publicado nos Anais do V SINCAM - UFGO.

O presente artigo aborda o conceito de conhecimento musical a partir de propostas distintas daquelas envolvidas com a abordagem tradicional da psicologia e filosofia apoiadas na metáfora do processamento de informações. Tais abordagens têm suas raízes nas escolas de fisiologia e psicofisica alemãs do século XIX e têm vínculos profundos com os pressupostos cartesianos, dualistas e mecanicistas que apóiam a ciência nascida com a Idade Moderna e que ora se encontra às portas de grandes transformações paradigmáticas. É a partir destas mudanças de paradigmas explicativos que se estrutura o texto que segue. A primeira parte trata de fazer uma breve revisão da história do conceito de conhecimento musical, bem como apresentar as abordagens contemporâneas para tal estudo. Isto forma um panorama contextual para a descrição de conhecimento musical como ação, como experiência musical. A primeira etapa pode então ser concluida relatando-se dois aspectos, sensório-motor e conceitual, envolvidos na descrição de conhecimento musical segundo a abordagem enaccionista. Tal abordagem dá suporte para a segunda seção descrever música como um tipo próprio de ação. Nesta seção a audição é inicialmente descrita como um tipo de ação e posteriormente toda e qualquer forma de produção sonora também é considerada como derivada de ações específicas. A terceira parte apresenta a noção de aprendizagem musical descrita como um tipo de aprendizagem perceptiva (perceptual learning). Este tipo de aprendizagem tem características próprias que relacionam-se diretamente com o tipo de conhecimento e os tipos de significados que se experienciam em música. Com isso o texto espera contribuir para o desenvolvimento da noção de conhecimento musical que fundamenta estudos em diferentes áreas, desde a epistemologia, passando pela ciência cognitiva, até a educação musical.

1. Breve histórico do conceito de Conhecimento musical
Na filosofia o estudo do conhecimento tem uma tradição que é importantíssima para iniciar a reflexão acerca do que pode ser considerado como conhecimento musical. No entanto não é o propósito deste texto a reconstrução histórica das teorias do conhecimento. Interessa aqui apenas lembrar que não há uma tradição no estudo de um tipo de conhecimento musical da mesma maneira como ocorre com as teorias do conhecimento em geral. Também não se trata de postular uma taxonomia dos conhecimentos, mas apenas de buscar a caracterização daquilo que se denomina por conhecimento musical. Ouve-se constantemente a expressão "eu conheço essa música", tanto entre estudantes de música como entre leigos em geral. Mas o que significa conhecer uma música? O que se pode concluir de um estudante de música que afirma conhecer uma música é distinto do que se espera de um leigo afirmando o mesmo. Deste último não se exigirá que toque, ou solfeje, a música referida, mas que a reconheça quando ouvida, ou que consiga ao menos balbuciar sua melodia, rítmo ou outro excerto qualquer que a possa caracterizar. Ao estudante, a expressão "eu conheço a música" custa um pouco mais. Não há como um músico proceder tal afirmação sem que possa de alguma forma executar a obra, realizá-la. Nesse sentido, saber a música é estritamente, e de alguma maneira, fazê-la acontecer. Daí que conhecer música acaba sempre se referindo à realização de algum tipo de experiência musical, nesse sentido uma experiência não será aqui considerada como algo que aconteça à alguém, mas ao contrário, consideraremos experiência como a ação sensório-motora de alguém, ou de alguns. A história das diferentes culturas mostra que são bastante diversas as idéias acerca da definição do que seja música. De qualquer maneira, parece que a definição dessa atividade sonora recorrente em vários tipos de organizações humanas encontra sempre uma função determinada pela própria coletividade que a produz e a escuta. Em outras palavras, a música é uma ação de homens que vivem em sociedades e portanto, seus significados e funções estão sempre ligados à tais sociedades. Nesse sentido é que se pode afirmar que a noção de conhecimento musical está diretamente relacionada às noções de música e de conhecimento, desenvolvidas e vivenciadas por tais grupos. A história das noções de conhecimento e de música para a cultura ocidental contemporânea tem o mesmo berço, a Grécia Antiga. É de lá que vêm as primeiras referências àquilo que se entende por música. Não que a experiência musical contemporânea possa ser assemelhada à dos gregos da antiguidade. Mas