Ricardino Lassadier Rodrigues de Sousa

"Considerações Sobre a Ciência e a História:
Um Estudo a Partir de Rousseau"

UFPa
Belém/PA
2006

Ricardino Lassadier Rodrigues de Sousa

"Considerações Sobre a Ciência e a História:
Um Estudo a Partir de Rousseau"

Dissertação de conclusão do Curso de
Pós-graduação Latu-Sensu(Especialia-
Lização): "Epistemologia das Ciências
Humanas". UFPa.: Centro de Filosofia
e Ciências Humanas. Sob a orientação
da Professora Verônica Capêlo.



UFPa
Belém/PA
2006

Dedicatória

Dedico o presente trabalho às mulheres de minha vida: minhas mães, as duas Marias, uma de Fátima a outra das Graças. À Lídia, minha esposa, meu amor. Às minhas filhas Sofia e Vitória, que são doces e alegres "pimentas". Por fim, dedico esse trabalho a alguém firme como uma rocha, muito criticado, pouco lido: João Paulo II, exemplo de força moral, de testemunho e fidelidade no que acredita.

Agradecimentos
À professora Verônica, grande na intelectualidade e na simplicidade. Ao amigo irmão e compadre Paulo Sidney, sempre disposto a uma boa troca de idéias. Ao amigo Edson Gonçalves, sempre solícito. Ao Luan, irmão do coração, que me livrou de certas "armadilhas" da tecnologia.

Epígrafe

"O caos do qual Deus tira o mundo harmonioso, não foi o original. Houve um processo histórico no qual o caos se introduziu na bondade primitiva".
Carlos Bazarra.

SOUSA, Ricardino Lassadier Rodrigues de. "Considerações Sobre a Ciência e a História: Um Estudo A Partir de Rousseau". Dissertação de conclusão do Curso de Pós-graduação Lato Sensu (Especialização): Epistemologia das Ciências Humanas. UFPa.: Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Belém, Pará, Brasil.


RESUMO
Desde o alvorecer da modernidade os conhecimentos científicos apresentaram avanços surpreendentes, são extremamente aceleradas as descobertas e invenções, porém, concomitantemente a tamanho desenvolvimento a grande maioria das pessoas não chega a usufruir e nem mesmo conhecer igualitariamente os benefícios da ciência . O conhecimento cientifico rege, de modo geral, o estabelecimento da concepção de verdade a tal ponto que , para muitos, a ciência parece assumir o lugar da religião. Para Rousseau a ciência ao estabelecer suas verdades não tem uma ação ingênua, muito pelo contrário. A ciência frutifica no seio de da sociedade e tem um papel civilizatório é um instrumento da sociedade, então suas verdades estão comprometidas com a sociedade da qual ela brota. Também a história é uma construção social, um instrumento que pretende servir à civilização fazendo o homem crer que o natural é social e dessa forma afasta-o de sua natureza, do estado de natureza.



Sumário



Introdução..............................................................................................................................8

Capítulo 1: Ciência e Aparência.........................................................................................10

Capítulo 2: Ciência um Problema......................................................................................14

Capítulo 3: História: Processo e Ciência............................................................................20

Conclusão..............................................................................................................................27

Referências Bibliográficas....................................................................................................29















INTRODUÇÃO

O homem tem testemunhado mudanças consideráveis no campo econômico, religioso, político, artístico. Não raramente tais mudanças são acompanhadas por outras do campo científico.
No século XX tais mudanças têm se tornado mais e mais surpreendentes, são novidades no ritmo por demais acelerado. O progresso realmente se faz presente, especialmente no domínio da ciência, a tal ponto que ao encantar provoca também espanto. Em nosso tempo, os saberes científicos se agigantaram a tal ponto que são poucos os que diante deles assumem uma postura crítica. Hoje em dia falar que algo foi "comprovado cientificamente" é sinônimo de afirmar "é verdadeiro". Não é considerado normal desconfiar das novidades científicas, no entanto, a decisão entre a normalidade e a anormalidade requer um pressuposto óbvio, e talvez por isso, não muito claro: é preciso confiar-se precisamente à decisão daqueles que estabeleceram as normas. É justamente nesse ponto que a filosofia de Rousseau vem em nosso auxílio, pois ele enfrentou relações ríspidas quando se propôs a refletir criticamente sobre a ciência, procurando mostrar que ela brota da sociedade. Sobre Rousseau não houve (e ainda não há) unanimidade uns "o consideram louco, outros falam apenas de desorientação, de sensibilidade ferida, outros ainda estão prontos a prová-lo e a repelir a acusação sobre a sociedade..." (STAROBINSKI, 1991,p. 208). O cidadão de Genebra parece, não poucas vezes, ir a direção oposta aos pensadores em geral e especificamente ao Iluminismo francês, caracterizado por uma ilimitada confiança na razão (Cf. MONDIN, 1981,p. 153), que concebida como a luz que afugentará as trevas do espírito humano, faz brotar uma crença em certo sentido, utópica na ciência e no intelecto, assim como uma certa rejeição ao tradicional.
Rousseau não está em harmonia com a concepção exposta acima. É nessa "desarmonia" que reside, segundo nosso entendimento, a originalidade rousseauriana que situam-no, de certa forma, fora (para não dizer acima do iluminismo). Seu pensamento é construído como uma crítica à ciência e a fé na mesma.
A ciência, para o cidadão de genebra não é algo bom em si, já que está embrionariamente vinculado à sociabilidade, logo não há como pensar tais questões desarticuladas do problema da moral. A reflexão de Rousseau acerca das ciências pode ser estendida à história. Qual a certeza que ela nos traz e em que ela torna-nos melhor? Ela ajuda-nos a descobrir a verdade sobre o homem? A história para Rousseau também é uma construção social e, enquanto é caracteristicamente de caráter relativista, constitui-se como instrumento útil para mascarar o lado negro da civilização, por isso ela seria "o domínio por excelência da perversão representativa" (FORTES, 1997, p. 26). Desta forma temos a seguinte associação: civilização, ciência, história que resulta em desigualdade e faz com que o homem veja-se não como é em si como parece ser. Buscar a gênese do homem requer um esforço em transpor o discurso representativo da civilização (ciência e história) e ir até a natureza.
No presente trabalho buscaremos estudar o pensamento de Rousseau sobre a ciência e a história, mostrando que ambas estão a serviço da civilização. Pretendemos mostrar que a pretensão de a ciência constituir-se como paradigma de verdade nada mais é do que uma construção social, logo a noção de saber verdadeiro é uma representação, uma máscara que não pode ser desligada da moral. Nosso estudo será desenvolvido em três capítulos: 1º Ciência e Aparência, 2º Ciência: um problema, 3º História: processo e ciência.

