Compartilhando leituras: um pouco de a "Missão da Universidade", de José Ortega y Gasset (1883-1955).
Sharing readings: a bit of the "Mission of the University", by José Ortega y Gasset (1883-1955).
Resumo: Com o presente texto, objetiva-se compartilhar uma leitura da obra "Missão da Universidade", do filósofo e educador espanhol José Ortega y Gasset, inserida em uma proposta de Educação Geral no ensino superior.
Abstract: The present paper aims to share a reading of the book "Mission of the University", from Spanish philosopher and educator José Ortega y Gasset, inserted on a proposal for General Education in Higher Education.
Palavras-chave: Missão da universidade. Educação universitária. José Ortega y Gasset. Filosofia da educação.
Keywords: University?s mission. College education. José Ortega y Gasset. Philosophy of education.
Rogério Duarte Fernandes dos Passos
1. Sobre José Ortega y Gasset.
José Ortega y Gasset nasceu em 08 de maio de 1883, em Madrid. Filho de José Ortega Munilla e Dolores Gasset, vinha de uma família integrante da burguesia ilustrada madrilena ? proprietária do jornal "El Imparcial" ?, tendo educação, inicialmente em sua cidade natal, e, depois, no colégio de jesuítas Miraflores de El Pago, em Málaga, em experiência que lhe proporcionou forte reação a este modelo educacional (Molinuevo, s/d).
Cursou por breve período a Universidad de Deusto, em Bilbao e, em seguida, já na Universidad Central de Madrid, faz a graduação e o doutoramento em Filosofia, concluído em 1904, quando contava com vinte e um anos de idade (Molinuevo, s/d).
Três viagens à Alemanha nos anos de 1905, 1907 e 1911 ? com visitas a Berlim, Leipzig e Marburg ? são importantes para a sua formação, pois lhe permitem estudar o idealismo, justamente a base daquilo que seria o seu primeiro projeto para uma regeneração ética e social na Espanha e a primeira etapa de sua filosofia, influenciada pela neokantiana "Escola de Marburgo", representada em nomes como os de Hermann Cohen (1842-1918), Paul Gerhard Nartop (1854-1924) e Ernst Cassirer (1874-1945). Em 1908 ocorre a nomeação de Ortega y Gasset como catedrático de Psicologia, Lógica e Ética na Escuela Superior de Magisterio de Madrid, e em 1910, como catedrático de Metafísica na Universidad Central de Madrid (Molinuevo, s/d), onde lecionou no período de 1910 a 1936.
Seus ideais ilustrados são quebrados em 1914 ? ano da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) ? seguindo-se escritos como Vieja y nueva política, Meditaciones del Quijote, além de Ensayo de estética como um prólogo de exposição de uma modernidade latina alternativa (Molinuevo, s/d).
Viaja para a Argentina pela primeira vez em 1916, em fato de grande importância não apenas em sua trajetória profissional, mas igualmente para o seu relacionamento cultural com a América ibérica. Seguem-se outras publicações, como a de 1921 diagnosticando a situação espanhola, España invertebrada, e, em 1923, analisando a sua época, El tema de nuestro tiempo. Segundo José Luis Molinuevo (s/d), há aqui a necessidade de superação do idealismo e retorno à vida, núcleo de sua teoria da razão vital, sendo esta fruto de la nueva sensibilidad que advierte en el siglo XX, ejemplificada en el arte nuevo como La deshumanización del arte, de 1925 (Molinuevo, s/d).
Com o famoso discurso ¿Qué es filosofía?, de 1929, dá-se a sua ruptura com a ditadura de Miguel Primo de Rivera y Orbaneja (1870-1930), que governou a Espanha entre 1923 e 1930, publicando, com grande repercussão internacional em 1930 La rebelión de las masas (Molinuevo, s/d).
Subscrevendo com Gregorio Marañón y Posadillo (1887-1960) e Ramón Pérez de Ayala y Fernández del Portal (1880-1962) ? a quem se juntou o poeta António Machado Ruiz (1875-1939) ? o manifesto Asociación [ou Agrupación] al Servicio de la República ? movimento político dissolvido em 1932 ?, não se filia a nenhum partido e tem de exilar-se no ano em que se inicia a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) ? quando não apóia nenhum dos lados em luta ?, indo de Paris à Argentina entre 1939 e 1942, quando visita Lisboa (Molinuevo, s/d).
Antes, porém, já convencido que a monarquia não seria capaz de unir os espanhóis em um desiderato comum, o filósofo espanhol se elege deputado pela província de León, participando da Assembléia Constituinte da Segunda República entre 1931 e 1932 (Universo On Line e Pedagogia & Comunicação, s/d). Desiludido, renuncia e silencia ? ao desagrado de muitos ? sobre as questões políticas da Espanha, não aceitando cargos acadêmicos no retorno ao país já na ditadura de Francisco Franco (1892-1975) (Universo On Line e Pedagogia & Comunicação, s/d).
Em 1936, Ortega y Gasset casa-se com Rosa Spottorno Topete (1884-1980), tendo com ela os filhos Miguel Germán Ortega y Spottorno (1911-2006), Soledad Ortega Spottorno (1914-2007) e José Ortega Spottorno (1916-2002).
O exílio na Argentina e França durante a Guerra Civil Espanhola igualmente não o impediu de passar no seu regresso três anos em Portugal, quando ministrou um curso livre de "especulação e problematização histórica", com grande "êxito mundano" (Bernardo, 2007).
Regressa de forma ocasional à Espanha pela família e pelos trabalhos com o Instituto de Humanidades ? que não consegue funcionar por além de dois anos sob o regime ditatorial de Franco ?, fazendo uma parada em Madrid, onde morre de câncer em 18 de outubro de 1955. Em seguida, surgem, dentre outras, como obras póstumas Velázquez, Sobre la razón histórica, Leibniz, El hombre y la gente e Epílogo (Molinuevo, s/d, & Universo On Line e Pedagogia & Comunicação, s/d).
Ortega y Gasset teve educação influenciada pela chamada "Geração 98", formada por escritores espanhóis alinhados no campo político, ideológico e literário, inclusive em intenção e propostas ligadas aos ideais de europeização e renovação dos valores ibéricos após a queda das últimas colônias espanholas no mundo e a Guerra Hispano-Americana de 1898 (Lexicoteca, s/d) (rodapé nº 01).
Lembra Karl Erik Schøllhammer que Ortega y Gasset foi um dos principais pensadores espanhóis do Século XX, deixando uma extensa obra de doze extensos volumes de grande riqueza e versatilidade documental e pessoal (1999:16). Embora professor e filósofo, boa parte de sua produção, enquanto proposta de intervenção crítica na sociedade, foi divulgada no formato de textos jornalísticos, para só posteriormente virem à tona como livros (1999:16), o que não se revela em surpresa visto a sua proximidade com a imprensa, uma vez que, além do diário "El Imparcial", de propriedade de sua família, seu pai, além de descendente de um dos fundadores, era jornalista e diretor do "El País", o maior jornal espanhol e dos mais influentes da Europa.