foi entre esse povo que apareceu essa noção de uma arte dos sons, antes ainda, a própria noção de atividade artística sobre a qual a sociedade ocidental vem operando desde que pôde ser considerada como tal. De acordo com Jaeger (2003) para os gregos da antiguidade, a música está na raiz da educação e a poesia (intimamente relacionada à música) tem a função de guia da formação do espírito humano. Aí encontra-se a primeira concepção do que posteriormente será denominado por conhecimento musical. O autor apresenta diversas passagens em que destaca o papel da música para a adequada formação do indivíduo e da sociedade. Para os espartanos da época anterior à Platão, a educação musical era encarada como (...) coisa essencial para a formação do ethos humano na sua plenitude. (Jaeger, 2003, p. 128 e 129). É o próprio Platão que reconhece a Música e a Ginástica como a "antiga formação". Tal fato tem grande relevância aqui para a constatação de que existia a noção de conhecimento musical como algo que pode ser desenvolvido no ser humano. É interessante observar, conforme refere-se Jaeger (2003), que para a Grécia Arcáica (c. do s. VII a.C.) a música reunia duas características fundamentais do conhecimento, por um lado o aspecto técnico, ou um conjunto de habilidades sensório-motoras próprias para operar com sons, e por outro lado, a reflexão sobre essa técnica, que propicia a formulação de conceitos. Há duas passagens em que o autor faz observações pontuais sobre arte e sobre música (o papel dos Corais principalmente nas tragédias de Ésquilo), as quais cabem bem como ilustração do que se afirmou. Como primeira, tratando da Grécia antes do século IV a. C., Jaeger (2003) afirma que apenas a arte possui a validade universal e a plenitude imediata e viva, que são as condições mais importantes da ação educativa (...). (ibidem p. 63). E como segunda característica Jaeger apresenta o Coro da Tragédia como a alta escola da Grécia Antiga. (...). O alcance de sua ação é dado pelo autor como bem mais profundo do que a do ensino intelectual. (ibidem p. 294). Se a Grécia Antiga é considerada a raiz de tais conceitos para a sociedade ocidental contemporânea, ela não é uma fonte única nem direta. Através do fim da Idade Antiga e durante toda a Idade Média a noção de conhecimento musical foi objeto de diferentes abordagens de investigação e utilização, talvez mais utilização do que investigação. A Igreja cristã medieval, como receptora da herança grega acerca do conhecimento musical, utilizou tal conceito como instrumento de poder na medida em que associou o aprendizado de música com o aprendizado de latim. Segundo Candé (1994, p. 191 e 192) a música não é mais a alma da civilização, como na Antiguidade; deixou até de ser um entretenimento. Tornou-se monopólio de Roma e dos mosteiros, que possuem sozinhos sua ciência (...). O autor informa sobre o estado da noção de conhecimento musical, primeiro trata do papel da música na sociedade ocidental nascente, muito menos central na formação do ethos humano do que na Antiguidade, e depois localiza, nos mosteiros, o que pode mesmo ser considerado como centro de desenvolvimento do conhecimento musical na Idade Média, sobretudo antes do aparecimento das universidades. Ainda com a Ars Nova, sobretudo com Vitry e Machaut, os aspectos técnicos composicionais e de execução instrumental já vinham ganhando destaque quando se relata o conhecimento musical desenvolvido no período. No Renascimento estes aspectos ganham status central e inicia-se a formação de um novo paradigma para a música ocidental. É com o advento da Modernidade, sobretudo calcada no racionalismo cartesiano e na nova ciência física newtoniana, que pode-se descrever um novo conceito de conhecimento musical com uma marca indelével, a contradição. É próprio da Idade Moderna uma abordagem dualista considerando aspectos de duas naturezas distintas, a física e a metafísica, para várias áreas de estudo e investigação. Em música observa-se a concentração da descrição de conhecimento em dois pólos distintos tidos por vezes como complementares e por outras como excludentes. Há uma produção de conhecimento intelectual sobre musica, sobre como compor, como tocar, como ouvir, como descrever, analisar e ensinar música. E para que haja todos esses tipos de atividades conceituais sobre música é necessário que haja a própria música, a experiência musical, resultado da ação de algum corpo sobre outros corpos. Esta ação pode ser melhor descrita como conhecimento sensório-motor, como um conjunto de habilidades