Ciência e Aparência.

Os benefícios que o progresso científico trouxe à sociedade são vistos nos dias de hoje como fatos inquestionáveis. Fatos esses que refletem a "benção" que é o estabelecimento do reino técnico-científico. Como que em conseqüência disso o conhecimento científico ganha o estatuto (dogmático) de verdade.
Até que ponto a concepção de que as verdades científicas com seus avanços foram absolutamente benéficas? Até que ponto e em que sentido o progresso foi e é capaz de tornar o ser humano melhor?
Muitas vezes esquecemos que o saber científico frutificou no "berço" da sociedade e desta aquela é cria. Há íntima relação entre sociedade (sociabilidade) e ciência. Rousseau não quer nos deixar esquecer dessa ligação, ele critica o saber científico concebido enquanto guardião e promotor da verdade, pois entende que esse saber, nascido das entranhas da sociedade não tem como fundamentar verdades de caráter absoluto, já que traz consigo a marca indelével da relatividade e o significado disso estão em "que os homens tiveram de utilizar, para o estabelecimento da sociedade, luzes que só se desenvolveu no seio da sociedade" , afirma Rousseau no "segundo discurso" (1988,p. 34).
É na sociedade, da sociedade, para a sociedade que surge o saber científico que na Filosofia de Rousseau, só pode ser compreendida na distinção entre ser e parecer. Para melhor compreendermos essa distinção vejamos o que Rousseau entende por sociedade ou "universo social", de acordo com a explicação de Salinas Fortes em sua obra O Paradoxo do Espetáculo. Este autor nos diz que o universo social "É concebido como um aterrador mundo das aparências, como lugar próprio da dissimulação permanente e perverso, como reinado da mentira, da máscara e das maquinações ocultas, cuja capacidade acabará por conduzir até o delírio pericutório" (SALINAS, 1997, p. 25). O mundo social é o mundo do espetáculo, é o mundo da representação, é um grande teatro, já o mundo natural seria o absoluto, o representado. Este é o ser, aquele é o parecer.
O mundo das aparências (das representações) foi estabelecido pelas "luzes" da reflexão que, nos diz de Rousseau no Ensaio sobre a Origem das Línguas, "nasce das idéias comparadas; pluralidade dessas idéias é que leva à comparação" (1987, p. 175). Isso significa que conhecer, neste sentido, nada mais é do que estabelecer relações ou comparações (Cf. SALINAS, 1997,p. 68).
Para Rousseau o conhecimento mais difícil e ao mesmo tempo o mais necessário ao homem é o conhecimento de si mesmo, de sua natureza que deve transpor as aparências da sociedade, da vaidade. No Discurso Sobre as Ciências e as Artes Rousseau diz: "rapidamente, as ciências seguiram as artes, à arte de escrever juntou-se a arte de pensar ? gradação que pode parecer estranha e talvez não seja senão demasiado natural e se começou então a sentir a principal vantagem do comércio das musas, que é o de tornar os homens mais sociáveis, inspirando-lhes o desejo de deleitarem uns aos outros por meios das obras da sua aprovação recíproca" (1988,p. 138). O advento da sociabilidade inspira o desejo, o deleite de aprovação recíproca, isto é, de vaidade.
As necessidades do espírito (não do corpo) são os fundamentos da sociedade, ou seja, as necessidades fundam a sociedade e a aprovação recíproca constitui o deleite da sociedade de tal maneira que o deleite social converte-se em necessidade social.
A sociabilidade não se sustenta sem a vaidade ou sem todos os mecanismos sociais motivadores de vaidade: artes e ciências. Tanto uma como outra, Rousseau admite, trazem a sensação de bem-estar, de conforto, porém, quando o homem é atingido por essas sensações (produzidas pelo advento das ciências e das artes), passa a amá-las, apaixona-se por esse conforto e torna-se escravo delas rejeitando o sentimento de liberdade, dizendo de outra maneira: os benefícios das artes e das ciências resultam em um malefício ao homem na medida em que ele torna-se escravo da vida social passa a desejar e a amar essa escravidão. Acerca disso Rousseau no primeiro discurso, assim se expressa: "enquanto o governo e as leis atendem à segurança e ao bem ? estar dos homens, reunidos, as ciências, as letras e as artes, menos despóticas e talvez mais poderosas, estendem guirlandas de flores sobre as cadeiras de ferro de que estão carregados, afogam-lhe o sentimento dessa liberdade original para a qual pareciam ter nascido, fazem com que amem sua escravidão e formem assim o que se chama povos policiados" (ROSSEAU, 1988, p.p. 138, 139). Rousseau, como vimos refere-se as ciências e as artes no entanto vamos restringir nosso estudo às ciências. A leitura crítica que Rousseau elabora sobre as ciências se dá não tanto pelo aspecto estritamente epistemológico e sim pelo fato de ela ser um instrumento social que forma "povos policiados", sendo que essa formação implica ao mesmo tempo na deformação do homem extraindo-lhe a liberdade.
As críticas de Rousseau elaboradas no primeiro discurso, sem dúvida, causaram muitos espantos entre os iluministas do século XVIII; século que é em geral caracterizado por uma grande confiança na razão (Cf. MONDIN, B. 1982, p. 153). Ora, a razão no século XVIII é entendida como a luz que afugentará as trevas do espírito humano. É daí que brota uma crença utópica nas ciências e no intelecto.
Rousseau incompatibiliza, mediante suas críticas, virtudes e ciências. O cidadão de Genebra sabia que, não raramente, os conhecimentos produzidos no bojo social estão a serviço do luxo e do ócio, da degradação e domesticação do homem, ou como comenta Gilda de Barros em seu estudo Platão e Rousseau: O Estado Total: "Por trás de tais críticas está a convicção de que não é preciso ser sábio para ser virtuoso: todos somos iguais, todos somos por natureza bons..." (BARROS, 1987, p. 331). A sabedoria criticada por Rousseau seria o saber civilizatório que engendra um homem artificial, logo mentiroso, e ao mesmo tempo a bondade natural do homem aludida por Gilda de Barros, presente no "primeiro discurso" de Rousseau diz respeito à ausência de maldade nativa, natural.
A imagem da civilização e de suas expressões (como as ciências), segundo Rousseau, não corresponde à verdade.
A civilização fala de virtudes sem requerer uma vivência prática, é pura retórica formal que visa encobrir defeitos reais. No meio civilizatório os discursos acerca das virtudes servem para escamotear os vícios sociais e, ao esmo tempo, para formar pessoas que tenham apego à escravidão civilizada.
As ciências trazem essa mesma mácula! Isto é, as ciências enquanto legítimas representantes da sociedade trazem consigo esse amor sofístico pelas virtudes. E provocam, assim como legitimam, as desigualdades. Para Rousseau é proporcional o florescimento científico (e também artístico) ao de decadência moral de forma que os estudos, o amor , a erudição nada têm haver com amor à verdade. Busca-se realmente é a autopromoção, atrair para si todos os olhares, tornar-se celebridade, promover a exploração em nome do conhecimento.
Queremos, novamente, por em evidência que a crítica rousseauriana se dá em sentido ético e não epistemológico, não é uma crítica interna às ciências e sim uma crítica em aspecto social, por constatar que aos avanços científicos acompanham avanços de desigualdade e de corrupção. Escreve Rousseau no "primeiro discurso": "onde não existe nenhum efeito não há nenhuma causa a procurar; nesse aspecto, porém, o efeito é certo, a depravação é real, e nossas almas se corromperam à medida em que nossas ciências e artes avançaram no sentido da perfeição" (ROUSSEAU, 1988,p.141). Há um proporcionalismo, uma equivalência entre a perfectibilidade das ciências e da depravação. Mas isso não é novo, vem de muito tempo essa decadência tanto que, afirma Rousseau ainda em continuidade na mesma página citada: "dir-se-á ser uma infelicidade própria de nossa época ? Não, senhores; os males causados por nossa vã curiosidade são tão velhos quanto o mundo. A revelação e o abaixamento cotidianos das águas do aceno não forma mais regularmente submetidos a curso dos astros que nos ilumina durante a noite quanto a sorte dos costumes e da probabilidade aos progressos das ciências e das artes. Viu-se a virtude fugir à medida que sua luz se elevava no horizonte e observou-se o mesmo fenômeno em todos os tempos e lugares".
Parece?nos revelador a analogia que Rousseau traça entre a regularidade natural e a social. O que ele quer nos mostrar? O que isso significa? Rousseau ironicamente quer nos indicar a natureza da corrupção e da decadência, ou seja, é "natural" os costumes serem corrompidos quando o homem se desnaturaliza, quando a desigualdade social é convertida em "natural" e muito para isso contribuem artes e ciências em razão da "fome de vaidade".
A nocividade da vaidade consiste no apego à comparação em relação a outras pessoas tidas como inferiores, ou como explica N. J. H. Dent em seu Dicionário Rousseau: "o desejo do indivíduo presumido de medir-se em relação a outros e de congratular-se por sua precedência sobre eles é, no entender de Rousseau, um dos mais difundidos desejos humanos em sociedade, apesar de ser profundamente nocivo tanto para o perpetrador quanto para o visado pela atitude" (DENT. 1996,p. 208). Hoje em dia poderíamos dizer que, para Rousseau a vaidade cria dependência e enquanto tal é uma "droga social" que torna a vista turva impedindo que enxerguemos o homem como ele é. Por isso para enxergarmos o homem em sua perspectiva moral é preciso desvencilhar?se dos "livros científicos", pois nos fornecem conhecimentos falaciosos, representativos sobre o homem. Nesse sentido as ciências seriam um poderoso e eficaz instrumento de legitimação das desigualdades, valorizando conhecimentos agradáveis em depreciação daqueles que podem trazer benefícios.



























