O Supremo Tribunal Federal entende que hierarquicamente, no ordenamento jurídico brasileiro, encontram-se no topo as normas constitucionais, seguidas, na mesma escala hierárquica, as leis ordinárias e as leis complementares. Porém esse entendimento não é pacífico entre os doutrinadores. Será que uma lei complementar estará sempre protegida em relação a uma lei ordinária? Será que uma lei ordinária poderá sempre revogar uma lei complementar? Pontos de divergência são encontrados diante de leis ordinárias e leis complementares. O presente trabalho tem como objetivo esclarecer, de forma embasada, o conflito entre as normas citadas acima. Foram utilizadas fontes doutrinárias, jurisprudenciais e legais. O presente estudo permitirá, ao leitor, que este reflita e tome uma posição sobre o conflito. Ao final, do presente trabalho, estão apresentadas as conclusões do autor.
Palavras-Chave: Hierarquia. Conflito. Solução.

1 INTRODUÇÃO

O renomado juspositivista austríaco Hans Kelsen, tem como sua marca caracterizante a formulação de uma pirâmide que representava graficamente a hierarquia das normas jurídicas. No topo viriam as normas constitucionais, logo abaixo as leis e em seguida as demais normas. É uma forma de organização, ou seja, um meio de hierarquizar as normas jurídicas de certo ordenamento.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 59 e incisos, expressa que "o processo legislativo compreende a elaboração de: I- emendas à Constituição; II- Leis complementares; III- Leis ordinárias...". (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, artigo 59, incisos I, II e III).

Sobre a hierarquia dentro do ordenamento jurídico brasileiro o Supremo Tribunal Federal entende que no topo da pirâmide encontram-se as normas constitucionais. Logo abaixo estão, na mesma escala hierárquica, as leis ordinárias e as leis complementares.

No dia-a-dia dos tribunais encontram-se conflitos entre as duas últimas normas citadas acima. Doutrinariamente, a posição da nossa Suprema Corte em relação à hierarquia entre lei complementar e lei ordinária é bastante divergente. Renomados juristas como: Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Geraldo Ataliba, Alexandre de Moraes, Arnoldo Wald, Hugo de Brito Machado e Nelson de Souza Sampaio admitem a existência de hierarquia. Já José Afonso da Silva, Victor Nunes Leal, Carlos Maximiliano, Celso Bastos e Michel Temer, dentre outros, negam essa hierarquização.

Em algumas situações a lei ordinária, mais nova, não poderá revogar uma lei complementar mais antiga, causando status de superioridade hierárquica desta sobre aquela. Na verdade ocorre um conflito de competências. A lei ordinária não poderá entrar no campo de atuação da lei complementar por esta ter recebido da "Lei Maior" competência privativa para dispor de determinada matéria.

Acontece que o Poder Legislativo aprova lei complementar para atuar em área que bastaria apenas uma simples lei ordinária, sendo assim, aprovando uma lei formalmente complementar, mas com materialidade ordinária. Já nesse caso, uma simples lei ordinárias poderá revogar uma lei complementar.

O presente trabalho tem como objetivo geral extinguir o mito de uma possível hierarquia entre lei complementar e lei ordinária. Caberá, também, em nosso estudo tecer considerações sobre: lei em sentido formal e lei em sentido material; lei nacional e lei federal;

Para se chegar ao resultado iremos buscar na doutrina ensinamentos sobre: normas jurídicas, conflito entre tais normas e processo legislativo.

Recorreremos à jurisprudência da Suprema Corte para obtermos o seu posicionamento sobre nosso campo de estudo. Além de usarmos os ensinamentos de doutrinadores renomados no mundo jurídico.

2 PONTOS RELEVANTES AO ESTUDO DO TEMA

Antes de entramos diretamente no campo de estudo do tema proposto, faz-se necessário a abordagem de elementos que irão servir de base para uma melhor compreensão, por parte do leitor, do tema tratado, permitindo um posicionamento crítico deste em relação à conclusão do autor.

A seguir comentaremos brevemente acerca de: Norma e lei; lei em sentido formal e material; lei complementar e lei ordinária; lei nacional e lei federal; alteração e revogação de lei; conflito entre normas.

