, são os seus agentes os mais sujeitos a protagonizarem situações de violência e a sofrerem o contágio do crime, pela cooptação ou pela corrupção.[13]

 

Quando o Ministério Público ocupar definitivamente o papel de investigação, lidando diretamente com a criminalidade, estará igualmente sujeito e suscetível a corrupção, igualmente como hoje está a Polícia. O constitucionalista José Afonso da Silva, em análise, destacou a experiência italiana:

A esse propósito, não é demais recordar o exemplo italiano. O Ministério Público brasileiro ficou muito entusiasmado com a atuação dos Procuradores italianos na chamada operação “mãos limpas”, que teve inequívoco sucesso no combate aos crimes mafiosos. Como se sabe, na Itália vigorava até 1989 o juizado de instrução, quando foi suprimido, e os poderes de inquérito e de investigação concentraram-se nas mãos do Ministério Público. Essa transformação proveio da legislação anti-máfia e teve impacto imediato, mas não tardou a surgirem os abusos de poder. O Procurador Di Pietro, o mais destacado membro do Ministério Público de então, teve que renunciar ao cargo em consequências das denúncias de desvio de poder; assim também se deu com Procuradores na Sicília. [14]

 

Não é possível visualizar o interesse único e exclusivo de combate a corrupção, que foi a principal justificação para a desaprovação da PEC 37/2011. Nitidamente, o que se percebe é um interesse de transformar Promotores e Procuradores em servidores de ilimitado poder, muito por conta de crenças que vislumbram o Ministério Público como um órgão imaculado, impossível de ser penetrado pela mácula da corrupção e da ilegalidade. O Juiz de Direito Guilherme de Sousa Nucci definiu isso em entrevista a Conjur: O MP é bom ou é mau? Isso não existe, é infantil. Ninguém é criança, para achar que é o legal ou o não-legal, o bacana ou o não-bacana.”[15]. Em complemento, José Afonso da Silva alerta:

O Ministério Público no Brasil é hoje uma Instituição da mais alta consideração pública por sua atuação ética e sua eficiência que é preciso conservar e defender. E um dos modos eficazes dessa defesa consiste em mantê-lo dentro dos estritos contornos de suas funções institucionais que não inclui a função investigatória direta.[16]

O interesse da polícia e da autoridade policial pela aprovação da PEC 37/2011 era clara: justificar sua existência. A polícia judiciária perde a razão de existir quando se possui outro órgão exercendo sua função de investigação. A polícia existe para isso. Delegados, investigadores, detetives, agentes da Polícia Federal são pessoas pagas para investigar.[17] Esta frase citada de Guilherme de Sousa Nucci é fundamental para entender que Ministério Público acusa, o Judiciário julga, o Advogado defende, e a polícia investiga. Usurpar o poder investigativo da polícia é tirar sua razão de ser.

Retomando a análise ao Art. 144 da Constituição da República, §4º caberá as polícias judiciárias tal atividade, sendo assim, há de se pensar em ampliar garantias e direitos que lhe possibilitem o exercício de suas atividades de forma independente. A Nota Técnica do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, bem salienta esta importância, sugerindo que o Delegado de Polícia possa requisitar informações e não serem removidos da presidência do inquérito sem justo motivo a fim de lhes estabelecer mais autonomia e independência para a realização da investigação. A OAB sugeriu o acréscimo do §11º a PEC 37/2011:

§11º A Autoridade policial que preside a investigação pode requisitar informações e somente será removida da presidência por avocação do inquérito ou redistribuição, mediante decisão pública e fundamentada por superior hierárquico[18].

 

A importância da investigação criminal é oferecer indícios de materialidade delitiva para instauração da Ação Penal, sendo assim, de fundamental importância que a mesma seja realizada com o devido aparato técnico do qual dispõe as Polícias Judiciárias, e não qualquer outro órgão da República, que não as possua.