A Ciência: um problema.
Ao contrário dos enciclopedistas que viram a cientificidade como solução para os problemas do homem, Rousseau tem a concepção da ciência constituir-se de maneira problemática. Por motivo da degradação, da desigualdade e da dependência por vaidade que proporciona ao homem. Isso tudo vimos anteriormente. Porém, tais características ainda não tocam o centro da questão. Em outras palavras, parece-nos que esses aspectos são muito mais conseqüências graves de um problema mais profundo. No presente capítulo procuraremos investigar tal problema.
O primeiro discurso é iniciado por Rousseau com um elogio às ciências e as artes em seus progressos e luzes, entretanto, pouco depois o "tom" muda, brota um discurso fortemente crítico. Qual a razão desse método? Qual seria o motivo de Rousseau iniciar seu discurso com uma retórica desprovida de verdade? Partindo da dicotomia ser?parecer, podemos entender que o cidadão de Genebra faz uso das "armas" da sociedade para por em evidência as riquezas e malezas da mesma, ou seja, assim como a civilização, a sociedade prega virtudes sem ser virtuosa; Rousseau elogia para criticar. Starobinski em sua obra Rousseau: A Transparência e o Obstáculo comenta:"o discurso sobre as Ciências e as Artes começa pomposamente por um elogio da cultura. Nobres frases se desdobram, descrevendo em resumo a história inteira do progresso das luzes. Mas uma súbita reviravolta nos põe em presença a da discordância do ser e o parecer (... ). Belo efeito de retórica: um toque de varinha mágica inverte os valores, e a imagem brilhante que a mais que um cenário mentiroso..."( STAROBINSKI, 1991,p. 15 ).
A mentira e a aparência são componentes da civilização, pois ela é um terreno fértil e propício para o desenvolvimento das ciências e das artes, do refinamento, da polidez ou como explica N. J. H. Dent no seu Dicionário Rousseau: "por civilização entende ele ( Rousseau ), de um modo não muito bem definido, o crescimento das artes e das letras; a introdução de maneiras e formas de vestir refinadas, costumes sociais elaborados; o desenvolvimento de grandes cidades como centros onde muita gente desfruta do ócio e, por conseguinte, das diversões pessoais e sociais que isso possibilita e exige" ( DENT, 1991,p. 64 ).
As diversões o ócio não constituem uma anomalia social, muito pelo contrário, faz parte do ser de civilização , mas este ser é paradoxalmente desprovido de verdade. Por isso Rousseau é irônico: elogia, cativa a atenção da civilização fomentando a vaidade. Podemos dizer que Rousseau procede semelhantemente a Sócrates descrito por Platão em seus diálogos. Também Sócrates geralmente inicia sua maiêutica exaltando, elogiando, seu interlocutor.
Vale lembrar quem há um determinado momento da vida de Sócrates em que o interlocutor foi a própria sociedade: quando do seu julgamento. Nesse contexto ele manifesta-se ironicamente sobre a pena que mereceria: "qual recompensa convirá a um benfeitor pobre que precisa ter limite todo o tempo para vos admestar ? Não há nada tão indicado, ateniense, para um indivíduo nessas condições, do que ser alimentado no pritaneu, muito mais do que para qualquer de vós que houvesse sido vencedor em Olímpia, com cavalo de corrida ou em corrida de carro com dois ou quatro cavalos".(Apologia de Sócrates, 35 ? d).
Rousseau, a exemplo de Sócrates, dialoga com a sociedade criticando-a jocosamente, pois em sociedade, em civilização efetiva-se o rompimento entre o ser e o parecer. Rousseau inicia seu discurso teatralizando essa ruptura.
O "parecer" é fonte das infelicidades, já que impede que as atitudes correspondam com as disposições do coração, em razão da já citada ruptura. Starobinski comenta: "A ruptura entre o ser e o parecer engendra outros conflitos, como uma série de ecos amplificados: ruptura entre o bem e o mal (entre os bons e os maus), ruptura entre natureza e a sociedade, entre o homem e seus deuses. Entre o homem e ele próprio". (STAROBINSKI, 1991,p. 17). O reino civilizado é o reino da aparência, é o reino do não-ser ou da inexistência de ser, um dos principais promotores sociais da aparência é a ciência, em razão disso ela é um problema que disfarsa-se de solução. Nesse sentido o conhecimento científico não possibilita ao homem conhecer-se. A civilização, e enquanto domínio das aparências, é "prenhe" de representações. A ciência ( fruto social ) da civilização traz em sua "genética" a herança hereditária do aparente.
No "primeiro discurso" Rousseau escreve que em sociedade o homem não "ousa mais parecer tal como se é e, sob tal coerção perpétua, os homens que formam o rebanho chamado sociedade, nas mesmas circunstâncias, farão todos as mesmas coisas desde que motivos mais poderosos não os desviem" (ROUSSEAU, 1988,p. 140). Formar esse comportamento padronizado seria a perda de liberdade. O conhecimento científico, nesse sentido, constitui-se problema para Rousseau por distanciar o homem do seu estado original, mediante avanços e progressos da ciência, isto é, quanto maior o progresso da investigação científica, mais distante encontra-se o homem da sua condição original.
Aliás, falar em progresso já é, já implica em um certo distanciamento dicotômico do homem natural, em sua condição original. O homem não seria mal em sua natureza, a origem da maldade e o seu progresso está na ordem social.
O progresso científico não é em si um bem, não é sinônimo de bom, é sim um problema. No "segundo discurso" Rousseau se expressa da seguinte forma: "desposando esse ser, assim constituído, de todos os dons sobrenaturais que ele pode receber e de todas as faculdades artificiais que ele só pôde adquirir por meio de progressos muito longos, considerando-o, numa palavra, tal como deve ter saído das mãos da natureza, vejo um animal menos forte do que uns, menos ágil do que outros, mas, em conjunto, organizado de modo mais vantajoso do que todos os outros" (ROUSSEAU, 1988,p. 42). O enfraquecimento do homem, assim como o seu artificialismo é adquirido mediante o progresso. Nesse sentido, falar em progresso é falar de enfraquecimento. A ciência que progride em facilitar a vida, em proporcionar ao homem uma existência mais confortável, constitui-se como um fabuloso e, ao mesmo tempo, terrificante instrumento que corrói o caráter e a têmpera.
Parece-nos que Rousseau pretende buscar a imagem do homem original, daí a crítica ao progresso e à ciência. Com tal crítica Rousseau propõe o despojamento das faculdades (artificiais) que o progresso trouxe ao homem. A esse respeito comenta N.J.H. Dent: "Dessas mudanças progressivas emergem diferenças de riqueza e poder, as quais habilitam alguns prosperar enquanto outros vivem na indigência imposta, e que resultam finalmente na instituição de Estados injustos, os quais reforçam tais desigualdades pelo direito positivo; são essas algumas características da vida humana que recebem de Rousseau as mais severas críticas" (DENT, 1996,p.189). Isto significa que o progresso científico-social é seletivo já que nem todos têm acesso a ele. De fato não é o que observamos? Se Rousseau tinha razão em sua época, tem muito mais hoje em dia! Vivemos na civilização, no império da tecnologia, da absolutização do poder da ciência, concebendo-a como o único meio de solução para os problemas do homem. Ora, isso nada mais é do que o endeusamento, a divinização da tecnologia (especificamente) e da ciência (em sentido mais geral). Esse progresso de divinização (ou progresso divinizatório?) produz um desequilíbrio, uma confiança desmedida e desordenada assim como um cientificismo endeusado por motivo de uma esperança salvífica. A tudo isso Rousseau chamaria de ilusão, ficção, artificialismo.
