CONSEQUÊNCIA DA SÚMULA VINCULANTE PARA O DIREITO PRODUZIDO SOB O LIVRE CONVENCIMENTO DO JUIZ[1] 

Jilgerson Aguiar Barros[2]

Viviane Vitória Santos Zeitouni[3] 

Sumário: Introdução; 2 O juiz no papel de criação do direito; 3 Liberdade judicial na criação do direito; 4 Súmula Vinculante versus princípio do livre convencimento do juiz; Considerações Finais.

RESUMO 

Estudo sobre a implicação da súmula vinculante para o direito criado a partir da atividade interpretativa criadora de direito. Trata da importância do principio da livre apreciação pelo magistrado na busca por justiça social. Apresenta o dispositivo constitucional que disciplina a sumula vinculante. Finalmente analisa a consequência da súmula vinculante para o direito produzido conforme o livre convencimento do juiz.

 

 

PALAVRAS-CHAVE

Juiz. Criação de direito. Livre convencimento. Súmula vinculante.

O intérprete é um criador, como o artista. Da pedra ou do bronze do edito, ele extrai a construção e doutrina, que são novas elaborações da lei, algumas de uma luz tão forte, outras de uma delicadeza tão penetrante, que empolgam a mente como um formoso produto de alta estética.[4]

Clóvis Beviláqua

 

INTRODUÇÃO

A função do juiz deve se desempenhada com vistas ao cumprimento do seu papel político na sociedade, qual seja, o de contribuir para a promoção da justiça social, decidindo de maneira sábia e prudente. Neste propósito, o magistrado, ante a lei a ser aplicada a um caso concreto, não deve a ela se curvar, limitando-se a declará-la, mas ao contrário, interpretá-la á luz do ambiente atual.

Neste estudo, analisaremos a atividade interpretativa do juiz antes e após o surgimento no ordenamento jurídico brasileiro da súmula vinculante.

Em nossa pesquisa, exclusivamente teórica, recorremos aos ensinamentos de autores como Cappelleti, Ferraz Júnior, Kelsen, Albuquerquee Gomes, Scarbossa e Jensen, Rigaux, Aguiar Júnior, Batista, Cintra, Grinover e Dinamarco, e também da Constituição Federal.

2 O JUIZ NO PAPEL DE CRIAÇÃO DO DIREITO

Antes de discorrermos sobre esta função desempenhada pelo magistrado, cumpre-nos tecer algumas considerações acerca do posicionamento superado segundo o qual o juiz deve adotar uma postura passiva diante da lei.

A tendência de reduzir a função jurisdicional à de “mera e passiva” inanimada boca da lei” (CAPPELLETTI, 1992) remonta a Justiniano que , conforme citado autor:

Procurou proibir todo comentário jurídico ao seu Corpus Juris, e assim impedir que no futuro os juristas “com essa verbosidade” causassem confusão à acabada clareza de sua legislação. Codex, I, 17,12. Tentativa similar, com proibição aos juízes de interpretar as leis e a instituição do référé législatif, que de modo utópico reservava ao legislador tal interpretação, foi realizada pelos legisladores da Revolução francesa, sob a influência, entre outras, da filosofia de Rousseau e Montesquieu. (CAPPELLETTI, 1992. p. 32)

A concepção que enxerga a decisão judiciária como mero ato descritivo é fundada num formalismo, que afastando da análise das normas jurídicas quaisquer considerações valorativas, “tendia a acentuar o elemento da lógica pura e mecânica no processo jurisdicional, ignorando ou encobrindo, ao contrário, o elemento voluntarístico, discricional, da escolha” (CAPPELLETTI, 1992).

O problema desse reducionismo consiste em que a aplicação do direito não se reduz a um puro mecanismo, nem sequer a uma série de operações exclusivamente lógicas” (RIGAUX, 2000, p. 70); “a subsunção da norma ao fato não acontece de forma perfeita, pois nem sempre descreve uma correta sobreposição”.(Fernando Natal Batista, 2001, p. 186).

