Considerações sobre a Violência Policial contra o Juiz Federal
Warley Belo
Advogado Criminalista em Belo Horizonte
Mestre em Ciências Penais / UFMG
Professor de Pós-graduação da UFJF e UNESC
Professor de graduação da Faculdade Kennedy

“Para que serve essa boca tão grande?”
Chapeuzinho Vermelho

O recente caso do juiz federal Roberto Dantes Schuman de Paula, preso por policias da Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais (CORE - elite da Polícia Civil do Estado fluminense) sugere algumas reflexões. Menos porque envolve um juiz federal, mais porque alguém foi preso arbitrariamente.
A violência sofrida pelo juiz federal no dia 04 de fevereiro de 2008, amplamente divulgada pelos meios de comunicação, quando foi preso, algemado, jogado no camburão e conduzido a uma delegacia de polícia sem motivos, segundo a sua versão, não é novidade no Brasil. É pouco provável que alguém discorde que a polícia ainda vive sob o signo da truculência, pois - mais do que a específica violência policial - vivemos sob o signo da violência estatal desde a colonização. O fato que chama a atenção é que a vítima, excepcionalmente, não foi um qualquer do povo, um presidiário, um menor de rua, um negro ou um pobre, mas um juiz federal.
É de se pensar. Se antes do regime militar tínhamos a violência policial contra os populares exclusivamente, na ditadura essa violência alcançou a classe média branca intelectualizada (crimes políticos). Será, agora, que chegamos ao limiar da quinta geração dos direitos fundamentais pior do que estávamos na ditadura militar? Estamos vivendo num estado de não-direitos (Canotilho)? De um governo de homens e não de leis (Platão)?
Descobrimos mais uma vez que a violência policial existe, mesmo. E é um caso clássico da “doutrina de segurança nacional”: a “prisão para averiguações” com a técnica da violação da integridade física e moral. Basicamente violações dos direitos de primeira geração (Bobbio). Em se confirmando a versão, a conclusão rasa é de que alguns integrantes da polícia estão, em certo sentido, incontroláveis porque não possuem um treinamento específico, uma formação humanística de respeito à República brasileira - porque desrespeitar um cidadão é verdadeiramente desrespeitar o próprio Estado Democrático de Direito. Em assim sendo, pior, banalizam a vida e se colocam acima da lei. Acham, por assim dizer, que estão no papel e no direito de determinar o certo - e o errado - em relação aos procedimentos de apuração de eventos.
A tropa de elite da polícia civil do Rio de Janeiro tem uma das melhores formações do mundo, mas só isso não bastou. Uma simples visita ao site da corporação fluminense nos faz perceber que 70% do que se aprende lá, se aprende em uma faculdade de direito também, os outros 30% é sobre ética, comando, ação policial etc. Existe inclusive curso de Direitos Humanos. Mas, infelizmente, o Estado brasileiro nunca primou pela afirmação real dos direitos democráticos. A vida, a liberdade e a integridade corporal e moral dos cidadãos são tutelados pelas leis, mas, apesar do reconhecimento formal desses direitos, a violência oficial continua e de maneira generalizada. Não é a violência contra os pobres, negros, advogados no exercício de sua função, traficantes ou jovens em passeatas. Não é contra grupos determinados. É contra toda a população, contra o povo.
Lutar pelos direitos humanos na Alemanha ou Inglaterra é evidentemente mais fácil do que lutar por esses direitos aqui no Brasil que muitas vezes são taxados de “direitos de bandido”. Lá os movimentos sociais estão engajados na qualidade de vida, há passeatas públicas pelos direitos de quarta geração, aqui no Brasil ainda estamos discutindo violência policial generalizada... E os casos se reptem dia após dia.
Mas, por que apesar das leis, ainda existe o abuso de autoridade? Principalmente por causa da impunidade. É dizer: o Estado não consegue punir os crimes. Nenhum tipo de crime. Não coíbe, nem mesmo, os crimes perpetrados por seus próprios agentes, seja de que escalão ou Poder for. Há uma gigante cifra negra (Sutherland) e quando o policial é punido, segundo a OEA (Comissão Interamericana dos Direitos Humanos. Relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, Washington – D.C., 1997, p. 46), os tribunais brasileiros, mormente os militares, “são indulgentes com os policiais acusados de abusos dos direitos humanos e de outras ofensas criminais, o que facilita que os culpados fiquem na impunidade.”
Na esteira da contradição formal-material, a função institucional da polícia seria para a “preservação da ordem pública” (CF, art. 144). Paradoxalmente, aqui começa uma série de atenuantes aos policias porque de que “ordem pública” estamos falando? A da elite? Então os policiais agem corretamente, porque mantêm os pobres sob controle na favela, sem gastos elevados e pagando imposto. Essa ordem pública elitista também legitima a violência policial ao endossar a mesma violência quando se trata dos outros (Howard Becker), ou seja, dos grupos politicamente mais fracos e minorias. “A violência é para eles e não para nós da elite”. A lei é para todos, mas não podemos nos esquecer que há sempre também os ilegalismos (Foucault), o errado feito de certo, a lei cega que não vê o crime, a interpretação tendenciosa, as exceções das regras.