A desigualdade é reforçada por essa tecnolatria (ou cienciolatria), pois em certo sentido todos são atingidos por ela, por essa crença ainda que somente uma minoria desfrute dos benefícios. Entretanto, o curioso é o seguinte: tanto aqueles que são beneficiados, como os que não são embarcam na tecnolotria, e tornam-se escravos dela. Os que são beneficiados tornam-se escravos por ficarem viciados nos benefícios. Os que não são beneficiados tornam-se escravos por serem prisioneiros do desejo pelo benefício que não desfrutam. Em outras palavras, uns são prisioneiros do que tem, outros são prisioneiros do que não tem mas desejam ter.
Diante de tudo o que até aqui comentamos, podemos esclarecer a diferença entre desigualdade natural e desigualdade social. Assim se expressa o cidadão de Genebra no "segundo discurso" afirmando que são de dois tipos: "um que chamo de natural ou física, por ser estabelecida pela natureza e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou pelo menos autorizada pelo consentimento dos homens" (ROUSSEAU,1988,p. 39). A desigualdade política é estabelecida socialmente, ou podemos dizer que é estabelecida civilizadamente objetivando mascarar ou justificar privilégios ou dominações de uns sobre outros.
Parece-nos que embora Rousseau use a palavra "desigualdade" indistintivamente (tanto para o plano natural como a desigualdade estabelecida pela e na civilização), podemos facilmente notar a diferença que tange ao conteúdo. Então, aquilo que Rousseau denomina desigualdade natural constitui-se muito mais como fator de diferença, já que é desprovido de conteúdo valorativo social (bom e mal). A desigualdade natural pode ser entendida como diferença. Por outro lado, e desigualdade propriamente dita é a social ou civilizada, é estabelecida de forma artificial e traz em seu seio aspectos só existentes no plano da sociabilidade: dominação, exploração.
Para Salinas Fortes essa dicotomia presente entre as desigualdades pode ser entendida na contradição entre ser e parecer: este diz respeito à sociedade, aquele a natureza. Na sociedade reina a aparência, na natureza o ser, o absoluto, de tal maneira que a desigualdade natural (por ser na realidade uma diferença), predomina a igualdade, e no universo social predomina a desigualdade. Mas deixemos o próprio Salinas explicar: " é dessa desigualdade, por conseguinte, que não é apenas desigualdade entre os homens, mas oposição entre a aparência e a realidade, que os vícios também se alimentam, é em virtude dela que a "polidez" e a ?arte de agradar ´ do primeiro discurso transforma-se numa espécie de segunda natureza, que não ouse mais parecer aquilo que é, já que não é mais possível conhecer o íntimo dos outros, que cada face é necessariamente mentirosa e que a vida em sociedade é o reino da hipocrisia" (FORTES, 1997,p.39).
Todo esse mecanismo é corroborado, legitimado pela ciência, assim como pelas artes. Há no estado civil uma igualdade de direito que é uma falsa igualdade, pois essa igualdade é mantida às custas de um mecanismo, em si, antagônico: A opressão do mais forte sobre o mais fraco. Esse antagonismo resultaria nos outros antagonismos da sociedade. A igualdade de direito (social) é uma ficção, é algo que parece ser mas não é, logo a igualdade social carece de realidade. Já a igualdade natural é real. É dessa dicotomia entre o ser e o parecer, entre a natureza e a sociedade que brotam os vícios.
A civilização promove o desenvolvimento das ciências, estas legitimam a civilização. Isso para Rousseau constitui-se como problema abissal na medida que a promoção e o empenho pelas ciências afasta o homem de promover e buscar virtudes, obviamente contrárias aos vícios. O problema da ciência apresenta-se como um problema de origem, é o que nos fala Rousseau no "primeiro discurso": "as ciências e as artes devem, portanto, seu nascimento a nossos vícios: teríamos menor dúvida quanto às suas vantagens, se devessem a nossas virtudes. O pecado de sua origem marcou-se fartamente em seus objetos" (ROUSSEAU, 1988,p. 147).
Mas como determinar essa origem e a que vícios Rousseau está se referindo? A segunda parte da pergunta Rousseau responde com clareza, quanto à primeira parte podemos apontar uma resposta a partir de Rousseau. Comecemos pela segunda parte. Citando o primeiro discurso: "Astronomia nasceu da superstição; a eloqüência da ambição, do ódio, da adulação, da mentira; a geometria, da avareza; a física, de uma curiosidade infantil; todas elas e a própria moral, do orgulho humano" (ROUSSEAU,1988,p. 147). Mais adiante, ainda na mesma página ele continua: "se nossas ciências são inúteis no objeto onde se propõem, são ainda mais perigosas pelos efeitos que produzem. Nascidas da ociosidade, por seu turno, a nutrem, e a irreparável perda de tempo é o primeiro prejuízo que determinam forçosamente a sociedade".
São muitos os vícios que Rousseau enumera: avareza, adulação, ociosidade dentre outros. A sociedade aprofunda e, (por mais paradoxal que pareça) aperfeiçoa tais vícios. E nesse sentido que as ciências são eficientes instrumentos das desigualdades sociais. As ciências, ao promoverem a civilização degradam o homem tornando-o ocioso, adulador, desejoso de aplausos, orgulhosos, amante de coisas inúteis.
Agora, como determinar a origem? Arriscaremos uma hipótese como resposta, a exemplo do próprio Rousseau. Em um primeiro momento, o homem ao empenhar-se em superar determinadas dificuldades produziu artefatos, mas logo deixam de ser produzidos por esse motivo e passam a ser feitos para satisfazerem desejos e futilidades, despertando a vaidade. Um homem passa a julgar-se melhor ou superior do que outros, compara-se com os outros, orgulha-se por sua precedência e por sua presumível superioridade. Partindo dessa conjectura, entendemos que a civilização (progresso civilizatório) origina-se não quando o homem produz algo, mas sim quando ele passa "produzir" vícios. E a ciência seria uma eficiente produtora, não somente de "objetos", mas sobretudo de "pessoas-objeto", e isso é absolutamente contrário à natureza. Por isso, ao lermos o primeiro discurso quase escutamos o brado de Rousseau: "povos sabei, pois de uma vez por todas, que a natureza vos quis preservar da ciência como uma mãe arranca uma arma perigosa das mãos do filho; que todos segredos que ela esconde de vós são tantos outros males de que vos defende e que vosso trabalho para vos instruirdes não é menor de seus benefícios" (ROUSSEAU, 1988,p. 146). Portanto, a ciência é uma arma que o homem lida de forma a levá-lo ao prejuízo: desigualdade da sua humanidade, a degeneração de sua natureza, a sua desnaturalização.
Diante de tudo o que até aqui refletimos, parece-nos que segundo Rousseau, o homem entra em um ciclo vicioso: o homem produziu a civilização; esta produz um homem desnaturalizado para continuar fomentando civilização...
O ciclo citado anteriormente se dá no âmbito de uma construção histórica. A seguir desenvolveremos breves considerações acerca da história enquanto ciência e enquanto processo de sociabilização.



