Segundo Schøllhammer isso revelaria, enquanto ferramenta de intervenção cultural nas questões de seu tempo histórico, o estilo ensaístico de Ortega y Gasset, capaz de unir redação fluente e leitura agradável à reflexão com profundidade (1999:16-17). E, a partir daqui, a contribuição e compromisso do espanhol como intelectual, entendendo que caberia à universidade formar uma "elite iluminada capaz de elevar e guiar os rumos da cultura" (1999:17).
2. A apresentação de Ivo Barbieri.
A obra insere-se na coleção "Universidade", da Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que objetiva incentivar o debate acerca da missão e dos fundamentos desta instituição. Lembra Ivo Barbieri que a longevidade da universidade merece ser buscada na vitalidade do diálogo entre o antigo e o novo, o clássico e o moderno, o consagrado e o emergente. (1999:08) Da mesma forma, segundo ele, a universidade brasileira, recente, não pode prescindir dos debates de tão longa data sobre a temática.
Remontando à idéia de universidade ao pensamento filosófico e ao nascimento da curiosidade científica, ela ainda guarda consigo um núcleo íntimo que lhe permite reconhecer a si mesma, reunindo um sênior e alguns juniores nas suas reflexões, revelando as suas três funções essenciais: a biblioteca ? no confronto crítico de um pergaminho com outro, sem ser depósito de informação ?, a oficina/ ateliê ? também denominada sala de aula ?, e o laboratório ? no local de ação para a descoberta do conhecimento ? (1999:09). Cabe à universidade manter-se inseparável do pensamento humanista e guardiã do tesouro capaz de fecundar as novas e futuras gerações (1999:09).
Para Barbieri, embora a universidade não tenha ficado imune às doutrinas contrárias aos princípios que ela encerra, o reconhecimento de sua vocação mais pura a fortalecerá na resistência às ondas de barbárie que com freqüência acometem os humanidade, auxiliando-a ainda na busca dos objetivos que lhe são os melhores (1999:10). É preciso, também, pensar na correta definição de seus rumos ? vivemos diante de uma encruzilhada ?, para terem a abertura à palavra do outro, verdadeiro movimento de auto-reflexão (1999:10). A reflexão sobre a universidade deve vir acompanhada do contexto de suas vicissitudes, incluindo as questões relevantes para homens e mulheres pautados por diferenças históricas e culturais, em um mundo mais justo e sábio (1999:10).
Preocupar-se com a universidade é preocupar-se com o futuro, pugnando que ele se revele, sem, no entanto, nos esquecermos do olhar no presente para o passado, buscando os textos que são importantes para despertar a inquietude (1999:11).
O reexame de nove séculos da universidade ajudará na compreensão dos desafios, diminuirá a incerteza ? o que é deveras importante ? no presente, tomado por meios de comunicação de massa, pela propaganda (1999:11). Tal processo combaterá a paralisia do pensamento, a asfixia da consciência (1999:11).
Porém, com a revolução tecnológica, não poderá haver anacronismo, não podendo haver apenas lugar para a aula magistral e monologias expositivas (1999:12).
Os diferentes recursos, seja a anatomia deslumbrante representada pelo fantástico pintor Rembrandt (1606-1669) ? um completo conhecedor da iconografia clássica ?, seja a visão milimétrica dos resultados de uma radiografia computadorizada, devem, com todos os conhecimentos, convergirem para a compreensão de um objeto em estudo pelos atores da vida universitária (1999:12). Contudo, se essa cena não se verificar no dia-a-dia das tarefas diárias dos que vivem a universidade, será possível lhe desejar mais um milênio? (1999:12)
Assim se faz necessário revigorar o debate com textos capazes de propiciar reflexão e auto-reflexão, sem o que é difícil conceber futuro para a universidade, reexaminando as idéias que a geraram/ transformaram, sintonizando-a no Século XXI (1999:13).
3. Introdução, por Karl Erik Schøllhammer.
Karl Erik Schøllhammer, docente na Pontifícia Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), nos traz uma introdução, intitulada "O papel histórico do intelectual" (1999:15). Nela, Schøllhammer nos explica que a obra "Missão da Universidade", discutindo justamente o papel dessa instituição, foi fruto da elaboração de seis palestras que José Ortega y Gasset proferiu a convite da Federação dos Estudantes Universitários de Madrid ao longo do segundo semestre de 1930 (1999:15). Embora em um contexto histórico específico, o texto não perde a universalidade no intuito de contribuir para a discussão do tema, no que ele destaca a reflexão filosófica e a intervenção crítica da obra extensa do filósofo espanhol (1999:15-16). Segundo Schøllhammer, graças ao enorme poder associativo do pensamento do intelectual espanhol é possível fazer um paralelo entre a situação histórica que motiva o texto de Ortega y Gasset e a universidade brasileira pós-ditadura (1964-1985) (1999:16).
Schøllhammer lembra da convicção de Ortega y Gasset sobre o papel do intelectual como parte de uma elite iluminada capaz de elevar e guiar os rumos da cultura (1999:17), embora o avesso igualmente se revelasse em um profundo pessimismo à moda do historiador e filósofo alemão Oswald Arnold Gottfried Spengler (1880-1936) acerca da capacidade das massas não-iluminadas de seguirem adiante, visto que entendia que em sua época a propagação de crenças como o fascismo e o comunismo ? além de serem problemas ? lançavam as massas em projetos não apenas utópicos, mas suicidas (1999:17-18).
Por sinal, esse é o tema do livro La rebelión de las masas, editado em 1930, o mesmo das palestras que culminaram na reflexão Misión de la universidad, sendo o pano de fundo para a compreensão destes argumentos, revelando uma tendência anti-democrática e aparentemente aristocrática de seu pensamento intelectual, e que, apesar disso (1999:18),
o escritor nunca abdica da sua responsabilidade pública pessoal, não por uma questão de sacrifício à causa mas por encontrar aqui um dos alicerces da sua filosofia vital formulado na fórmula: "Eu sou eu e a minha circunstância" ? O indivíduo se conhece a "si mesmo" pelo realismo fundamental procurado no compromisso que assume ? pelo caminho da razão, e não da utopia nem do idealismo ? com seu tempo.
Lembra Schøllhammer (1999:18-19) que em 1911, já como professor de metafísica na Universidade de Madrid, o pensamento de Ortega y Gasset pugna por rumo próprio, primeiro na filosofia do perspectivismo ? onde a percepção, o pensamento é localizado em uma perspectiva alterável ?, e, depois, em um tipo de vitalismo inspirado em Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) ? donde haveria uma força específica ou impulso vital imprescindível para a explicação da vida, em oposição às possíveis explicações dela em cunho mecanicista que acreditavam na organização dos sistemas materiais ?,
ou melhor, de um racionalismo vital que recusava todo idealismo apontando para a "vida" como fundamento da razão. A razão absoluta era substituída por uma razão em função da vida e a verdade absoluta pela perspectiva de cada indivíduo.