corporais coordenadas e consensuais entre um grupo. O que as descrições da Idade Moderna sobre conhecimento parecem fazer é dissociar os dois aspectos do conhecimento musical entendendo-os como provenientes de naturezas distintas. É corrente na literatura moderna da área de musicologia a diferenciação entre um conhecimento mental e um conhecimento corporal como derivada de uma abordagem dualista e racionalista de conhecimento e especificamente, de conhecimento musical. Como exemplo de tal abordagem podemos ler em Kaplan a seguinte afirmativa: Cabe salientar ainda que a Qualidade – no sentido de clareza e precisão – da imagem mental da obra condiciona não só, e é óbvio, - o grau de excelência artística da versão, como também a eficácia e facilidade motora (…). (Kaplan 1987, p. 31 e 32). Para o referido autor, o conhecimento musical se dá na mente e a imagem mental condiciona a a ação do corpo. Por mais que o autor relate detalhadamente os processos do sistema nervoso central e periférico envolvidos na execução musical, tal relato fica distante da explicação sobre a experiência musical e do conhecimento sobre musical Uma vez que essa abordagem descreve mente como substância distinta do corpo, toda ação desse corpo é descrita como conseqüência da ação da mente. Tal posição encontra grande dificuldade epistemológica e mesmo ontológica em diversos aspectos. Como se pode verificar a realidade de uma verdade que se situa na mente, se essa mente não é descrita como substância física? A dificuldade com essa resposta traz conseqüências desastrosas para o desenvolvimento de teorias consistentes sobre cognição musical.
2. Música como ação A abordagem enaccionista, conforme apresenta-se aqui, concebe a música como algo que se faz, algo que escutamos, algo o qual experienciamos, vivenciamos. A música não é algo além do fazer humano, mas o enaccionismo aqui esboçado entende que sempre se tem de considerar tal conceito sobre a história desse fazer em diferentes situações de tempo e espaço. Descrever música como ação envolve uma série de consequências que o presente texto não tem condições de esgotar. Mas apresentar os princípios de tal descrição é possível a partir de bases dadas por autores que no decorrer da última década têm contribuido com a formalização de novas descrições explicativas sobre percepção. Entre tais autores encontrase Noë (2004) e (2006), que apresenta um importante referencial descritivo sobre percepção denominado por atuacionismo. Sua tese central sobre percepção, em consonância e relação direta com propostas de autores como Maturana, Varela, Clarke, Gibson, entre outros, é de que percepção não é algo que acontece com alguém, mas sim algo que alguém faz de certa forma: perceive is a way of acting. (Noë, 2000, p. 1). O texto ressalta a descrição de Noë em função de uma importante conclusão aludida na obra citada, a de que a música é uma área onde duas formas de conhecimento (sensório-motor e conceitual) parecem se encontrar. O autor desenvolve o conceito de conhecimento sensório-motor (sensoriomotor knowledge) como distinto de um mero estímulo sensorial (ibidem, p. 91), mas como algo a ser empregado em uma situação específica, algo que se aprenda que sirva para realizar adaptações de acordo com o desenvolvimento. Tal conhecimento sensório-motor não está fixado em padrões neuronais no cérebro apenas, mas distribuídos pelo corpo todo como padrões sensório-motores contingenciais, como padrões de habilidades sensório-motoras possíveis em determinadas situações específicas. Aqui se observa a proximidade com o conceito gibsoniano de affordance (Gibson, 1966). Assim, a partir de uma grande mudança na descrição de atividades perceptivas fica possível uma nova abordagem, distinta daquela ligada ao paradigma do processamento de informações, para a descrição de música. Clarke (2005) indica relações próximas entre som e movimento como um aspecto fundamental da significação musical. Isso oferece condições de se encaminhar a descrição de música como um tipo de ação, de padrões de comportamento, de conhecimento sensório-mortor, que a despeito de ser sensório motor é um tipo de conhecimento (parafraseando Noë, 2000). É importante ainda descrever dois aspectos complementares acerca desse tipo de conhecimento musical descrito como padrão de atividade. Antes de mais nada cabe lembrar que o organismo vivo está em contínua atividade em diferentes níveis de análise possíveis. Entre tais níveis de análise estão as duas características do conhecimento musical conforme aqui descreve-se, os