História: processo e ciência
O homem civilizado sempre demonstrou ter um certo fascínio pela memória. Mas a memória requer , ao mesmo tempo, por mais paradoxal que pareça a construção do esquecimento já que a construção de uma memória social exige uma seleção de eventos. Nesse sentido a construção de uma memória social é a construção de uma história social, ou ainda, se a civilização tem uma memória, deve ter uma história. A construção da história de um povo (de uma civilização) implica necessariamente em negar determinadas articulações e aprovar outras; jogar certos acontecimentos (ou a lembrança deles) no limbo do esquecimento e eleger outros a permanecer bem na perenidade.
Podemos notar desde já que não há, logicamente imparcialidade histórica, então qual seria ou até que ponto podemos confiar na verdade histórica? Ou melhor, há uma verdade histórica? Ou ainda, há uma história que seja verdadeira? Rousseau nos possibilita desenvolver certas considerações acerca da história.
A história já na antiguidade tem sido escrita (ou construída) sob gêneros literários diversos: memória política, crônica monástica,tratados de antiquários... Porém, há o predomínio, segundo Peter Burke, da "narrativa dos acontecimentos políticos e militares, apresentada como a história dos grandes feitos de grandes homens ? chefes militares e reis. Foi durante o Iluminismo que ocorreu pela primeira vez uma contestação a esse tipo de narrativa histórica". (BURKE, 1997, p. 17). Passa-se a tentar construir uma história das civilizações ou história das sociedades. Seria uma história que lança o olhar sobre acontecimentos que, em tese não se limitaria à guerra e à política, mas se ocuparia dos costumes, dos hábitos sociais. Daí que muitos passam a tergiversar sobre as estruturas (conceito não muito claro, que reverbera ora em costumes, ora na economia): atingindo o século XIX, citamos como exemplo Burckhardt que, diz Burke, "interpretava a história como um campo em que interagiam três forças ? o Estado, a Religião e a Cultura" (BURKE, 1997, p. 19). Marx por sua vez concebe que o "motor" da história seria, estaria nas tensões ou conflitos presentes entre as estruturas sócio-econômicas. Já para Comte, procurando legitimar o entendimento de seu positivismo, diz que "é indispensável ter de início uma visão geral sobre a marcha progressiva do espírito humano, considerado em seu conjunto, pois uma concepção qualquer só pode ser bem conhecida por sua história" (COMTE, 1996,p.22). Aqui a história assume a condição progressiva do espírito humano que iria de uma fase primitiva até outra fase plenamente desenvolvida. Ainda na mesma página, Comte coloca em evidência a sua crença no conhecimento que a história progressiva proporciona. Ao afirmar: "creio ter descoberto uma grande lei fundamental, a que se sujeita por uma necessidade invariável, e que me parece poder ser solidamente estabelecida, quer na base de provas racionais fornecidas pelo conhecimento de nossa organização, quer na base de verificações históricas resultantes de um exame atento do passado. Essa lei consiste em que cada uma das nossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa sucessivamente por três estados históricos diferentes: o Estado teleológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado científico ou positivo" (COMTE, 1996,p. 22). Em Comte a história contém, em certo sentido, a idéia de um processo civilizatório, tal processo está essencialmente ligado a um paulatino, necessário e (para Comte) bom, positivo distanciamento da fase primitiva, da fase próxima à natureza.
Já no século XX surge a história de longa duração, a micro-história, a história de curta duração, a história das mentalidades, a história da vida privada, a história dos excluídos... são muitas as histórias! Mas todas tem algo em comum: a legitimação da sociedade, da civilização ou de uma ficção da mesma. Assim, podemos dizer que o saber histórico é um saber eminentemente representativo, de tal maneira que, pela lente da história, só sabemos do homem, a imagem que ele constrói de si mesmo.
O "segundo discurso" versa sobre a origem e o fundamento das desigualdades entre os homens, mas para chegar a essa origem, segundo Rousseau, é necessário conhecer o próprio homem" pois, como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se começar a conhecer a eles mesmos?" (ROUSSEAU, 1988,p.31). É preciso ir buscar o homem antes do progresso, isto é, antes da civilização, que modifica a alma humana tirando dela a originalidade inicial. O grande problema das mudanças é que elas fazem brotar desigualdades, de forma que uns prosperam enquanto outros (a grande maioria) vive como indigentes, ou seja, do progresso nasce a injustiça (DENT, 1996,p. 189). Os progressos científicos, ao acumularem conhecimentos, estabelecem barbáries que dificultam ao homem conhecer-se em sua gênese natural.
Rousseau visa estabelecer, ao optar em desenvolver o segundo discurso no plano de uma história conjectural, a separação entre a natureza (original) e a sociedade artificial (cf. ROUSSEAU, 1988, p. 32). Reconhecer a uma história conjectural é, evidentemente, negar uma história científica, negar o progresso do homem social, que é, ao mesmo tempo, artificial. Sobre essa noção de artificialidade comenta P.P. Coroa: "sem dúvida, a consolidação da idéia de artificialidade relativamente à vida sócio-política será indispensável para o pensamento de Rousseau. Ela assinala a distância entre o homem natural e o homem artificial" (COROA, 1998, p. 93).
Essa distância entre o artificial e o natural, é a distância entre a verdade e a mentira. Ora, Rousseau ao garimpar o homem em sua condição natural busca a humanidade em sua verdade, em certo sentido "ontológico": na medida em que busca o ser do homem, antes das aparências, da civilização.
A história tem mérito de ser (nas suas diversas correntes) um fantástico instrumento que está a serviço das aparências, é uma produtora de máscaras sociais confeccionadas lentamente com o passar do tempo.