Schøllhammer explica que o desenvolvimento filosófico de Ortega y Gasset adquire autonomia com o início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e pela sua percepção da derrota dos ideais ilustrados do Ocidente, no que ele busca uma modernidade latina alternativa ? no que se vê em Meditaciones del Quijote, de 1915 ?, sendo um dos autores que melhor trouxe a tradição filosófica e artística da Europa Central ? sobretudo de França e Alemanha ? para o universo hispânico, além de estabelecer importantes conexões intelectuais com a América Latina, através de revistas que ele fundou, em exemplo de El Sol, Faro, Europa, España e Revista de Ocidente (1999:19). Esta última ? lembre-se, talvez a mais influente de toda a língua espanhola ? funcionou entre 1923 e 1936, quando se deu o início da Guerra Civil na Espanha (1936-1939) e o exílio de Ortega y Gasset (1999:19).
3.1. O contexto histórico em que se deu La misión la universidad, por Karl Erik Schøllhammer
Schøllhammer pondera que a Espanha vivia a transição da ditadura de Primo de Rivera (1870-1930), que perdendo o apoio dos militares e do velho regime, foi forçado a entregar o poder ao rei Alfonso XIII (1886-1941) em janeiro de 1930 enquanto solução para a crise política e econômica, em um quadro sublinhado pela forte crise da Peseta e por distúrbios estudantis (1999:20). O próprio rei em agosto daquele ano teve que abdicar, dando cabo à Segunda República (1931-1939), proclamada em 14 de abril de 1931 (1999:20).
Ortega y Gasset, enquanto deputado desde o ano de 1929 ? e na oposição a Primo de Rivera ?, abre a primeira palestra tecendo considerações sobre o momento histórico que ele julgava oportuno para o empreendimento de reformas na instituição universitária, em face do otimismo pela abertura no processo político advindo com a Segunda República, sem condições, porém, de prever que seis anos mais tarde dar-se-ia a ascensão do generalíssimo Francisco Franco, que alcançando o país pelo Marrocos, provocaria a Guerra Civil, em momento que a Universidade de Madrid se torna cenário das lutas da resistência republicana (Schøllhammer, 1999:20).
Havia o momento histórico e político que clamava à ação, com condições universitárias deploráveis que não despertavam a crença na mudança intrínseca, no que se entendia existir simultaneamente momentos de realização individual histórica (1999:21).
Para Schøllhammer (1999:21 e 27, notas nº 04 e 05), Ortega y Gasset vê a existência se realizar na perspectiva do desafio da mudança histórica, onde o professor da PUC-RJ compreende o ideário do filósofo espanhol a partir da imagem da vida como um "naufrágio" do qual o homem procura se salvar agarrando-se à cultura como uma tábua de salvação, nele igualmente reconhecendo, em conceito do crítico dinamarquês Georg Morris Cohen Brandes (1842-1927),
o "radicalismo aristocrático" de Nietzsche mas sem o heroísmo existencial der Übermensch (do super-homem), e uma inspiração historicista em que a história adquire seu sentido sendo composta por uma série de intervenções do homem, realizadas por este a fim de procurar sua própria autenticidade.
Essa tarefa, porém, é uma missão coletiva, com um grupo reunindo as qualidades para tanto (1999:22). A reforma da universidade e do Estado não poderia ser feita pelas massas, pois estas não teriam o preparo suficiente para a tarefa (1999:22).
Na sociedade do Século XX, as massas não detinham vocação para o seu auto-governar; às minorias desejosas de poder faltaria capacidade para isso, de maneira que a tarefa de liderança e de enfrentamento dos desafios públicos deveria ser exercida pelos grupos com a melhor formação, no que a universidade atuaria com destaque, norteando sua ação na disciplina, na clareza em relação aos objetivos desejados, de maneira que então (1999:22), poderão se superar em procura de mudanças, e só assim, sendo o tornando-se que as massas não são, terão a possibilidade de liderar e acelerar os avanços históricos (1999:22).
3.2. Sobre as missões da universidade, por Karl Erik Schøllhammer
Schøllhammer (1999:22-23) lembra que à questão de saber acerca da missão da reforma universitária, Ortega y Gasset, de forma retórica, lembra que ela deve preparar o estudante para que este viva à altura de seu tempo. A universidade tem que se atentar a várias missões ? não apenas ensino na formação de simples profissionais ou exclusivamente pesquisa ? mas, institucionalmente, impulsionar a cultura à altura de seu tempo (1999:23); há uma função integradora que não pode incorrer na imitação dos modelos francês, alemão ou inglês de universidade, visto que nenhum deles se encaixaria no contexto espanhol, além do que eles seriam responsáveis pelo homem médio europeu inculto ? chamado de "bárbaro", "arcaico" ?, que perdeu a visão geral em face de uma excessiva formação de especialização (1999:23).
Esse conceito de "bárbaro", anote-se, é central na filosofia e argumentação de Ortega y Gasset sobre o ensino. José Camilo dos Santos Filho resgata essa noção ao discutir a trajetória histórica da universidade, rememorando a fragmentação do conhecimento e o aparecimento de novas disciplinas que culminaram no departamento no interior dela, e que foi criado justamente em decorrência desses fatos (2000:40). O departamento surge como tentativa de organização dessa fragmentação do conhecimento em situação que se consolida na pesquisa e no ensino da pós-graduação, não fazendo, contudo, sentido igual na graduação, que deveria lograr por maior integração, mais formação geral e básica e não a alta especialização (2000:40). Esses elementos acabam por caracterizar fortemente a universidade moderna, em domínio dos indicadores da fragmentação e desarticulação, no que ele lembra que Ortega y Gasset, no seu La rebelión de las masas (2000:40)
vai até mesmo chamar o especialista formado na universidade de "bárbaro moderno". Para ele, o cientista moderno é um novo bárbaro, aquele que sabe quase tudo sobre quase nada, aquele não tem visão de todo ou do conjunto, nem visão das articulações de seu conhecimento com o de outros de colegas. E o barbarismo é tal que não há mais possibilidade de diálogo dele com os outros colegas.
Ainda em outro texto de José Camilo dos Santos Filho (s/d:42-43), comentando o documento educacional Tradition and innovation: general education and the reintegration of the university, contido no A Columbia Report, redigido em 1977 na Universidade de Columbia pelos professores Robert L. Belknap ? brevemente reitor daquela instituição em 1975 e ex-presidente da Comissão de Política Educacional (the Belknap Committee) ? e Richard Kuhnz, um dos problemas básicos relacionados à educação geral naquela década relacionava-se à desintegração educacional, com disciplinas isoladas umas das outras, sem interdisciplinaridade entre elas, em quadro associado a outras tendências socais e intelectuais, caminhando para uma imbecilidade generalizada, de maneira que
A desintegração das disciplinas tende a produzir estupidez e imbecilidade generalizada. Técnicos e especialistas que sabem quase tudo sobre quase nada são os bárbaros modernos, no dizer de Ortega y Gasset. Preparar grandes especialistas, sem dar-lhes oportunidade de confrontar questões fundamentais da vida, do conhecimento, dos valores, da sociedade e da própria pessoa humana mediante um sólido programa de educação geral, é lançar no mercado de trabalho novos bárbaros, mercenários capazes de vender seus serviços a qualquer causa.