aspectos sensório-motores e os aspectos conceituais. O que basta para o momento é o entendimento de que os conceitos são fundamentados, baseados, e emergentes das estruturas físicas sensório-motoras. Se música é um modo de atuação, então ouvir também o é, bem como o é qualquer tipo de produção sonora. Poder-se-ia afirmar que até aqui não há diferenças com a abordagem do paradigma do processamento de informações em se afirmar que audição é um tipo de ação. Em outras palavras, também o paradigma do processamento de informação propõe ouvir como algo que se faz, porque é o cérebro que produzirá uma representação mental auditiva adequada que será resposta ao estímulo confuso de entrada. Mas essa semelhança termina quando se lembra de algumas diferenças apresentadas por um novo paradigma nos últimos anos na ciência cognitiva (ciência cognitiva dinâmica, ou atuaccionista) podem ser lembradas: 1) O argumento gibsoniano de que os sistemas perceptivos são distintos do que se descreve como órgão sensorial. 2) O caminho de destruição ou desconstrução da noção de sujeito cartesiano, como um eu central que opera intencionalmente sobre os conteúdos perceptivos. 3) A proposta de uma agência corporificada que opera em uma perspectiva de primeira-pessoa (Varela et al, 1991). Em outras palavras equivale dizer que tal agência conhece agindo e age conhecendo (parafraseando Maturana e Varela, 2007). Se é possível descrever a audição como um tipo próprio de ação, de atividade no meio, há que se levar em consideração que tal atividade pode ser realizada por meio de diferentes maneiras. Cabe aqui lembrar o caso dos treinamentos auditivos em música que objetivam o desenvolvimento da habilidade de reconhecimento de padrões sonoros dos mais variados tipos, desde os técnicos até os estéticos. Considera-se como uma habilidade, que o estudante de música (tonal) reconheça sonoramente o padrão: dó-re-mi-fá, uma vez que tal padrão tem função relevante no estudo da harmonia e contraponto. Escrever o padrão quando se escuta é uma segunda ação (de registro escrito) com relação à identificação realizada. Assim, ouvir e reconhecer são ações também, tanto quanto escrever, correr ou pensar. Em 1966 Gibson apresenta uma modificação na forma de descrever a audição, propõe que se apresente o ouvir como ação de um sistema perceptivo e não de um órgão que recebe passivamente estímulos do meio. Para este autor a audição precisa ser descrita como um modo de atenção à informação, arranjada de modo complexo e disponível no meioambiente. Antes de mais nada é necessário atentar à diferença entre os níveis de análise propostos por Gibson, físico e ecológico. No nível físico há energia, enquanto no ecológico encontra-se informação. Assim , de acordo com a abordagem ecológica gibsoniana é possível descreve a audição como busca por informação sonora (arranjada de forma complexa, como o padrão do-re-mi-fá, ou qualquer outro) no meio-ambiente. E isso é bem distinto de afirmar que a audição é um ato do cérebro que organiza adequadamente os estímulos confusos que chegam ao ouvido, como fazem teorias apoiadas no paradigma do processamento de informações, tal como fazem McAdams e Bigand (1993) e McAdams (1993), entre outros. O segundo argumento à que se faz referência acerca da diferença entre os paradigmas do processamento de informação e da ciência cognitiva dinâmica é a modificação na descrição do sujeito. Ligado à tal argumento está a necessidade de uma nova descrição de consciência, se não se utilizará o termo sujeito. O paradigma tradicional está intimamente vinculado à noção de sujeito cartesiano, enquanto as abordagens ecológicas, actuacionistas e fenomenológicas se apoiam em uma nova concepção de consciência de si, não como um sujeito, ou um centro de controle, mas muito mais como uma agência. Varela, Thompson e Rosch (1991) apresentam a noção de uma mente sem self. Sem um centro de controle uníco. Mas como raiz das propostas enaccionistas de Varela et al e de Noë, 2005) Merleau-Ponty trata da consciência como modo de ser do corpo no mundo. Em Merleau-Ponty (1994, p. 210), enquanto o autor argumenta acerca do que chama de síntese do corpo próprio, encontramos a definição de corpo como nó de significações vivas. E posteriormente, após um crítica ao Cogito cartesiano, o autor trata a consciência como manifestação, (ibidiem, p. 504) (...) Em mim a aparência é realidade, o ser da consciência é manifestar-se. Trata-se mesmo de uma abordagem fenomenológica radical quando o autor associa diretamente aparência (phaneron) com