Em sociedade, segundo Rousseau, vive-se sob a égide da aprovação recíproca (cf. ROUSSEAU, 1988, p.138). Isso revela que com o progresso social, civilizado (já que não há sociabilidade sem progresso), o homem é transformado, ou como diz Salinas Fortes: "com a passagem para a sociedade é concomitante acesso à linguagem, gera-se o desequilíbrio, produz-se a possibilidade de ocultação do ser no parecer e da desordem e é nesse contexto que se situa a busca de uma ordem"(FORTES,1997,p. 79). É efetuado uma metamorfose sofrida pelo homem em sua passagem do estado de natureza para a vida social. Essa passagem implica em um progresso, na dissimulação e na vaidade, em outras palavras, podemos dizer que essa passagem é uma páscoa às avessas. Tanto no sentido judaico como no sentido cristão. Mas expliquemos esta afirmação: para os Hebreus a Páscoa tem sentido de conquista ou saída da condição de escravos: "naquele dia, Iahweh livrou Israel das mãos dos egípcios, e Israel viu os egípcios mortos à beira-mar. Israel viu o grande poder que Iahweh havia mostrado contra eles. E o povo temeu a Iahweh e creram em Iahweh e em Moisés seu servo" (Ex. 14, 30-32). Para o Cristianismo, a páscoa assume uma libertação em nível não somente social ou histórico mas ontológico: "sabendo que nosso velho homem foi crucificado com ele (Jesus) para que fosse destruído este corpo de pecado, e assim não sirvamos mais ao pecado. Com efeito, quem morreu, ficou livre do pecado. Se morremos com Cristo, também vivemos com ele..." (Ro 6, 6-8). Ora, tanto para Hebreus como para Cristãos a páscoa é sempre passagem de uma condição de escravidão (Egito/Pecado), para uma condição de liberdade (terra prometida/ressurreição e reino de Deus). Fazendo uso das duas citações aqui apresentadas é que podemos entender que a passagem realizada pelo homem do estado de natureza ao estado de civilização é a passagem de uma condição de liberdade originária para uma condição de aprisionamento: "Páscoa às avessas", que é promovida ou ao menos legitimada pela história.
O homem civilizado é o homem histórico, que foi se dissimulando progressivamente. Através da construção histórica dá-se a impressão de que a passagem da natureza à sociedade fez do homem um ser, paulatinamente, progressivamente melhor. Para Rousseau isso não passa de uma construção falaciosa, de forma que progredir não significa de maneira alguma tornar o homem melhor, muito pelo contrário é degenerar-se.
Pela lente da história só sabemos dos homens as imagens que eles construíram deles mesmos, por isso a "visão histórica" mostra-nos os homens deformados pelo progresso civilizatório, desprovidos de suas qualidades originais (naturais). Para Salinas Fortes "o progresso histórico-social se define como um perigoso processo de exteriorização ou como processo da dicotomia entre ser e parecer de construção das individualidades públicas e privadas, propiciado pela interferência conflitante de uma multiplicidade complexa de movimentos exorbitantes de translação social" (FORTES, 1997,p. 70). O processo histórico é, portanto, um processo de exteriorização, porém a história (enquanto construção cientifica), não põe isso às claras, mas escamoteia, mascara.
Esse perigoso processo dicotômico entre ser e parecer implica na passagem que o homem realiza do amor de si ao amor próprio, tal passagem é uma das maiores perversidades realizadas pela civilização e legitimada pela história (ou pelo conhecimento histórico produzido pela civilização), produzindo uma imagem desnaturalizante do homem. Rousseau considera o homem em sua origem integrado à natureza. Com o objetivo de compreendermos melhor esse processo dicotômico citado anteriormente, faremos uma breve análise dos conflitos: amor de si e amor próprio, porém antes, parece-nos importante refletirmos sobre a similitude acerca do homem e do animal no que tange à concepção de idéia, já que é uma concepção que, classicamente visa distanciar homem e animal.
Afirma Rousseau no "segundo discurso": "todo animal tem idéias, posto que tem sentidos; chega mesmo a combinar suas idéias até certo ponto e o homem, a esse respeito, só se diferencia da besta pela intensidade. Alguns filósofos chegaram mesmo a afirmar que existe maior diferença entre um homem e outro do que um certo homem e certa besta" (ROUSSEAU, 1988,p. 47). Assim sendo, não seria o fato de termos idéias que nos faria diferentes dos animais, o que realmente faz a diferença é que os animais seguem as "ordens" da natureza enquanto o homem (apesar de ser influenciado pela natureza), é consciente de deixar-se levar por essa influência ou não. Assim, a liberdade que faz a diferença entre o homem e o animal. Então, "o mal (e o bem) moral é imputável ao homem porque é a fonte auto-determinante de suas próprias ações" (DENT, 1996,p.156). Logo, a fonte do mal moral é o próprio homem de tal forma que, continua na mesma página N.J.H. Dente, "ao dar a liberdade dessa espécie, Deus inseriu nas ações do homem a moralidade que os enobrece". Parece-nos que, segundo Dent, Rousseau conceberia a moral (ou moralidade) em dois sentidos, um sentido negativo e um positivo. Este seria a verdadeira moralidade, implicando em deveres e obrigações em sentido virtuoso, obedecendo as consciências e buscando o bem comum. Aquele outro sentido serviria para ajudar no estabelecimento das desigualdades, ou seja, a moralidade negativa consistiria em serem todas as concepções, conjunto de normas teorias sociais que teriam o objetivo de legitimar a exploração, a desigualdade, estabelecendo e fundamentando deveres demais para uns e direitos demais para outros. Fica claro que essa última forma de moral confere a uns privilégios enquanto a outros deveres. A história seria justamente um eficaz instrumento de legitimação na medida em que serve para criar uma mentalidade civilizada.