Ademais, anota Schøllhammer (1999:23-24) que a universidade não deve optar pela escolha de um modelo que privilegia o ensino ou a pesquisa ou vice-versa; a universidade espanhola seguia o modelo da Universidade de Salamanca, que, por sua vez, seguia o de Bolonha, estando formada nas escolas profissionais ? como direito, medicina, engenharia, etc. ?, ao passo que Ortega y Gasset trazia consigo a experiência de universidade alemã estruturada no modelo de Wilhelm von Humboldt (1767-1835) ? um dos pais da base educacional de seu país ?, que priorizava a pesquisa científica, introduzindo-a na formação do profissional (1999:24). Nenhum dos modelos, contudo, foram capazes de satisfazer Ortega y Gasset, visto ele não conceber uma simbiose ou escolha entre eles, no que advertia acerca dos riscos de colimar ensino e pesquisa, colocando, então, a sua proposta em outros termos, justamente nos da cultural geral (1999:24).
Schøllhammer, por oportuno, lembra que esse argumento contraria um dos que são chave das mobilizações estudantis da época, que reivindicavam o ensino universitário integrado à pesquisa, tendo este como instrumento em favor das massas, onde, em uma perspectiva crítica, se associaria aos problemas epistemológicos subjacentes (1999:24 e 27, nota nº 7).
3.3. A cultural geral de Ortega y Gasset, por Karl Erik Schøllhammer
A cultura geral de Ortega y Gasset era algo bastante distinto da cultura burguesa clássica, diferente inclusive do que se encontra no âmbito contemporâneo dos Estudos Culturais, embora mais perto deste último que da anterior (1999:24-25). As diversas missões da universidade ? formação de profissionais, pesquisa e criação de quadros para o exercício da liderança política ? somente poderiam ser alcançadas na cultural geral (1999:24-25).
Lembre-se que essa tarefa não consistia em armazenar a herança clássica para os estudantes, mas transmitir uma completa visão das idéias de época, do próprio sistema que elas integram (1999:24-25). Schøllhammer coloca essa formulação (1999:25):
Tais idéias se formulam como basicamente estas: Imagem física do Mundo (Física); Temas fundamentais da vida orgânica; Processo histórico da espécie humana (História); Estrutura e funcionamento da vida social (Sociologia); Plano do Universo (Filosofia).
Diante disso teríamos a base para a formação do homem culto, tarefa de importância tal que Ortega y Gasett sugeria a criação de uma Faculdade de Cutura para estruturar a universidade moderna, com repercussão em diferentes áreas e na própria formação de cientista e profissional (1999:25).
Essa proposta supõe preparar, formar o universitário "generalista", em concepção distinta do especialista ou técnico profissional, a quem Ortega y Gasset definia como "novo bárbaro" (1999:25-26). Em contrapartida, se antes seu pensamento ia a sentido contrário às mobilizações estudantis desejosas de ver o ensino universitário associado à pesquisa e dirigido em favor dos anseios populares, o filósofo espanhol entendia que a universidade não deveria se submeter aos interesses imediatos do governo ou Estado, e, sim, aos chamados interesses reais dos estudantes; especialmente por ela deveria haver a preparação do estudante para o conhecimento de sua própria vida, no intuito de vivê-la de forma o mais completa possível ? o que seria ser uma pessoa culta, autônoma ? capaz de se aferir e sobrepor sobre o seu tempo, impulsionadora dos destinos políticos do seu país (1999:25-26).
Diante disso, reconhece-se que a universidade não é casa ou propriedade dos professores, mas dos estudantes, tendo a finalidade de ser o espaço para a aquisição de uma visão mais completa de mundo, para interpretar/ julgar e buscar um caminho mais nobre na existência (1999:26). Somente assim a universidade poderá realizar sua tarefa verdadeira,
como força espiritual reformadora da sociedade, contrapondo-se ao poder da imprensa à frivolidade, estupidez e autoritarismo, assumindo a missão de elevar e enobrecer o destino do mundo civilizado (1999:26).
Essa análise de Karl Erik Schøllhammer coloca-se como de grande utilidade para auxílio na compreensão do pensamento de Ortega y Gasset, em especial o contido na obra La misión de la universidad, a seguir exposto.
4. A primeira palestra (I): O Caráter da Reforma.
Na edição que chega às nossas mãos, o editor salienta que o presente capítulo ? ou a primeira palestra, com tradução para o português de João Cézar de Castro Rocha (as demais palestras foram traduzidas por Dayse Janet Löfgren Carnt e Helena Ferreira) ? não constou das Obras Completas de José Ortega y Gasset, tendo o seu conteúdo sido extraído da edição organizada por Howard Lee Nostrand, Mission of the University, New Brunswick & London: Transaction Publishers, 1991, p. 03-13.
José Ortega y Gasset traz o espaço e circunstância de sua fala, localizando-a no bojo de um convite feito pela Federação dos Estudantes Universitários de Madrid, onde, mesmo não gostando de falar em público, foi tomado do entusiasmo para a tarefa, embora estivesse com pouca fé (1999:29). E novamente localiza a sua exposição:
Afinal, não é óbvio que se trata de coisas muito diferentes? Um homem se encontraria numa situação precária se não tivesse entusiasmo por aquilo no qual deposita sua fé. Nesse caso, a humanidade ainda estaria lutando por sua sobrevivência em cavernas, pois o que tornou possível que o homem delas saísse para enfrentar a selva primitiva certamente pareceu, num primeiro momento, extremamente dúbio (...)
Ortega y Gasset justifica-se, ainda, afirmando que o homem pode entusiasmar-se apesar de reconhecer o caráter ambíguo das iniciativas, reafirmando a sua crença na capacidade do homem posicionar-se ante o improvável, difícil e remoto (1999:30). Há para ele, porém, uma fé que não faz jus ao nome, visto que crê no sucesso e recompensa desde o início, em exemplo do que escrevera em 1916, prevendo a derrota dos alemães porque estes acreditavam no triunfo, uma vez que apenas conquistavam e não lutavam (1999:30). Na luta, é preciso preparo para qualquer circunstância, vitória ou derrota (1999:30-31). A segurança em excesso é nociva, no que se justifica o declínio das aristocracias da história (1999:31). E nisso, dá-se a crítica do filósofo espanhol à modernidade, que criou uma geração de pessoas confiantes no progresso tecnológico e à organização social, aduzindo que os homens sentem-se seguros sobre muitas coisas, no que ele faz referência ao La rebelión de las masas (1999:31 e 123, nota nº 01).