realidade e daí apresenta uma decorrência que define o ser como (...) ser no mundo, e não somente estar no mundo, (...) (ibidem, p. 611). A partir de novos encaminhamentos para a descrição de percepção e cognição, é possível que se encaminhe uma nova forma de descrever música, não mais como fato ou entidade metafísica resultado do processamento de informações por sujeitos que operam em um mundo de objetos que é por natureza, independente de sua existência. Podemos agora entender música como padrões de ações específicos possíveis por um corpo, ou um conjunto deles, em um mundo específico. Tais ações envolvem tanto a produção sonora quanto a audição e a reflexão sobre tal produção. Para o paradigma da ciência cognitiva dinâmica, apoiados pelas perspectivas fenomenológica de Merleau-Ponty, ecológica de Gibson e Gibson e Pick, e ainda da abordagem atuacionista de Varela et al ou de Noë, a definição de música encontra-se muito distante daquela oferecida pelo processamento de informações que tende a descrevê-la como produto de uma mente que atua processando dados recebidos passivamente do exterior. Assim, se a música é bem descrita pela ação, também a noção de conhecimento musical tem de ser descrita como ação. Segundo Noë (2004) pode-se falar de um tipo de conhecimento sensório-motor, de um entendimento corporal, que apesar de ser corporal, é entendimento. Esse tipo de conhecimento não necessita descrever o mundo como representação mental interna porque o apresenta como possibilidade de ação para o corpo. E esse corpo não aplica seu conhecimento sensório-motor ao mundo, como afirma o paradigma do processamento de informações. Rather we bring it to bear in experience (...) (Noë, 2004, p. 194). O conhecimento aqui não é entendido como metafísica, como imagem mental, mas como padrão de ação possível e específico, como enraizado em um entendimento corporal, sensório-motor understanding (ibidem, p. 208). Aprendizagem perceptiva Esta forma de descrever o conhecimento musical apresentado pelo enaccionismo tem implicações bastante interessantes do ponto de vista do estudo da aprendizagem. Antes de mais nada porque relaciona desenvolvimento perceptivo diretamente com desenvolvimento cognitivo. Não se trata de entender como sinônimos cognição e percepção, mas antes, é o caso de descrever o conhecimento musical como um tipo de conhecimento perceptivo. A presente seção caracteriza aquilo que alguém diz quando afirma conhecer certa música como um conjunto de ações específicas e não como a posse de uma representação mental e interna adequada ao estímulo externo. A abordagem enaccionista para o estudo da percepção e cognição mantém algumas diferenças quanto ao entendimento de determinados conceitos com a abordagem ecológica, porém, entre outros aspectos comuns, ambas trabalham a partir da noção de que percepção precisa ser descrita como um ciclo percepção-ação entre o organismo e seu meio específico. Dessa maneira acredita-se que a abordagem de Gibson e Pick pode ser relevante para considerar alguns tópicos com relação à como se aprende música, ou como se desenvolve conhecimento musical. As duas seções anteriores trataram de re-colocar a noção de conhecimento musical para que se possa apresentar o desenvolvimento de tal conhecimento, ou a aprendizagem musical, de maneira diferente da tradição cartesiana e do paradigma do processamento de informação. Se há um tipo de conhecimento sensório-motor, perceptivo, que sustenta a possibilidade da ação de reflexão e pensamento, então a música envolve um conhecimento deste tipo. Nesse sentido pode-se descrever então aprendizagem musical como aprendizagem perceptiva. Gibson e Pick (2000) apresentam a noção de aprendizagem perceptiva (perceptual learning) a partir de uma abordagem ecológica tendo como objetivo central mostrar como o desenvolvimento perceptivo sustenta (underlies) o conhecimento sobre o mundo. As autoras caracterizam este tipo de aprendizagem como um tipo específico de ação corporal na busca por informação em meios próprios e através do uso de habilidades sensóriomotoras. Tal fato nos aproxima bastante do discurso atuacionista de Noë (2004 e 2006). Assim, as autoras descrevem o desenvolvimento da ação perceptiva humana com quatro características fundamentais: agenciada, organizada, antecipatória e flexível. A seguir apresenta-se a caracterização da ação de aprendizagem musical partindo das características gibsonianas de aprendizagem perceptiva. Toda aprendizagem musical é a ação de um corpo em um meio. O corpo que age sobre o meio é, sem