Outro aspecto que diferencia o homem do animal é a capacidade de aperfeiçoar-se, aponta Rousseau no segundo discurso (Cf. ROUSSEAU, 1988, p. 47). Essa qualidade está associada à liberdade. Essa faculdade é um auxílio ao desenvolvimento das demais faculdades humanas, ela (a faculdade citada), faz-se presente tanto na espécie como no indivíduo. O aperfeiçoamento, no entanto, pode ocorrer para melhor (enobrecimento moral) ou para pior (degeneração moral) e, dessa forma, o homem muda e se transforma, mas essa mudança não quer dizer que seja necessariamente para melhor.Rousseau denomina essa faculdade de perfectibilidade. Como ela tem a capacidade de elevar e também degradar o homem, a perfectibilidade pode ser fonte abissal dos males da humanidade assim como constituir-se como construtora de bens. Isso significa, no caso do progresso civilizatório, que foi a perfectibilidade que fez o homem perder ou distanciar-se do estado de natureza, fazendo surgir, diz Rousseau: "luzes e erros, seus vícios e virtudes, o torna, com o tempo, o tirano de si mesmo e da natureza" (ROUSSEAU, 1988, p.47). Pois bem, Rousseau associa a perfectibilidade às luzes (razão), aos erros. Há aqui segundo nosso entendimento uma mordaz crítica lançada por Rousseau ao Iluminismo, querendo indicar que a razão, por si só, não traz o bem ao homem. A história, enquanto fonte de construção de conhecimentos ganhou grande fôlego no Iluminismo (particularmente o Francês), então cabe perguntar: os conhecimentos produzidos por ela trazem aos homens que bens, na medida que ela serve como instrumento de legitimação da civilização?
Feitas tais considerações podemos entender com mais clareza o processo dicotômico entre ser e parecer. Anteriormente afirmamos que esse processo implica na passagem que o homem realiza do amor de si ao amor próprio, refletiremos em seguida sobre essa "páscoa".
O próprio Rousseau em uma nota ("O") do segundo discurso chama atenção, alertando que "não se deve confundir o amor próprio com o amor de si mesmo; são duas paixões bastante diferentes tanto pela sua natureza quanto pelos seus efeitos" (ROUSSEAU, 1988,p.110). O amor de si tem, no pensamento de Rousseau uma conotação positiva, já o amor próprio tem uma conotação negativa. Aquele seria naturalmente bom, e visa a auto-preservação, nesse sentido, o amor de si está presente no homem e nos animais em geral, porém, no homem, o amor de si dirigido pela razão e modificado pela piedade resulta em uma moral virtuosa ou, por outro lado pode degenerar-se em amor próprio. O caminho do enobrecimento do amor de si pode ser compreendido mediante "A consciência da necessidade de prover ao futuro, ou de controlar os impulsos presentes se eles forem nocivos, requer uma deliberada regulação da conduta. Quando isso ocorre intervém uma outra capacidade ? exclusiva dos seres humanos na opinião de Rousseau: É o livre ? arbítrio..." (DENT, 1996, p.37), entendido como a consciência capaz de ponderar, julgar, controlar, regular a conduta, em virtude de uma possível nocividade. Pode ocorrer de o amor de si degradar-se em amor próprio através da socialização que faz brotar no homem novas "luzes", o aperfeiçoamento da intelectualidade. Esse processo é denominado por Salinas Fortes de circuito ou ciclo histórico (Cf. FORTES, 1997, p. 63). Notemos que há íntima ligação entre sociabilidade e história, uma implica na outra como veremos ao refletirmos sobre o processo dicotômico do amor de si ao amor próprio.
Enquanto vive isolado, o homem é desprovido de desejo, de estima pública, esse desejo (paixão) nasce do contato com os outros, é justamente a corrupção que nele (homem) efetiva-se proporcionando o rompimento entre o seu interior e o exterior, entre o ser e o parecer. È nesse ponto que desenvolve-se negativamente o progresso do amor de si em amor próprio. Em seu estado natural o homem não converte seu coração ao amor próprio, já que, em razão do seu viver isolado e solitário, não é possível a realização das comparações com o outro. Salinas Fortes nos esclarece que "No caso do amor-próprio eu me comparo com o outro e, portanto, transporto-me até ele, mas para dele me distinguir e suplantá-lo" (FORTES, 1997, p. 65). Assim, o amor próprio apresenta característica de fazer o homem ir ao outro, comparando-se com outro, direcionando seu olhar para fora de si, objetivando superar o outro e fazer dele alguém inferior. Porém, paradoxalmente, aquele que se julga superior fica dependente da admiração do olhar do outro, de tal forma que seu comportamento exterior é ditado pela opinião alheia, isto é, as suas ações são ditadas pelas opiniões dos outros, ainda que interiormente ele pretende-se o contrário. Nesse sentido podemos afirmar que quando o homem passa a ser dirigido pelo amor-próprio, ele vive somente para orbitar em torno do outro, da opinião pública, tornando-se escravo dessa opinião. Fica claro que esse processo só é possível na sociedade, onde efetiva-se o reino, ou melhor, o estabelecimento do reino do tempo histórico, é aí que "temos a condição última de todo o processo de saída de si e a abertura a ambivalência do tempo histórico" (FORTES, 1997,p.p. 70,71). No processo histórico, portanto, é construído a noção do público e do privado, tais esferas, nesse sentido, estabelecem a desigualdade.
No processo citado, podemos dizer que o ser humano é desfigurado em suas relações mediante o desejo de dominação presente nele. Segundo N.J.H. Dent: "O amor próprio acaba por desalojar o amor de si mesmo, substituindo o bem inato e sereno que caracteriza este último pelo bem enganoso e ilusório que consiste em obter odioso domínio pessoal sobre outrem" (DENT, 1996, p. 40).
Resta-nos ainda duas considerações: primeiramente, cabe lembrar que esse desalojamento do amor de si, dá-se no processo histórico, no processo de sociabilidade e é um desalojamento do homem, que progressivamente deixa de ser humano. Em segundo lugar, a história enquanto ciência seria e serviria como escuderia, protetora e, ao mesmo tempo legitimadora do processo de sociabilidade. Portanto, o progresso do processo histórico aludido, por exemplo, por Augusto Comte, não trouxe à humanidade o Édem tão sonhado, e o motivo seria que no desenrolar do processo o homem teria se artificializado, artificializando suas relações; nesse aspecto progredir seria artificializar o mundo.




