Nesse sentido, Aguiar Júnior:

Se aceita a esse de que “el juez de Derecho civil [em oposição ao juiz da Common Law] tiene las manos atadas: debe actuar como um ‘simple opeador de uma maquinaria diseñada  construída por El legislador’ (MERRMAN, 1996: 37-38), es decir , de forma altamente mecanica y a-creativa, tanto respcto de cuestiones pocesales como sustantivas”(TOHARIA, Jose-Juan. El juez español. Madrid: Tecnos, 1975, p. 24), não existiria o problema, porquanto a sentença seria simples e automática aplicação particularizada da lei ao caso concreto. (AGUIAR, 2006, p. 225)

Para Diniz (1999), o magistrado, ao contrário, diante de uma norma geral e abstrata gestada em um contexto pretérito produz norma particular apta a produzir efeitos sobre uma situação específica.

Mencionada autora sintetiza o processo de criação do direito pelo juiz com as seguintes palavras:

[...] a função jurisdicional, quer seja ela de “subsunção do fato à norma, quer seja de “integração” de lacuna normativa, ontológica ou axiológica, não é passiva, mas ativa, contudo uma dimensão, nitidamente criadora, uma vez que os juízes dispendem, se for necessário, os tesouros de engenhosidade, para elaborar uma justificação aceitável de uma situação existente, não aplicando os textos legais ao pé da letã, atendo-se, intuitivamente, sempre às suas finalidades, com sensibilidade e prudência, condicionando e inspirando suas decisões às balizas contidas no sistema jurídico sem ultrapassar, por um instante, os limites de sua jurisdição. Se não houvesse tal elasticidade, o direito não se realizaria, seria amputado no seu próprio dinamismo ou movimento, ou seja, não estaria em condições de sofrer o impacto da realidade, que nunca é plena e acabada, por estar sofrendo sempre injunções de modificações sociais e valorativas, estando, portanto, sempre se perfazendo. (DINIZ, 1999, p. 295.)

3 LIBERDADE JUDICIAL NA CRIAÇÃO DO DIREITO

O juiz é o intérprete autêntico da lei. Exercita essa sua competência criando normas vinculantes. (SAMPAIO, 2003). Esta atividade jurídica deve ser desenvolvida com vistas ao cumprimento do seu papel político, qual seja a pacificação social do conflito, cujo alcance às vezes requer a inaplicação da letra da lei (BATISTA, 2001), haja vista que “mais que o aspecto literal, é o espírito da lei que o jurista, seja ele juiz, promotor ou advogado, deve buscar” (BATISTA, 2001, p. 186).

Pertinentes são as palavras do jurisconsulto italiano Francisco Ferrara (FERRARA apud BATISTA, 2001) citado por Batista:

O texto da lei não é mais do que um complexo de palavras escritas destinadas a uma manifestação de vontade, a casca exterior que encerra um pensamento, o corpo de um conteúdo espiritual. A Lei, porém não se identifica com a letra da lei. A letra e apenas um meio de comunicação: as palavras são símbolos e portadoras do pensamento, mas podem ser defeituosas. Só nos sistemas jurídicos primitivos a letra era decisiva, tendo valor místico e sacramental. Ao invés, com o desenvolvimento da civilização, esta concepção é abandonada: procura-se a intenção legislativa. Relevante é o elemento espiritual, a voluntas legis, embora deduzida através das palavras do legislador. (BATISTA, 2001, p. 186)

Para Kelsen, o juiz, na promoção do (re) encontro da norma com o fato, ou seja, na função interpretativa criadora de direito, deve guiar-se de acordo com a livre apreciação (KELSEN, 1998). Assim deve ser para que sua missão sócio-política de garantir a realização de justiça social seja alcançada. Importa, no entanto, ressalvar que a discricionariedade, ínsita ao mister interpretativo, não deve ser confundida com arbitrariedade, eis que este só deverá ser realizado sob o manto do ordenamento jurídico. (CAPELLETTI, 1992)

Sobre a liberdade de apreciação, defendida por Kelsen, conhecida como princípio da persuasão racional do juiz ou livre convencimento do juiz, Cintra, Grinover e Dinarmarco:

O Brasil também adota o princípio da persuasão racional: o juiz não é desvinculado da prova e dos elementos existentes nos autos (quod non est in actis non est in mundo), mas a sua apreciação não depende de critérios legais determinados a priori. O juiz só decide com base nos elementos existentes no processo, mas os avalia segundo critérios críticos e racionais (CPC, arts. 131 e 436; CPP. arts 157 a 182), (CINTRA; GRNOVER; DINAMARCO, 1997. p. 68)

4 SÚMULA VINCULANTE VERSUS PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO DO JUIZ

A Emenda Constitucional nº 45/04 introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a súmula vinculante cujo objetivo foi o de evitar decisões judiciais heterogênicas. Referido instituto encontra-se disciplinado no art. 103 da CF/88, in verbis:

Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá de ofício o por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, aos reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração publica direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento de forma estabelecida em lei.

§ 3º. Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.

A partir de então o Supremo Tribunal Federal passou a ter a faculdade de conferir força vinculante à sua jurisprudência, bastando para tanto a observância aos requisitos exigidos pelo dispositivo em apreço.

Ainda conforme a norma constitucional em tela, o meio assecuratório de eficácia da súmula será o manejo, por parte do interessado, da denominada reclamação.

A súmula vinculante, considerada por Albuquerque e Gomes (2007) uma meta-decisão (decisão sobre a decisão), na medida em que prepondera sobre as decisões judiciais tomadas a partir de cada caso concreto, atenua o princípio do livre convencimento do juiz, posto que o direito por este criado (o juiz) poderá ser preterido por aquele produzido aprioristicamente. Em sintonia com a liberdade interpretativa, Maximiliano (2001):

A jurisprudência auxilia o trabalho do intérprete, mas não o substitui, nem dispensa. Tem, porém, valor relativo. Deve ser observada quando acorde com a doutrina. Procure-se reduzir os arestos aos princípios jurídicos ao invés de subordinar estes àqueles. (MAXIMILIANO, 2001. p. 01) 

CONSIDERAÇÕES FINAIS        

Observou-se a concepção, inconcebível nos tempos atuais, de decisão judicial como atividade mecânica, que não prioriza os valores sociais mutantes.

O papel do juiz, na atividade interpretativa, não pode resumir-se ao de declarar a norma geral e abstrata, mas sim adequá-la ao contexto presente. Assim deve agir o magistrado na busca pelo anseio da sociedade em que atua: justiça social.

Para que produza o direito apto a resolver os conflitos sociais, deve o juiz ter liberdade para apreciar as questões que, à sua reflexão, são submetidas.

Na contramão da criação desse direito aparece a súmula vinculante, posto que pretere o direito produzido a partir de situações reais, concretas, por um direito apriorístico.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Ruy Rosado. Órgão nacional de doutrina, jurisprudência, legislação e crítica judiciária. Revista Jurídica. n. 350. Ano 54. dez. 2006.

ALBUQUERQUE; GOMES. Revista Normas. Edição comemorativa dos 30 anos do mestrado em Direito/ UFC. 2007/1.

BATISTA, Fernando Natal. O Magistrado e a sua função na sociedade contemporânea.  Revista da Escola da Magistratura do Distrito Federal. n 06. Ano 2001.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 31. ed. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2009.

CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1992.

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRNOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Ranel. Teoria Geral do Processo. 14 Ed. São Paulo: Malheiros, 1997.

DINIZ, Maria Helena. As lacunas do direito. São Paulo: Saraiva, 1999.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado, 6 Ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

RIGAUX, François. A lei dos juízes. Tradução: Edmir Missio. 1. ed. Martins Fontes, 2000.

SAMPAIO, Tércio Ferra Júnior. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2003.



[1] Trabalho apresentado a Prof.ª Luiza Oliveira, para obtenção da segunda nota da disciplina de Introdução ao estudo do Direito 2.

[2] Acadêmico do 2º período noturno do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB, [email protected].

[3] Acadêmica do 2º período noturno do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco ­– UNDB, [email protected]

[4] BATISTA, Fernando Natal. O Magistrado e a sua função na sociedade contemporânea.  Revista da Escola da Magistratura do Distrito Federal. n 06. Ano 2001.