2.1 NORMA E LEI

A sociedade vivendo em coletividade não poderia atingir um bem comum sem a presença de regras. Conflitos entre indivíduos necessitavam de soluções, ou melhor, precisavam ser evitados. Por isso naturalmente as normas de conduta surgiram e com elas seus sistemas normativos como, a religião, os costumes, a família, a moral, a educação, a arte, o direito.

Dentro do sistema normativo que nos interessa, o direito, nos deparamos com a positivação das normas jurídicas, ou seja, a lei. Para o professor J. Flóscolo da Nóbrega define-se lei a como "norma escrita de direito, aprovada pelo poder legislativo e sancionada pelo poder executivo". (NÓBREGA, J. Flóscolo da, 1987, p. 95).

Ainda nos referindo sobre norma e lei, podemos citar as considerações do professor Tércio Sampaio Ferraz Jr: "A lei é a forma de que se reveste a norma ou um conjunto de normas dentro do ordenamento. Nesse sentido, a lei é fonte do direito, isto é, o revestimento estrutural da norma que lhe dá a condição de norma jurídica". (FERRAZ Jr., Tércio Sampaio, 2003, p. 233)

Concluindo, é de se observar que norma é gênero e lei é espécie, sendo esta positivada no ordenamento jurídico e elaborada baseando-se na "Lei Magna", quando pertencentes a ordenamentos que adotam o regime constitucional. A Constituição do Estado irá estabelecer os requisitos formais e materiais das leis infraconstitucionais.

2.2 LEI EM SENTIDO FORMAL E MATERIAL

Lei em sentido formal é ato jurídico produzido por quem é competente para o exercício leginferante, com observância, para tal finalidade, dos requisitos elencados pela Constituição.

Sobre a formalidade da lei o ilustre mestre Flóscolo da Nóbrega nos ensina que:

"Sob o aspecto formal, a lei é apenas um ato de vontade, da vontade do legislador. Mas nem todo ato dessa espécie é lei; para ter a virtude de lei, é necessário que preencha os requisitos previstos na lei fundamental do Estado, a Constituição. Esses requisitos dizem respeito à competência do legislador e à regularidade do processo de formação da lei. A Constituição discrimina as matéria sobre que o legislador pode legislar, ou ditar leis e, ao mesmo tempo, estabelece o processo de formação destas. Este se inicia por um projeto, que discutido e aprovado pelo poder legislativo, é enviado ao poder executivo, para a sanção e promulgação. Se falta algum desses requisitos formais, como se o legislador não tinha o poder de legislar sobre a matéria, ou se não foi observado o processo estabelecido na Constituição, a lei não é formalmente válida, é lei nula por vício ou defeito de forma". (NÓBREGA, J. Flóscolo da, 1987, p. 95).

Ratificando as palavras citadas acima o professor Hugo de Brito Machado fala que:

"Lei apenas em sentido formal é, portanto, o ato que tem a forma de lei, porque produzido pelo órgão competente para o exercício da função legislativa, com observância do procedimento próprio para a feitura das leis, mas não contém uma norma jurídica, e sim uma prescrição dirigida a uma determinada situação concreta". (MACHADO, Hugo de Brito, 2004, p. 138).

Para uma lei ter validade em sua vigência e não ser passível de anulação por inconstitucionalidade formal, deve observar, durante o processo legislativo, os requisitos formais expressos na Constituição Federal.

Já o conteúdo da lei, sua substância, sua essência, seus destinatários, são atributos de sua matéria, ou seja, é a lei em sentido material. Flóscolo da Nóbrega fala que:

"Os seus requisitos de conteúdo, ou requisitos matérias, ou substanciais, são a generalidade, a abstração, a permanência, a estrutura imperativo-atributiva e a finalidade de garantia dos interesses comum". (NÓBREGA, J. Flóscolo da, 1987, p. 96).

Hugo de Brito Machado fala da que a lei em sentido material é sinônimo de norma. Ensina-nos o autor, sobre norma em sentido material, que esta:

"É o ato jurídico que expressa uma relação de causalidade: dada determinada situação de fato, deve ser determinado o efeito. Ou então, dado fato temporal, deve ser a prestação, ou dada a não-prestação, deve ser a sanção". (MACHADO, Hugo de Brito, 2004, p. 138).