A própria sociedade exige dos policiais uma conduta violenta. O filme Tropa de Elite (José Padilha), certamente, trouxe muita dor de cabeça para os professores de direito penal, pois normalmente, a população, de maneira geral, defende a pura exterminação dos delinqüentes, ainda mais se forem traficantes. A expressão “guerra contra o crime” é de uso comum na mídia sensacionalista que banaliza o mal (Hannah Arendet). Guerra é entre inimigos e o direito penal é a arma segunda, porque se é inimigo (Jakobs) tem que usar da violência policial, primeiro, porque na guerra há vencedores e vencidos, há “cerco”, “incursões”, “caveirão”, “destruição de bunkers” e por aí vai... Está explícito que a violência é um meio legítimo para se tratar os desajustados. Não se trata de controle, se trata de extirpar os maus da sociedade porque são incorrigíveis (Lombroso). A ideologia reinante no Brasil não é a democrática, ainda é a autoritária.
A sociedade, desse modo, também é culpada. Ela aplaude diuturnamente a violência arbitrária, as leis hediondas, as penitenciárias onde os presos são maltratados, a mídia televisiva que vende a imagem de que policial bom é o que mata bandido, na autorização velada de expulsar os sem-terra com violência, de exterminar os menores infratores, de matar traficantes.
O surpreendente é a violência como debate em raras oportunidades (Hannah Arendt) e não uma preocupação constante das entidades que se manifestaram em favor do juiz. A ideologia do estado brasileiro é essa, Maquiavélica, dos fins, do medo no lugar do respeito.
O policial também é um cidadão e o policial acusado de abuso de poder é o Estado materializado, personificado: o mal nominado e apontado. Mas, a culpa é de todos nós. Minha, como advogado, quando não noticio um abuso; do povo, porque não reclama por medo; da elite, que deseja uma política higienista simples; dos políticos despreparados que propugnam aumento das penas; de juízes que punem mais severamente do que a lei determina; de promotores que denunciam arbitrariamente. A sociedade também é culpada por tudo isso.
O fato é que não podemos admitir que um juiz federal seja tratado como foi, não porque é juiz federal, mas porque não queremos que ninguém seja tratado daquela forma. Dizer que o Brasil é um país subdesenvolvido, sem lei e sem respeito a ninguém não é discurso morto, mas é lamentável que ainda encontre ressonância prática em críticas veladas a uma atuação perniciosa e sistemática de alguns falsos policias que - dentro de uma perspectiva kantiana - enfraquecem o ordenamento jurídico como um todo e isso é muito grave. Não pode prender juiz federal como ocorreu e nenhum cidadão brasileiro ou estrangeiro aqui residente ou domiciliado. A diferença é que a prevenção especial negativa vai ser larga, reinante e absoluta porque a violência dos policiais terá uma resposta repressiva, fato que, comumente não ocorreria se fosse um cidadão qualquer, o que nos leva à conclusão que a prevenção especial positiva será nula ou pequena, pois a violência policial só reduzirá mesmo contra os juízes federais que se identificarem. Essa a conclusão do fato.
Os policiais estão errados porque desrespeitaram os direitos humanos mais elementares. Isso é óbvio. Mas eles também são vítimas do nosso sistema. Nem todos os policiais devem ser havidos por suspeitos, a maioria são honrados pais e mães de família que vivem temerosos, mas etiquetados (Howard Becker) com a mesma pecha que ajudam a propalar: “bandido - até que prove ao contrário”. São humanos também e possuem direitos. E a ideologia da elite nomina-os bodes expiatórios. Basta a lei certa e corretamente aplicada. A causa e o efeito.
É preciso distinguir entre culpa e responsabilidade social e individual. É mais complexo do que se quer imaginar. O fato não é um caso isolado, é comum, mas também não duvido que os policiais tenham bom nível de formação e apresentem, mesmo que formalmente, méritos profissionais e sejam amados pela família. A culpa não deve recair só sobre esses policiais individualmente porque eles também, nesse aspecto, são envoltos na ideologia dominante que manda eles serem assim, apesar da formação profissional dizer o contrário. A responsabilidade deve recair também mais alto, no comando, na secretaria, no governo. Nüremberg não julgou apenas os soldados rasos...
A polícia, no caso do juiz federal, não agiu de acordo com as normas formais, oficiais, da corporação, agiram, sim, pelas normas informais, mas não menos institucionalizadas da nossa atual sociedade. O barco é um só e cada um se defende como pode (quando pode), como bem sintetizaram - na letra “Selvagem” - Bi Ribeiro, João Barone e Herbert Vianna (Paralamas do Sucesso):
“A polícia apresenta suas armas
Escudos transparentes, cassetetes
Capacetes reluzentes
E a determinação de manter tudo
Em seu lugar
O governo apresenta suas armas
Discurso reticente, novidade inconsistente
E a liberdade cai por terra
Aos pés de um filme de Godard
A cidade apresenta suas armas
Meninos nos sinais, mendigos pelos cantos
E o espanto está nos olhos de quem vê
O grande monstro a se criar
Os negros apresentam suas armas
As costas marcadas, as mãos calejadas
E a esperteza que só tem quem tá
Cansado de apanhar”