Portanto, Ortega y Gasset justifica ter mais entusiasmo do que fé, invocando uma peculiaridade humana (1999: 31). Na ocasião ele se lembra dos quase vinte e cinco anos que redigiu seus primeiros textos sobre a reforma do Estado espanhol e, em especial, da universidade; além da amizade do pedagogo e filósofo espanhol Francisco Giner de los Ríos (1839-1915) que a reflexão sobre o tema lhe trouxe, salienta que poucos acreditavam nessa reforma, e quem falasse nela, ipso facto, era desqualificado, excluído e marginalizado da sociedade espanhola de forma repugnante (1999: 30-31).
Essa rejeição pela reforma não acontecia em virtude da manifestação de uma posição radical. Diz Ortega y Gasset que o mais moderado dos cidadãos conheceria o ostracismo no momento em que mencionasse a reforma, sendo esse o caso do político conservador espanhol Antonio Maura (1853-1925), que mesmo depois de alcançar altos cargos, foi relegado à periferia por crer que mesmo o argumento mais conservador deveria ser objeto de revisão na organização do Estado (1999:32). Havia uma verdadeira mesquinharia que se opunha à reforma do Estado e da universidade na Espanha, e os que as buscavam nesta última eram tidos "inimigos" dela, estigmatizados como "inimigos oficiais da universidade", inclusive pelo simples apoio às novas instituições, como a Casa do Estudante, que justamente tentava ajudá-la pelo estímulo ao pensamento (1999:33). No entanto, os que antes a criticavam, agora a aplaudem, no que Ortega y Gasset, apesar disso, crê de fato merecerem aplausos, relembrando o escárnio e insultos recebidos por aqueles que tinham uma preocupação verdadeira com a universidade espanhola, tentando modificar o seu estado melancólico, acéfalo, inerte, no que ela, então, já tinha mudado bastante, embora ainda distante do considerado ideal (1999:33).
Em momento de efervescência na vida política espanhola, Ortega y Gasset aduzia que fatos nada generosos calaram as críticas e convenceram os mais retrógrados que tanto o governo quanto a universidade necessitam de reformas (1999:33), no que já não cabia mais a discussão se havia a necessidade dela, sendo, sim, imperativo que se lutasse para tanto, pois nem Estado e universidade se mostravam em funcionamento: mostravam-se esgotados pelo uso e abuso (1999:34).
O filósofo espanhol lembra-se do momento oportuno que existia na Espanha para reformas ? onde até mesmo os mais resistentes haviam se resignado ? qualificando a oportunidade para a participação dos estudantes como uma "fortuna" (1999:34). Ortega y Gasset (1999:35) menciona o despertar de um povo adormecido por séculos, descrevendo o momento com o excerto do poema do nobre guerreiro espanhol Rodrigo (Ruy) Díaz de Vivar (1043-1099), "El Cid", do Século XI, fazendo referência ao nascimento do dia: Apriesa cantan los gallos y quieren crebar albores...
Para Ortega y Gasset não seria ainda a hora de unir nova fé e velho entusiasmo, pois nem sempre possibilidades se tornam em realidades concretas, no que seu otimismo se quebra (1999:35). Não basta potencial para a transformação, pois é preciso que alguém aja com suas mãos, cérebro e auto-sacrifício para a concretização ? história e vida representam uma criação permanente ? (1999: 35). O sentido da vida é dado continuamente pelas nossas ações, e em fluxo contínuo fazemos ações para nós mesmos (1999: 35-36). Essa assertiva é justificada por Ortega y Gasset por diversas passagens de Sancho Panza ? personagem de El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, de Miguel de Cervantes (1547-1616), no provérbio: se lhe dão a vaca, sua será a tarefa de segurar a corda, justificando ainda o próprio relaxamento da platéia que lhe escutava ? não retendo as palavras de sua fala ? que o ouvia como demonstração de tudo o que se pode fazer a si mesmo permanentemente (1999: 36).
A profunda reforma do Estado e da universidade espanhola não seria feita por um "grande homem", mas sim por pessoas dotadas das qualidades necessárias, no que Ortega y Gasset mostrava dúvidas, não crendo que naquele momento existisse tal grupo (1999: 36-37). O seu discurso era feito, portanto, com um único objetivo de contribuir para o surgimento desse grupo (1999: 37).
O filósofo espanhol mencionava o possível paradoxo de se admitir a viabilidade do momento histórico para as reformas e a ausência de um grupo capaz de efetuá-las, no que acrescenta a falta de vontade para tanto, tudo dependendo de se compreender o sentido dessa palavra que parece ser fácil, mas se torna difícil em um sentido verdadeiro (1999: 37-38).
A decisão implica em outra sobre coisas intermediárias, nos aparelhamentos necessários, sem o que, não se trata de uma decisão real, e aí sim ser necessário exaurir força, efervescência e entusiasmo (1999: 38). Diz ele, criando uma mistura de paixão fria e serena,
na Filosofia Universal da História, Hegel assegura que, sem sombra de dúvida a paixão é responsável por todas as realizações significativas da história ? mas, não se esquece de qualificar paixão moderada (...)
Justamente esse tipo de sentimento que Ortega y Gasset não vê na Espanha da época de sua fala, no que nomeia o relaxamento como a fonte dos problemas espanhóis, tanto nos problemas da universidade como nos do Estado (1999: 39). Invadindo a vida da nação de alto a baixo, o Estado permite que em certas ocasiões, o cidadão deixe de obedecer a lei, sendo que ele mesmo, através de leis fraudulentas, engana o cidadão (1999: 39-40). Definindo o relaxamento como uma enfermidade que atingiu a Espanha, ele menciona exemplos de aplicação escusa das leis (1999: 40). Define essa conduta como inferior (pior) a de um crime, uma falta de decoro, de auto-respeito, de toda a sua decência (1999: 40-41).
Diferentemente dos crimes ? que segundo ele não são o mais sério problema espanhol ? o relaxamento vem de forma confortável, tendendo a se espalhar e a perpetuar, alcançando o Estado e seus atos oficiais, a vida familiar a as próprias expressões dos indivíduos (1999: 41). Nas universidades o relaxamento é tão grande, que essa atmosfera chega a sufocar, no que Ortega y Gasset lembra que chegou até precisar trabalhar fora do prédio da universidade, tamanha a gritaria dos alunos (1999: 41 e 123, nota nº 2).
Para alcançar um conceito claro do necessário, é preciso considerar o seu oposto e antítese, no que Ortega y Gasset conclama o conceito de "estar em forma" (1999: 42). E para chegar à forma não se pode ser indiferente a nada, o espírito deverá ser um instrumento de busca, não se deixando levar por dissipações, pois o relaxamento é a própria auto-indulgência, refletida em expressões como "esqueça", "é tudo o mesmo", "mais ou menos", "e daí?" (1999: 42-43).