2.3LEI COMPLEMENTAR E LEI ORDINÁRIA

José Afonso da Silva, com sua tradicional classificação sobre a aplicabilidade das normas, define-as em três: normas de eficácia plena, normas de eficácia contida e normas de eficácia limitada. As normas de eficácia plena têm sua aplicabilidade imediata, produzindo seus efeitos desde o momento em que entram em vigor. Porém, tanto as normas de eficácia contida quanto as normas de eficácia limitada possuem sua aplicabilidade freada pela legislação infraconstitucional. As de eficácia limitada são aplicadas de imediato, porém com certos requisitos estabelecidos em lei; as de eficácia contida só serão aplicadas com a elaboração de uma lei que a regule. Essa lei reguladora poderá ter seu requisito formal expresso na Constituição Federal, como o caso do artigo 156, § 4º, CF/88.

"4º Cabe à lei complementar:

I - fixar as alíquotas máximas dos impostos previstos nos incisos III e IV

II - excluir da incidência do imposto previsto no inciso

IV exportações de serviços para o exterior." (Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 156, § 4°, incisos I, II, IV).

Nesse caso só por lei complementar poderá ser regulada tal matéria, visto que expressamente a Constituição Federal determina, "cabe à lei complementar".

Por sua vez, analisando o artigo 150, VI da mesma Carta Magna, encontramos que é vedado aos entes instituírem impostos sobre:

"c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei;" (Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 150, inciso VI).

Já nesse caso, a Constituição não determina a natureza da norma que irá regular a matéria, por isso cabe a uma simples lei ordinária a tarefa de regulá-la.

Mas, por que no parágrafo anterior foi usada a expressão, "simples lei ordinária"? Ela realmente é mais simples que a lei complementar? Ou esta tem alguma superioridade sobre aquela?

Para esclarecermos as dúvidas suscitadas acima iremos tecer alguns comentários sobre lei complementar e lei orgânica, inclusive diferenciando-as.

Celso Ribeiro Bastos define lei complementar como sendoespécie normativa autônoma que contempla matéria a ela entregue de maneira exclusiva pela Constituição, cuja aprovação está sujeita à maioria absoluta da Casa Legislativa em que tramite, na forma do artigo 69. Michel Temer ensina que a lei complementar tem a diferenciá-la fundamentalmente a necessidade de previsão expressa na Constituição Federal e a maioria absoluta exigida para sua aprovação. Já o ilustre filósofo Miguel Reale comenta sobre lei complementar colocando-as como: "tertium genus de lei, que não ostentam a rigidez dos preceitos constitucionais, nem tampouco devem comportar a revogação (pedra de vigência) por força de qualquer lei ordinária superveniente". (REALE, Miguel, 1962, p. 110)

Brilhante também é a colocação do professor Alexandre de Moraes, em sua obra "Direito Constitucional", décima segunda edição, onde expõe que a razão da existência da lei complementar se dá pelo fato de o legislador desejar regular certa lei que não necessita da rigidez constitucional, mas também não poderia ficar ao sabor de constantes alterações de um processo legislativo ordinário.

O professor Gabriel Dezen Junior comenta sobre lei ordinária expressando que:

"As leis ordinárias são utilizadas para os casos em que a Constituição exija "lei" e para todas as situações, exceto aquelas em que a CF exija "lei complementar", em que se precise criar uma obrigação de fazer ou não fazer". (JUNIOR, Gabriel Dezen, 2005, p. 415).

Já o ilustre Hugo de Brito Machado se refere a leis ordinárias dizendo que são: "(...) prescrições jurídicas produzidas pelo Poder Legislativo, no desempenho ordinário de sua atividade essencial". (MACHADO, Hugo de Brito, 2004, p. 122).

É de se notar o baixo prestígio que a lei ordinária possui, junto aos juristas, em relação à lei complementar. Isso pode ser explicado pelos requisitos formais exigidos, pela Constituição Federal, para a elaboração das referidas leis.

A nossa Lei Maior é bem clara em seu artigo 69, ao dizer que as leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta, ou seja, terão quorum qualificado. Lei aprovada por maioria absoluta quer dizer que sua aprovação depende dos votos de mais da metade do número de membros da Casa Legislativa, independente do número de presentes no momento da votação.