 

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Conforme já foi explicitado anteriormente a respeito da referida PEC 37/2011, conclui-se que ela é redundante. Não há norma constitucional que possibilite tal investigação criminal a qualquer outro órgão que não seja a Polícia judiciária. Contudo, existe uma preocupação em deixar mais claro o que já está perfeitamente evidente na Constituição da República, pois mesmo estando explícito que a investigação criminal deve ser presidida e realizada pela Autoridade Policial, ainda assim existem investigações realizadas pelo Ministério Público, em análise, o jurista Ives Gandra ensina:

Esta é a razão pela qual entendo que o PEC seria desnecessário, pois já está implícita na atual Constituição esta prerrogativa EXCLUSIVA dos delegados. Mas, num país como o nosso, sempre é bom deixar o óbvio, mais óbvio. [19]

 

 Discute-se ao longo deste ensaio sobre a real finalidade da proposta de emenda, em que pese há de se considerar que seu caráter tenha sido distorcido em favor de interesses corporativista dos membros do Ministério Público atrelados ao apoio midiático. Embora este, seja um órgão com total crédito perante a sociedade, não se pode depositar a este, todos os problemas da sociedade brasileira para serem resolvidos pelo mesmo. O jurista José Guarnieri em seu livro Las Partes em el Processo Penal diz “Acreditar na imparcialidade do Ministério Público é uma ilusão. A mesma ilusão de confiar ao lobo a melhor defesa do Cordeiro.”[20]

Na perspectiva de buscar o poder pelo poder, a ampliação de funções de um órgão, significa na redução de poderes e funções de outro órgão. E quando esta situação ocorre, existe um risco para a liberdade e manutenção do Estado democrático de Direito. A Constituição da República tem como um dos seus objetivos estabelecer modo de aquisição, exercício e manutenção do poder. Fora da mesma, não se deve falar em atribuições de funções e poderes implícitas, por analogia, ou por Resoluções, que venham a modificar a divisão de funções estatais já definidas. Uma resolução editada por qualquer órgão tem caráter normativo interno a este, desta forma, não pode o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) editar uma resolução que possui efeitos externos, como é a Resolução 13/2006, teria caráter interno, se tratasse de atividade já prevista na Constituição da República a tal órgão.

Existem defeitos na Polícia, como também existem defeitos em todos os outros órgãos do Estado, mas mesmo com problemas, não deve-se macular os poderes de tal instituição, sob pena de ferir um dos princípios republicanos e democráticos: a separação de funções estatais.

Por fim, salienta-se que a Constituição da República Federativa do Brasil determina expressamente que a função de investigação criminal pertence a Polícia Judiciária. A rejeição da PEC 37/2011 foi, contudo antecipada pelo anseio popular, influenciado por um órgão, que até agora, possui crédito perante a sociedade, e também influenciada pela mídia. O sepultamento da PEC 37/2011 significa que o Ministério Público continuará a presidir investigações criminais, por meio de uma Resolução de seu próprio Conselho Nacional, que vai contra a Constituição da República, e que o mesmo continuará com a imagem de “salvador da pátria”. Enquanto a Polícia continuará sucateada, desmoralizada perante a sociedade, e a cada dia que passa, perdendo ainda mais sua função precípua: investigar.

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

ABRAMOVAY, Pedro. Análise da FGV: Respeito ao estado de direito. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/analise-da-fgv-respeito-ao-estado-de-direito-7106882> Acesso: 22 de outubro de 2013.

 

BARROSO, Luís Roberto. Investigação pelo Ministério Público. Argumentos Contrários e a favor. A Síntese Possível e Necessária. Disponível em: <http://www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/7/docs/parecer_barroso__investigacao_pelo_mp. pdf> Acesso: 21 de outubro de 2013.

 

DOMINICI, Márcio. FERNANDES, Renato. Saiba a verdade acerca da PEC 37. Disponível em: <http://notasdodanielaguiar.blogspot.com.br/2013/05/saiba-verdade-acerca-da-pec-37-por.html> Acesso: 21 de outubro de 2013.

 

GANDRA, Ives. A direção do Inquérito Policial. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/parecer-ives-gandra-pec-37-parecer.pdf> Acesso: 21 de outubro de 2013.