Assim como indivíduos, os grupos podem estar também fora de forma, onde só alcançaram sucesso na história as coletividades que alcançaram a "forma", isto é, mostrando-se compactas, organizadas, sem risco de traição e sem perder o equilíbrio, no que ele cita o abade napolitano Fernando Galiani (1728-1787), que diagnosticou a boa forma da Ordem dos Jesuítas no Século XVIII, mencionando: "é como se fosse uma espada, cujo cabo estivesse em Roma e a ponta em todos os lugares" (1999: 43). A forma não pode ser adquirida senão através da auto-disciplina, necessitando de clareza com relação aos seus objetivos (1999: 43). Diz Ortega y Gasset, provavelmente localizando sua fala com a ditadura de Primo de Rivera (1999:44):
É obvio, à medida que o relaxamento se identifica com a raiz do mal, que se a reforma se mostrar, ela mesma, relaxada, não promoverá melhoramentos apreciáveis. Vocês testemunharam um esforço petulante para reformar o país; esforço desenvolvido por um grupo de pessoas que não se dedicou sequer um minuto de reflexão ao problema crucial: primeiro equipar-se com os instrumentos minimamente necessários. Tal tem sido a Ditadura. Tudo que ela alcançou, apesar da extraordinária popularidade que obteve foi levar nosso relaxamento nacional ao ponto da loucura.
Ortega y Gasset supõe estar sendo compreendido neste momento, não desaconselhando que se tome parte na vida pública espanhola ou na insistência de reforma na universidade (1999:44); ele conclama que essas tarefas, de fato, sejam feitas, porém, em forma, visto que de outra forma, sem o preparo necessário, já será possível saber com segurança sobre o futuro (1999:44).
O trabalho nos assuntos públicos representa a capacidade de influência na massa, e se não houver a constituição de um corpo poderoso e articulado ? a mecânica da história ? que ele julgava idêntica às leis da física (eis aqui a importância dessa ciência em suas formulações e filosofia) a pequena massa informe será destruída pela massa mais numerosa (1999:44-45).
Para influenciar a massa é preciso que o grupo esteja em forma, dela se diferenciando, sendo verdadeira força viva, no que, no alto de sua palestra, o filósofo espanhol desafia seu público, afirmando não ter fé justamente por não ver na platéia pessoas com determinação de ficar em forma (1999:45).
Diferentemente do que geralmente se supõe Ortega y Gasset acredita em avanços históricos através de saltos, e não necessariamente através de processos graduais, na medida em que este foi um equívoco do Século XIX, que depositava a sua fé no modelo de gradativa evolução que prepararia o terreno para os acontecimentos históricos (1999:45). Afirma ele:
Nesse sentido, foi uma surpresa quando os fatos mostraram, de modo claro e inegável, que na biologia e no mundo espiritual, realidades espontâneas podem emergir repentinamente e, em alguma medida, sem nenhuma preparação (1999:45).
E ele tenta comprovar seu argumento citando a avançada e clássica civilização egípcia, possuidora das intrigantes pirâmides, que não tendo predecessores, trouxe perplexidade aos historiadores no Século XIX, onde esse povo do Vale do Nilo surgiu justamente nos primórdios dos tempos históricos (1999:46). Através de escavações arqueológicas descobriram-se no local das próprias pirâmides resquícios de uma cultura menos perfeita, neolítica que avançou de forma a se progredir da pedra lascada à pedra clássica (1999: 46). É aí que a história supera grandes distâncias, gerações, onde há o desafio de uma geração em forma que pode realizar séculos de uma época sem forma (1999:46).
5. A segunda palestra (II): A Questão Fundamental.
Ortega y Gasset, provocativo, inicia sua fala reclamando do "Paraninfo" (salão existente para atos solenes em universidades e outros estabelecimentos de ensino) ? sem acústica para conferência interior ? onde a exposição "o caráter da reforma" não foi desenvolvida na íntegra, pois, inclusive, realizada em local de amarga tristeza ? como uma capela abandonada ? onde o orador teve a voz assassinada (1999: 47). Ele clama por se ouvir e menos por gritar, onde a fonação é diferente de falar (1999: 47). E, nos discursos ? "peroras" ?, lembra-se do grito de Davi diante de Golias e no ouvido do auditório, comparando-os como conseqüente perda de tempo (1999: 47-48).
"Pelos microfones ausentes", o filósofo espanhol não deseja que seu discurso se torne claudicante a despeito da conquista de atitude e ânimo dos estudantes para uma efetiva reforma universitária (1999:48), aduzindo que esta não fique restrita à correção de abusos, mas que, em "reforma", concebam-se para a instituição universitária novos usos (1999:49).
Sobre os abusos, ele diz que estes costumam ter pouca importância, sendo de duas ordens: primeiro, o abuso isolado e pouco freqüente ? corrigidos de maneira automática ?, e o segundo, persistente ? consuetudinário, e o que é mais grave, tolerado, não devendo diante disso ser chamado de "abuso" ?, sendo tarefa inútil tentar retificá-los, pois sua freqüência e simplicidade indicam que não se trata de anomalias, mas sim de resultado inevitável dos usos que são ruins. Será necessário ir contra estes e não contra os abusos (1999:49).
Da mesma maneira, a tentativa de correção de abusos grosseiros redundam em reformas grosseiras, no que então, deva se dar importância aos usos, sabendo-se quais são os adequados, que até suporta alguns abusos, a exemplo do homem saudável que agüenta alguns exageros (1999:49). Porém, se uma instituição não tem bons usos, não pode se adequar ao rigor de sua missão (1999:49-50).
A reforma universitária dar-se-á na adequação de sua missão, no que se requer clareza, determinação, autenticidade e veracidade, sem falsificação de seus ideais e de seu inexorável destino por nossos desejos arbitrários; sem isso, nada seria conseguido individual ou coletivamente, citando inclusive os projetos elaborados ao longo dos anos pelo Conselho Universitário (1999:50). As tentativas dos últimos quinze anos ? sem falar das piores ?, optaram pelo caminho mais cômodo e estéril, "olhando de soslaio" para as ações nas universidades dos países considerados "modelos" (1999:51).
Ortega y Gasset não se opõe que se olhe para os países considerados modelo, até entendendo que isso é necessário, porém adverte (1999:51): mas sem que isso, depois, possa isentar-nos de decidir de maneira original nosso próprio destino (1999:51). Nesse pensamento, ele não quer ratificar um auto-caráter "castiço", de valorizar banalidades, reconhecendo que homens e países são distintos, no que uma imitação seria funesta ao iludirmos o esforço criador na compreensão de um verdadeiro significado, limites e imperfeições daquilo que se copia, e nisso a própria experiência espanhola seria importante, os próprios espanhóis é que deveriam ? após a luta ? encontrar as suas conclusões (1999:51).
Com uma possível ironia e grande vigor, a palavra de Ortega y Gasset (1999:51-52):
Errôneo raciocínio dos grandes: a vida na Inglaterra tem sido, e ainda é, uma maravilha; logo as instituições inglesas de ensino de 2º grau têm de ser exemplares, porque delas adveio aquela vida. A ciência alemã é um prodígio; logo a universidade alemã é uma instituição-modelo, porquanto engendra aquela. Imitemos, pois, as instituições inglesas e o ensino superior alemão.