A maioria absoluta se difere da maioria simples, por esta ser um número variado. A lei aprovada por maioria simples é aquela em que depende da maioria dos votos dos membros presentes, por isso varia de acordo com o quorum da sessão. De acordo com o artigo 47 da Constituição, a lei ordinária será aprovada por maioria simples.

Diante de diferenciados requisitos formais alguns autores fundamentam sua posição diferenciada ao Supremo Tribunal Federal em relação à hierarquia entre leis ordinárias e leis complementares. Como exemplo temos o argumento de Manoel Gonçalves Ferreira Filho acerca da hierarquia das leis, em que o renomado jurista entende que o legislador constituinte não quis deixar ao sabor de uma decisão ocasional a desconstituição daquilo para cujo estabelecimento exigiu ponderação especial. O mesmo autor ainda expõe que é princípio geral do Direito que, ordinariamente, um ato só possa ser desfeito por outro que tenha obedecido à mesma forma.

2.4 LEI NACIONAL E LEI FEDERAL

 

O Congresso Nacional, através de competência atribuída pela Constituição Federal, exerce função legislativa tríplice, elaborando emendas constitucionais (como constituinte derivado), leis nacionais (como legislador nacional) e leis federais (como legislador federal).

A lei nacional é norma geral, apresentada sob a forma de lei complementar. Ela irá regular matéria expressa pela Constituição Federal. Incidirá sob todos os entes federativos, União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

A lei federal será elaborada pelo Congresso Nacional, como pessoa jurídica de direito público interno autônomo, somente sendo aplicada no ente União.

Em síntese, a lei federal só será aplicada ao ente federativo União, não tornando obrigatória sua aplicação nos demais entes. Já a lei nacional abrange todos os entes federativos, por isso, caso uma lei estadual vindo a confrontá-la, será anulada por ilegalidade.

Seguindo os ensinamentos do ilustre mestre Geraldo Ataliba, citamos:

"Leis nacionais e leis federais – O Congresso Nacional é órgão legislativo do Estado Federal e da União. Na primeira qualidade edita leis nacionais, na segunda, leis federais. As leis nacionais superam e transcendem às circunscrições políticas internas. As leis federais, ao lado das estaduais e municipais, circunscrevem-se à área de jurisdição da pessoa a que se vinculam e somente obrigam os jurisdicionados stricto sensu de cada qual. É, portanto, muito mais ampla a lei nacional do que a lei federal. Em outras palavras, a Constituição confere à lei nacional amplíssimo poder para regular matérias específicas em todo o território nacional, abstração feita da sujeição dos destinatários da norma, quer à União, quer a Estados e Municípios. Já a lei federal, embora editada pelo mesmo órgão, onera, circunscritamente, somente os jurisdicionados da União. Donde se vê que a lei federal se opõe – no mesmo plano que está – à lei estadual e à municipal, enquanto que a lei nacional abstrai de todas elas – federal, estadual e municipal – transcendendo-as... A lei federal é bem restrita e limitada. Dirige-se aos jurisdicionados (stricto sensu) da União, seus administrados; a seu aparelho administrativo, vinculando exclusivamente seus súditos. Obriga só aquelas pessoas a ela sujeitas,circunscrevendo seus efeitos à esfera da pessoa União, em oposição a Estados e Municípios. Quer dizer: limita-se ao campo constitucional conferido à União, não podendo estender-se ou invadir o campo dos Estados e Municípios".(in SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO BRASILEIRO, p.94)

2.5 ALTERAÇÃO E REVOGAÇÃO DE LEI

Uma lei poderá ser alterada, parcial ou integralmente, por uma lei nova. Esta nova lei não pode ter inferioridade hierárquica em relação à lei alterada, nem tampouco poderá invadir o campo de competência desta.

A revogação ou alteração se apresentam sob três formas, são elas: expressa, quando a nova lei expressamente a revoga ou altera; de fato, quando a lei cai em desuso; ou tácita quando a nova lei introduz preceitos novos e incompatíveis com a lei anterior sem, no entanto, revogá-la expressamente.