Conclusão

Ao buscarmos desenvolver o presente estudo notamos que a ligação entre civilização e ciências, segundo Rousseau, não teria proporcionado ao homem a possibilidade de ele encontrar-se e tornar-se melhor.
A socialização do homem rima com sua degradação, a história seria um eficaz instrumento desse processo. Pela ciência e pela história o homem ingressa na civilização, afasta-se da natureza, degenera-se. A civilização é o reino da desigualdade, da vaidade e da exploração.
Para Rousseau a civilização é vista como um grande teatro no qual todos atuamos e nos tornamos vítimas e dependentes de aplausos. Se é assim, podemos dizer que a natureza é o ser a sociedade é o parecer. Ora, aparentar implica em mentira e em maldade, essas duas idéias nos fazem lembrar uma outra: o inferno. Nesse sentido o inferno não seria somente um futuro ameaçador, mas um passado e também um presente. É fácil perceber como essa idéia se faz presente na filosofia de Rousseau quando ele lança o olhar sobre a sociedade e vê nela o terreno do amor-próprio que "não passa de um sentimento relativo, fictício nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si mesmo do que qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que mutuamente se causam que constitui a verdadeira fonte de honra"(ROUSSEAU, 1988, p.111), afirma Rousseau no "segundo discurso". Assim a civilização faz o homem egoísta, mesquinho e egocêntrico. Isso não lembra o inferno?
O teólogo Carlos Bazarra, ainda que em um outro sentido, concordaria com Rousseau talvez este com aquele. Para Bazarra o inferno se presentifica na civilização e na história, isso poderia ser notado pelos muitos frutos do mal que pode ser percebido no processo histórico, como mortes, desigualdades, explorações. Vejamos o que Bazarra cita como exemplos desse inferno temporal: "a época dos mártires nos primeiros séculos do cristianismo; as cruzadas, em que os perseguidores se transformam em perseguidores;as conquistas de todos os tempos, com vencedores aniquilando vencidos; a queima de Hebreus, os povos indígenas desposados de sua cultura e religião; o holocausto judaico na última guerra mundial, os campos de concentração com Auschwitz e Dacau. Hoje compete a nós viver na era pós ? Chernobyl. Hoje podemos fazer do mundo um inferno" (BAZARRA, 2001,p. 6). Tudo isso seriam frutos da civilização. Mas se é assim qual o motivo de tanto amor pela civilização? É que ela torna o homem dependente através de mecanismos legitimadores : história, arte e ciências .
Mas Rousseau não é um pessimista. Sua intenção é alertar-nos para o fato de que a civilização é o que nos deixamos que seja. Esquecemos que somos nós os demiurgos, ou como nos diz do romano pontífice, ao afirma que ao "nos debruçarmos sobre o abismo do mal, cujo artífice e simultaneamente vítima resulta ser o homem, desde o princípio de sua história" (JOÃO PAULO II, 2005, p. 16).
Portanto, parece-nos que o grande problema reside no fato do homem centrar-se em si, em sua criação que é a civilização e depois fascinar-se por ela, deixar-se dominar por ela e esquecer que ela é uma criação humana. Ao mesmo tempo, mediante o processo histórico, o homem esquece da natureza e passa a considerar natural o civilizado.















REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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- BAZARRA, Carlos. A esperança não engana: Reflexões sobre o inferno. São Paulo: Paulinas, 2001.
- PAULO, João II. Memória e Identidade. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.