É como se houvesse um erro em seqüência desde o Século XIX, onde os ingleses derrotam Napoleão I na Batalha de Waterloo, Bélgica, em 15 de junho de 1815, nos jardins de infância de Eton (College), em Berkshire, e Otto von Bismarck (1815-1898) aplasta ou desfralda Napoleão III em vitória do "mestre-escola" da Prússia e do professor alemão na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) (1999:52). As nações não são "grandes" porque suas escolas ? primária, secundária e superior ? são boas (1999:52); isso seria um erro fundamental, pois à instituição escolar não pode ser atribuída força criadora histórica, no que pensar dessa forma é insistir em uma "beatice idealista" típica deste Século XIX, com seus exageros, mitologizações (1999:52).
O filósofo espanhol traz à tona um turbilhão de idéias, e quase em sentido heterodoxo, afirma que quando se tem uma nação grande, por certo, sua escola também o é, não existindo esta grande nação se a escola não for boa, acrescentando nesse argumento a religião da nação, da política, da economia e das outras milhares de coisas dela (1999:52):
A força de uma nação se faz integralmente. Se um país for politicamente vil, será em vão esperar qualquer coisa de sua escola mais perfeita. Sobra apenas, então, a escola das minorias que vivem à parte e contra o resto do país. Um dia, talvez, os educados nesta influam por completo na vida de seu país e através de sua totalidade consigam que a escola nacional (e não a excepcional) seja boa (1999:53).
A escola, como instituição do país, é mais dependente da atmosfera pública do que da artificial esfera pedagógica de seu entorno, havendo a necessidade de equacionar essas pressões para que seja boa (1999:53). A apreciação focada na vida inglesa e no pensamento alemão ? que tentaram ser transplantados ? confundiu a apreciação e diagnóstico sobre as instituições espanholas (1999:53). Não é possível, porém, transpor essa vida ou esse pensamento, mas tão-somente as instituições pedagógicas e o que estas são por si sós, retirando as virtudes ambientais e gerais ali existentes (1999:53-54).
Em tentativa, então, de derrubar os mitos, usando adjetivações fortes, Ortega y Gasset afirma que seria pouca coisa a ciência da Alemanha se esta tivesse que nascer das virtudes institucionais de sua universidade (1999:54). Aduz a existência de um "ar livre" arejando a alma alemã, trazendo consigo estímulos e qualidades para a ciência e sendo capaz de suprir as imperfeições da sua própria universidade (1999:54).
Ainda assim, da mesma forma, enquanto instituição, o filósofo espanhol entende que a universidade alemã é algo "bem mais deplorável", e, mesmo afirmando não conhecer com profundidade o ensino secundário inglês, entende-o carregado de defeitos, no que conclui ambos ? modelo alemão e inglês ? estarem em crise, no que seria corroborado pela radical crítica de Karl Heinrich Becker (1876-1933), ministro prussiano de Instrução Pública após a instauração da República, tornando o tema, a partir de então, uma questão de permanente debate (1999:54).
O editor da obra lembra que nessa passagem da fala de Ortega y Gasset provavelmente houve a interrupção dos estudantes (1999:54). E, na nota nº 16 ? como também salientado pelo editor (1999:126, nota nº 16) ?, no bojo desse processo, paralelamente a este trecho supostamente interrompido pelos estudantes, o filósofo espanhol fala do papel preponderante destes na instituição universitária, afirmando ser a universidade a "casa dos estudantes" ? de forma que eles são os seus "donos imediatos" ?, sendo absurdo concebê-la como "casa do professor", nesta posição velando pela disciplina corporal com a "guarda suíça" dos bedéis (1999:126, nota nº 16). Os estudantes são, então, os donos da universidade, acrescidos institucionalmente aos membros da congregação (1999:126, nota nº 16). O turbilhão de idéias prossegue quando Ortega y Gasset visualiza essa disciplina corporal exigida pelos professores dando lugar a vergonhosas batalhas pondo de um lado titulares e seus assistentes e de outro a horda (sic) estudantil (1999:126, nota nº 16). Os estudantes não teriam culpa de tais eventos, sendo que a culpa é da instituição, que está mal estruturada (1999:126, nota nº 16). Devem, portanto, os alunos assegurar a ordem interna, o "decoro dos usos e meios" da universidade, responsabilizando-se por ela, impondo-lhe disciplina material (1999:126, nota nº 16).
O filósofo prossegue o seu discurso com a afirmação que os melhores professores até podem estar atualizados em suas ciências, mas no todo, vivem quinze ou vinte anos atrasados, sendo o atraso daqueles que não são autênticos e portadores das próprias convicções (1999:55). Esse atraso não seria casual, pois a criação histórica, vinda de certo espírito ou modalidade da mente dos homens, é inerente a cada geração, em conceito que o editor esclarece ter sido elaborado na obra El tema de nuostro tiempo (1999:55). Os meros seguidores das idéias de uma geração ? os povos que assim o fazem, portadores de inexorável destino ou sem autenticidade ?, então, devem aguardar a conclusão da elaboração do pensamento e das idéias daquela que copiam, sucedendo-se, porém, a decadência desse pensamento e o surgimento de outro conjunto de formulações, em um processo que o estabelecimento da vitória dessa geração duraria quinze anos e com vigência por outro igual período, fazendo com que os copiadores fiquem perdidos e ultrapassados entre um período e outro (1999:55).
Então é preciso buscar a informação no estrangeiro, no entanto, não o modelo, no que permanece a questão central de toda a palestra de Ortega y Gasset (1999:56): qual é a missão da universidade?
Para a resposta dessa questão, José Ortega y Gasset lembra ser necessário investigar o que era naquele momento a universidade dentro e fora da Espanha, aduzindo haver uma fisionomia homogênea entre as diversas existentes na Europa (1999:56). O educador espanhol ressalta, porém, a discrepância que se faz nessa análise, entendendo haver exagero nas apontadas diferenças entre as universidades continentais e as inglesas (1999:123, nota nº 03). Haveria, sim, um caráter muito peculiar nas instituições inglesas, devendo a análise se ater aos órgãos universitários, e não ao grau de realização, que apresenta diferenças (1999:123, nota nº 03). Criticando o modelo universitário inglês, Ortega y Gasset menciona a existência de uma tenacidade conservadora entre os britânicos capaz de manter as aparências, não obstante a presença de um quadro de extemporanismo, em uma vida universitária equivalente a uma ficção, alimentada pela cultura inglesa (1999:123, nota nº 03). No entanto, com respeito aos ingleses e sua refinada ironia, estes mantém uma instituição que
conserva o aspecto não-profissional de suas universidades e a peruca de seus magistrados não é porque se obstine em achar atuais aquele e esta, mas, muito ao contrário, porque são coisas antiquadas, passado e superfluidade. No caso inverso não seriam o luxo, o esporte, a tradição e outras coisas mais profundas que o inglês busca nessas aparências. No entanto, procura, sim, sob a peruca, emanar a justiça mais moderna, assim como quanto ao aspecto não-profissional, a universidade inglesa tornou-se nos últimos quarenta anos tão profissional quanto qualquer outra (1999:123-124, nota nº 03).