Hugo de Brito Machado alcança um problema em relação à revogação de leis especiais, por estas tratarem de vários assuntos distintos. Por isso, o mesmo autor, cita em sua obra a lei complementar nº 95, de 26/02/1998:

"Art. 7º O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios:

I – excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto;

II – a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência e conexão;

III – o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva;

IV – o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subseqüente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa". (lei complementar nº 95, de 26/02/1998).

Seguindo, ainda, os ensinamentos do professor Hugo de Brito Machado, podemos citar:

"Para implicar revogação da lei anterior, a incompatibilidade desta com a lei nova há de ser absoluta. Se é relativa e assim pode ser superada pelo intérprete, se pode este conciliar as duas, não há revogação. Assim, se a lei nova estabelece disposições gerais sobre o assunto, não revoga as disposições especiais sobre o mesmo assunto existentes em lei anterior. E se estabelece disposições especiais sobre o assunto, não revoga as disposições gerais existentes sobre o mesmo assunto em lei anterior". (MACHADO, Hugo de Brito, 2004, p. 147).

Cabe ainda anotarmos o artigo 2°, e seus parágrafos, do decreto-lei nº4.657, de 04 de setembro de 1942, mais conhecida com a Lei de Introdução ao Código Civil.

"Art. 2° - Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

§ 1° - A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

§ 2° - A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.

§ 3° - Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência."(Lei de Introdução ao Código Civil, artigo 2°, parágrafos 1°, 2°, 3°).

2.6 CONFLITO ENTRE NORMAS

Hans Kelsen fala que existe um conflito entre duas normas quando há uma incompatibilidade entre o que é fixado como devido por uma norma e o que outra norma estabelece como devido. Por isso o cumprimento da norma mais nova irá entrar em choque com norma antiga.

Citando o juspositivista austríaco, em sua obra "Teoria Geral das Normas" encontramos o seguinte ensinamento:

"Que há semelhantes conflitos de normas não pode ser posto dúvida. Eles desempenham em importante papel sob o nome de "conflito de deveres" na Moral, tanto como Direito, especialmente na relação entre Moral e Direito. Um conflito de normas pressupõe ambas normas estão em conflito. Os enunciados relativos à validade de ambas as normas são verdadeiras". (KELSEN, Hans, 1881-1973. Tradução de José Florentino Duarte, 1986, p. 159).

Seguindo a linha de pensamento de Kelsen, o ilustre autor soluciona o conflito, entre as normas, hierarquizando-as, comentando que todo sistema de normas e de atos jurídicos é, ao mesmo tempo, hierarquizado e dinâmico. Ele é hierarquizado porque os atos jurídicos adquirem validade a partir de sua conformidade a normas jurídicas, que dependem por sua vez de outras normas, e assim por diante, até atingir-se a lei fundamental, que não tem justificação jurídica, mas é pressuposta por todas as normas e todos os atos jurídicos do sistema.

Um sistema de direito difere de um sistema formal, segundo Kelsen, porque ele não é estático, mas dinâmico. Efetivamente, as normas inferiores e os atos jurídicos não podem ser deduzidos de normas que condicionam sua validade, mas fornecem unicamente o quadro dentro do qual, normas inferiores, bem como os atos jurídicos que as aplicam, podem inscrever-se validamente.

3 HIERARQUIA ENTRE LEI ORDINÁRIA E LEI COMPLEMENTAR

Para assegurar a unidade do ordenamento jurídico, o sistema de normas deve obedecer uma ordem lógica e coerente. Essa distribuição lógica compreende uma hierarquia, em que a Constituição aparece como plano normativo supremo. A validade de todo o sistema depende de uma Norma Fundamental que, para Kelsen, torna possível a experiência do direito.

Seguindo o modelo da teoria do ordenamento jurídico Hans Kelsen, escalonando as normas hierarquicamente sob forma de uma pirâmide, o ordenamento jurídico brasileiro eleva ao topo, as normas constitucionais, fazendo com que as demais normas encontrem seu grau de hierarquia, sua validade e sua competência a partir delas. Por ter superioridade hierárquica, a norma constitucional não pode ser confrontada por nenhuma outra norma, que não faça parte do corpo da Constituição.

Chegamos ao ponto crítico de nosso estudo, que é a análise das diversas posições, formuladas por renomados juristas, acerca da existência da hierarquia entre lei complementar e lei orgânica.