 

GUARNIERI, José. Las Partes en el Processo Penal. México, Jose M. Cajica, 1952, p.285

 

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 36ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2010.

 

MOREIRA LEITE, Paulo. Falso debate sobre a PEC 37. Disponível em: <http://www.istoe.com.br/colunas-e-blogs/coluna/291795_FALSO+DEBATE+SOBRE +A+PEC+37>. Acesso em: 25 de outubro de 2013.

 

NUCCI, Guilherme de Sousa. "Discussão sobre investigação pelo MP é maniqueísta". [14 de abril de 2013]. Consultor Jurídico (Conjur). Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-abr-14/entrevista-guilherme-souza-nucci-juiz-substituto-tj-sao-paulo>. Entrevista concedida a Pedro Canário.

 

NUCCI, Guilherme de Sousa. Manual de Processo Penal e Execução Penal, 10ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

 

SILVA, José Afonso da. PARECER A CONSULTA:Em face da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público pode realizar e/ou presidir investigação criminal, diretamente? Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/parecer-jose-afonso-silva-pec-37.pdf> Acesso: 21 de outubro de 2013.

 

TAVARES, Juarez. O Ministério Público e a tutela da intimidade na investigação criminal. Pag. 227

 

TRUST Barometer Brasil 2013. Iniciativa: Eldeman Trust Barometer. Disponível em: <http://www.edelman.com.br/news/trust2013/> Acesso: 24 de outubro de 2013.



[1] Autor do presente artigo e discente do 6º período do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco

 

[3] - O Edelman Trust Barometer mede o estado de confiança em todo o mundo, explorando a confiança nas instituições, indústrias, dirigentes e do impacto das crises recentes em setores de serviços bancários e financeiros.

[4] - MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, p.72

 

[5] - Pag. 2, do texto “Saiba a verdade acerca da PEC 37”, redigido pelo vice-presidente da Adepol - MA (Associação dos Delegados de Polícia do Maranhão) Márcio Dominici, e pelo delegado de Polícia Civil, Renato Fernandes.

[6] - STF, Habeas Corpus nº 81.326-7-DF, 2 a. Turma, Rel. Min. Nelson Jobim. DJU 1 ago. 2003

[7] - Ponto 1 (um) da Nota Conjunta da Adepol-BR (Associação dos Delegados de Polícia do Brasil) e da ADPF (Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal)

[8] - NUCCI, Guilherme de Sousa. Manual de Processo Penal. Pag. 227

[9] - Ponto 2 (dois) da Nota Conjunta da Adepol-BR (Associação dos Delegados de Polícia do Brasil) e da ADPF (Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal)

 

[10] - Pag. 2, do texto “Saiba a verdade acerca da PEC 37”, redigido pelo vice-presidente da Adepol - MA (Associação dos Delegados de Polícia do Maranhão) Márcio Dominici, e pelo delegado de Polícia Civil, Renato Fernandes.

[11] - Pag. 1, da versão online do Jornal O Globo, publicado no dia 19 de dezembro de 2012.

[12] - TAVARES, Juarez. O Ministério Público e a tutela da intimidade na investigação criminal. Pag. 227

[13] - Pag. 17, do Parecer Técnico sobre a PEC 37 do Ministro do STF Luís Roberto Barroso, parecer solicitado pelo Ministro Nilmário Miranda, Secretário Especial dos Direitos Humanos e Presidente do

Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH)

[14] - Pag. 1, do Parecer Técnico sobre a PEC 37 do Professor constitucionalista José Afonso da Silva, a pedido do IBCCrim – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

[15] - Pag. 2, da entrevista concedida a Revista Jurídica online Conjur.

[16] - Pag. 1, do Parecer Técnico sobre a PEC 37 do Professor constitucionalista José Afonso da Silva, a pedido do IBCCrim – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

[17] - Pag. 2, da entrevista concedida a Revista Jurídica online Conjur.

[18] - Pag. 2 da Nota Técnica do Conselho Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)

[19] - Parecer técnico do professor Ives Gandra.

[20] - GUARNIERI, José. Las Partes en el Processo Penal. p.285