dúvidas, uma agência, um agente. Não há nessa abordagem o compromisso em descrever a intencionalidade dessa agência como top-down, mas antes como um processo bottom-up, no qual o self, ou o agente é resultado ação do corpo no meio e não o contrário. Com relação à música há que se observar que a intenção do agente, ou o direcionamento de sua ação emerge de seus padrões de ação no mundo. Se tomamos o caso do improviso musical como exemplo há que se considerar que essa característica de agência é encarnada no improvisador utilizando as possibilidades de ação que ele próprio encontra a partir de sua ação de busca no meio. Se ele utilizará uma escala pentatônica ou hexafônica, dependerá de suas habilidades de encontrar possibilidades de ação motora em situações musicais específicas. A aprendizagem da ação perceptiva tem sempre a característica de desenvolver a habilidade de prever o que pode ocorrer na sequência temporal em que se vive. É por isso que o percebedor pode planejar e gerar crenças e expectativas. No caso da música essa característica encontra muito espaço para auxiliar uma nova explicação para aprendizagem. O significado musical está diretamente relacionado à possibilidade de prever o que vem na sequência, de esperar determinado padrão em vez de outro. A busca de informação musical pode ser descrita como a busca por padrões. A aprendizagem perceptiva caracteriza o comportamento humano também pela constante busca por padrões. É tal busca que parece tornar os humanos hábeis na tarefa de reconhecer padrões. As invariâncias ou recursões existentes nas mudanças, bem como o próprio modo como as coisas mudam, são recursos muito úteis para o desenvolvimento da percepção e aprendizagem humana. A abordagem ecológica realça o papel das invariantes e das possibilidades na ação perceptiva. Por último, Gibson e Pick (2000) apresentam a flexibilidade como ferramenta para a otimização na tarefa de reconhecimento de padrões. A ação flexível permite a modificação dos padrões e uma maior e mais rápida capacidade descriminatória. É por tal flexibilidade que se consegue descriminar mais rápido um determinado padrão sonoro derivado de outro. Nesse sentido não se fala em armazenar mais conceitos, como no paradigma do processamento de informações, mas em especificar mais padrões a partir de um padrão geral. Esta característica relaciona-se diretamente com a capacidade de comportamento adaptivo em situações dinâmicas nas quais o ajuste entre organismo e meio precisa ser mantido. Para Maturana e Varela (2007) tal ajuste denomina-se por acoplamento estrutural que conforme muda, ou ajusta o comportamento, mantém a organização e a vida do organismo e do meio, mantém a dinâmica de acoplamentos do sistema organismo-meio. Assim pode-se chegar à noção de música como produção e audição de padrões sonoros, resultados de coordenações recursivas de ações de um grupo de pessoas em um meio específico. Pode-se também descrever conhecimento musical como ações perceptivas caracterizadas por seu agenciamento, por sua previsibilidade, pela busca por padrões ordenados e pela flexibilidade para ajustar o sistema e sintonizar novas distinções no meio. Para o paradigma que estamos denominando por ciência cognitiva dinâmica as abordagens aqui denominadas por ecológica, enaccionista e fenomenológica permitem afirmar que conhecimento não é o conjunto de representações mentais internas, nem as operações utilizando tais represntações. Para tal perspectiva conhecimento musical é ação específica, seja tocar, cantar , ouvir ou pensar. Referência Bibliográficas Candé, R. (1994) História Universal da Música. Martins Fontes, São Paulo. Gibson, J. J. (1966) The Senses Considered as Perceptual Systems. Houghton Mifflin Company, Boston. Gibson, J. J. (1979/1986) Ecological Approach to Visual Perception. Lawrence Erlbaum Associates Publishers, Hillsdate. Kaplan, José Alberto. (1977). O ensino do piano, ponderações sobre a necessidade de um enfoque científico. Maturana, H. e Varela, F. (2007) A árvore do conhecimento. Palas Athena, São Paulo. Merleau-Ponty, M. (1994) Fenomenologia da Percepção. MArtins Fontes, São Paulo. Noë, A. (2004) Perception in Action. The Mit Press, Berkeley. Noë, A. (2006) Real Presence. Draft of January/2006. Varela, F; Thompson e Rosh (1991/2003) A mente incorporada – ciência cognitiva e experiência humana. Artmed, Alegre. [1] Nos referimos às teorias do conhecimento que se utilizam da noção de representação mental como fundamento para as explicações acerca dos fenômenos relacionados à cognição.