O Supremo Tribunal Federal entende que, para uma lei complementar ter superioridade em relação a uma lei ordinária é preciso ser revestida de seu elemento material, ou seja, a matéria que está regulando precisa ter previsão constitucional, ordenando competência à lei complementar. Caso contrário, se nada estiver previsto na Constituição Federal, a lei complementar passa a ser materialmente lei ordinária, perdendo seu caráter de superioridade.

Em caso prático nossa Suprema Corte posicionou-se acerca da matéria controversa.

"RECURSO ESPECIAL Nº 668.089 - RS (2004/0081287-1)

RELATOR : MINISTRO CASTRO MEIRA

RECORRENTE : CARDIODIAGNÓSTICO LTDA

ADVOGADO : EDUARDO ANTÔNIO FELKL KUMMEL E OUTROS

RECORRIDO : FAZENDA NACIONAL

RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO CASTRO MEIRA (Relator): Cuida-se de recurso especial interposto com fulcro na alínea "a" do permissivo constitucional, em face de acórdão assim ementado:

COFINS. ISENÇÃO. SOCIEDADES CIVIS. LC 70/91. LEI 9.430/96 A LC 70/91, criando a COFINS, vindo substituir o FINSOCIAL, é reconhecidamente lei complementar apenas em sentido formal, mas materialmente, lei ordinária, porquanto a contribuição sobre o faturamento já estava prevista constitucionalmente. O que ocorreu com o advento da Lei 9.430/96 nada mais foi do que constitucional revogação de um benefício legal, cabível via lei ordinária, qual seja a revogação da isenção concedida pela LC 70/91 às sociedades civis" (fl. 168)."

Os doutrinadores que seguem o entendimento da Suprema Corte, alegam paridade de hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, fundamentando-se na qualidade de normas primárias que as referidas leis possuem, ou seja, retiram suas validades diretamente da Constituição Federal, justificando a nivelação hierárquica.

Como dito, esse assunto não é pacífico entre os doutrinadores, sendo Hugo de Brito Machado um dos maiores defensores da superioridade hierárquica da lei complementar sobre a lei ordinária. O referido mestre começa, sua defesa pela existência de hierarquia, baseando-se no elemento formal, que é a existência de quorum qualificado para sua aprovação, diferente da lei ordinária que pode ser aprovada por quorum simples.

Por o Supremo Tribunal Federal considerar a lei complementar, quando dentro do campo de atuação da lei ordinária, como lei materialmente ordinária, Hugo de Brito Machado critica tal entendimento com as seguintes palavras: "(...) a identidade específica, e conseqüente posição hierárquica das normas jurídicas em geral, é conferida pelo elemento formal. Não pelo elemento material, vale dizer, não pelo conteúdo da norma".( MACHADO, Hugo de Brito, 2004, p. 119). E ainda completa com o seguinte pensamento:

"A existência de um campo de reserva de lei complementar, toda via não quer dizer que não possa a lei complementar cuidar de outras matérias. Pode, sim, e deve, o legislador adotar a forma de lei complementar para cuidar não apenas das matérias a este entregues, em caráter privativo, pelo constituinte, mas também de outras, às quais deseje imprimir maior estabilidade, ao colocá-las fora do alcance de maiorias ocasionais, ou até dos denominados acordos de lideranças." ( MACHADO, Hugo de Brito, 2004, p. 119)

Continuando com os ensinamentos do ilustre mestre Hugo Brito Machado encontramos em sua obra "Introdução ao Estudo Direito" o seu pensamento no sentido de que a doutrina que considera lei complementar, sem previsão constitucional, no mesmo escalonamento hierárquico da lei ordinária, está amesquinhando o princípio da segurança jurídica, justificando por considerar que o campo das matérias atribuídas pela Constituição à lei complementar é impreciso. Finalizando os comentários sobre o pensamento do doutrinador citamos a seguinte frase: "A vida e o espírito postulam um direito justo, mas pedem também, e antes de tudo, segurança, e portanto um direito certo, ainda que menos justo". ( MACHADO, Hugo de Brito, 2004, p. 121)

Como já foi dito anteriormente, a doutrina que defende a paridade hierárquica entre lei complementar e lei ordinária expõe sua tese tomando como alguns dos seus argumentos o caráter primário que as duas normas possuem, e que cada uma das normas, em questão, pressupõem diferentes campos materiais de competência. O professor Alexandre de Moraes critica essas duas teses com os seguintes argumentos:

"Em relação ao primeiro argumento, devemos lembrar que todas as espécies normativas primárias retiram seu fundamento da validade da própria Constituição Federal, inclusive as próprias Emendas Constitucionais, e nem por isso se diga que estariam no mesmo patamar hierárquico que as demais.

O segundo argumento, tecnicamente curtíssimo, corresponde a uma das diferenças entre lei complementar e lei ordinária. Enquanto a primeira tem reservadas as matérias pelas quais poderá ser editada, a segunda possui campo residual de competência. Ocorre que o Direito como ciência não é estanque, e determinada matéria reservada à lei complementar poderá possuir tantas subdivisões que em uma delas poderá acabar confundindo-se com outra matéria residual a ser disciplinada por lei ordinária". ( MORAES, Alexandre de, 2002, p. 550).

4 CONCLUSÃO

Dentro do ordenamento jurídico brasileiro não é admissível tal hierarquia, tendo como base a jurisprudência da Suprema Corte de nossa República. O Supremo Tribunal Federal é bem claro em seu posicionamento, ao afirmar que não existe hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, admitindo que exista campo de competência restrito a cada norma, não podendo a lei ordinária invadir o campo de competência da lei complementar, sob pena de alegação de inconstitucionalidade, pois só existirá campo de atuação exclusivo da lei complementar quando a Constituição Federal estabelecer. Sendo assim, uma lei complementar sem a proteção constitucional, é meramente lei ordinária.

Alguns autores entendem que a lei complementar tratando de norma geral, ou seja, com competência dada pela Constituição para regular determinada matéria, possui superioridade hierárquica em relação à lei ordinária. Nem nesse caso existe a hierarquia. Uma norma para hierarquicamente sobrepor-se a outra, deve conter, em sua essência, a superioridade. Uma norma constitucional é superior simplesmente por nascer constitucional, só sendo alterada por emenda. Uma lei complementar não tem essa essência de superioridade, simplesmente possui seu campo, intocável por normas infraconstitucionais, de competência. Por isso aquela seria superior em relação à lei ordinária, se mesmo fora de seu campo de atuação, continuasse a ser materialmente intocável. Deixando de lado o mérito da questão, o entendimento de quem dar as regras em nosso ordenamento jurídico, o Supremo Tribunal Federal, não é esse, permitindo a alteração por lei ordinária de matéria tratada por lei complementar, quando fora de sua competência.

É de se questionar a razão por qual uma lei complementar poder invadir o campo de competência de uma lei ordinária e a recíproca não ser verdadeira. Bastante embaraçoso o assunto, também não era para menos, pois quem causa toda essa confusão são os próprios elaboradores de nossas normas, o Poder Legislativo. Usando a regera de "quem pode mais, pode menos", o poder leginferante aprova lei complementar dentro do campo de atuação de lei ordinária. Se tal fato fosse vetado em nosso ordenamento jurídico, por inadequação formal da lei, poderíamos dizer que a lei complementar seria superior hierarquicamente às demais, se tornando em qualquer caso intocável materialmente por outra norma infraconstitucional.

Mesmo chegando à conclusão que inexiste, dentro de nosso ordenamento jurídico, a hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, é louvável a reflexão sobre o pensamento dos ilustres doutrinadores, Hugo Machado de Brito e Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ao tratar da insegurança jurídica causada pelo entendimento do Supremo em relação à hierarquia inexistente. Seguindo o mesmo pensamento dos autores citados acima, podemos dizer que seria bastante interessante a existência de superioridade hierárquica da lei complementar, ao passo de que esta seria uma opção para o legislador infraconstitucional proteger certos dispositivos que não seriam de matéria constitucional, proporcionando-lhes uma maior rigidez.

REFERÊNCIAS

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JUNIOR, Gabriel Dezen. Curso Completo de Direito Constitucional. Brasília: Vestcom, 2005.

KELSEN, Hans, 1881-1973. Teoria Geral das Normas. Tradução de José Florentino Duarte. Porto Alegre: Fabris, 1986.

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