Segundo Ortega y Gasset, o inglês tem um conceito distinto de "público" que o resto do Continente Europeu, no que acrescenta que as universidades da Inglaterra não são estatais (1999:124, nota nº 03). Porém, as diferenças entre as universidades dos diversos países não são de cunho universitário como propriamente as vistas nesses mesmos países, além do que se viu uma homogeneização e convergências delas naqueles últimos cinqüenta anos (1999:124, nota nº 03).
Supõe-se então que seja a universidade a instituição que se dedique a ensinar a quase todos em seu país que recebam instrução superior, havendo, contudo, as escolas especiais, um problema a parte (1999:56). Todavia, há uma limitação mais importante na universidade que nas escolas especiais, pois nem todos os que recebem a instrução superior são os que podiam ou deveriam tê-las, de maneira que isso só ocorreria por serem estes estudantes oriundos das classes mais abastadas (1999:56-57).
A universidade se trata de um privilégio de difícil justificação e sustentação (1999:57); veja-se a questão de se levar o operário à universidade: se se cogita de fazê-lo é porque esses conhecimentos são valiosos, desejáveis (1999:57). Universalizar a universidade implica, em primeiro lugar, em determinar o que sejam estes conhecimentos e ensino de natureza universitária, e, em segundo, quase uma questão de Estado, a tarefa de tornar a Universidade permeável ao operário é uma questão em parcelas mínimas da Universidade (1999:57). Apenas uma reforma do Estado possibilitaria a reforma da universidade, havendo o fracasso das tentativas feitas, a exemplo do que era visto na "extensão universitária" (1999:57).
Pensar o ensino universitário a uma grande quantidade de alunos no futuro é concebê-lo no ensino de profissões de natureza intelectual, na pesquisa científica e na formação dos pesquisadores (1999:57-58).
Além do ensino de profissões, na universidade cultiva-se a própria ciência, ensinando-se e pesquisando-se nesse sentido, muito embora haja um mínimo de cientistas, não por culpa da universidade que supõe entender não ser esta a sua missão, mas em virtude da notória falta de vocação e qualidade científica que acometeria a "raça" espanhola (1999:58). Nos demais países, a produção da ciência ocorre fundamentalmente nas universidades, e esse quadro seria o motivo do atraso espanhol, visto que quando há algo em desenvolvimento nos demais Estados, paralelamente na Espanha, a discussão apresenta-se em fase embrionária, germinal (1999:58).
Em sua proposta de universidade, Ortega y Gasset ? mesmo sabendo de objeções ou considerações contrárias que entendia eivadas de má-fé ?, não se atém às diferenças de nível entre elas, reconhecendo um esforço que estava sendo feito no intuito de aumentar a pesquisa e a tarefa educadora de cientistas na Espanha, reconhecendo igualmente o esforço de professores de seu país em emparelhar-se com as melhores instituições universitárias do mundo (1999:58-59).
Ora, o ensino superior para o educador espanhol, requer profissionalismo e pesquisa, sendo tarefas muito díspares ser profissional de mercado ? médico, advogado, por exemplo, ou mesmo professor de escola secundária, professor de história ? de um pensador, de ser um jurista, fisiólogo, historiador, que não são profissões práticas, mas exercícios de natureza científica (1999:59). Não nega ele que a sociedade prescinda de muitos profissionais na contrapartida de necessitar de poucos cientistas (ainda que naquele momento, um número maior fosse preciso) (1999:59 e 124, nota nº 04). Necessitar de muitos cientistas seria algo catastrófico, pois a vocação para a ciência é um atributo especial, infreqüente, no que se deduz que o ensino profissionalizante é para todos, mas a pesquisa não, ficando para poucos (1999:59-60).
Em seguida, Ortega y Gasset questiona se o ensino superior é apenas profissionalismo e pesquisa, no que a resposta não deve ser dada a luz de uma abordagem de primeiro momento, sendo necessário investigar com maior profundidade os planos de ensino, que mostram a exigência da aprendizagem profissional do estudante e dos que atuam em pesquisa a exigência de assistência a um curso e natureza geral, em exemplo de filosofia e história (1999:60). Isso ? tanto em biologia quanto em história ?, é um resíduo, um coto, um triste resto de algo de maior vulto, no que ele exemplifica sua idéia com o hábito do cumprimento, do aperto de mãos, onde, em idéia quase hobbesiana, supõe-se que todos se temam, em ambiente de falta de segurança (1999:60 e 124, nota nº 05). Assim, os homens se apertam as mãos de forma concomitante ? utilizando a mão que causa a morte, geralmente a direita ? afastando o instrumento de perigo, em hábito que visto de forma isolada, se nos parece incompreensível, sendo um resíduo (1999:60 e 124, nota nº 05). Portanto, se justifica aquele resíduo como necessidade do estudante receber "cultural geral" (1999:60).
Ortega y Gasset insurge-se contra a expressão "cultural geral", acusando nela um gigantismo, filisteísmo, insinceridade, onde "cultural", não pode ser outra coisa senão algo geral e ministrado aos humanos (1999:60-61). Não se é "culto" em física ou matemática ? o que é ser conhecedor de uma única matéria ?, no que o uso que se dava à "cultura geral" era um conhecimento ornamental (uma "perfumaria", como os estudantes hoje dizem em relação aos conhecimentos desnecessários em sua formação?), de propósito vago, no que vale tanto uma disciplina menos técnica e mais morosa inseridas em um suposto viés de história ou sociologia (1999:61).
Se for feito um olhar à Idade Média, época que a universidade foi criada descobrir-se-á o seu resíduo atual: a humilde sobrevivência do que então constituía, integral e propriamente, o ensino superior (1999:61).
Embora houvesse alguma pesquisa na Idade Média, a universidade medieval não as realizava e dedicava-se pouco à profissão, atendo-se ao conceito reduzido de "cultural geral", englobando "artes", teologia, filosofia (1999:61 e 125, nota nº 06). Entretanto, o que se chama de "cultural geral" no momento em que Ortega y Gasset escreve não o é para a Idade Média, pois não se tratava de uma idéia para moldar o caráter, sendo, sim, um sistema de compreensão sobre o mundo e a humanidade visíveis para o homem da época e por eles possuídos, representados em seu repertório de convicções que norteavam a sua existência (1999:61).
Diante das dificuldades da vida ? uma verdadeira selvageria ? onde o homem está perdido, com a mente tentando reagir em face da sensação de perda e de naufrágio, é preciso encontrar caminhos, no que é lembrado no limiar de todas as culturas um termo que expressa "caminho" ? o hodós e méthodos dos gregos; tao e te, dos chineses; atalho e veículo, dos indianos ?, sendo necessário ao homem buscar idéias claras sobre as coisas, o mundo, o universo, buscando o conjunto, o sistema, que traduzirá a cultura em seu verdadeiro sentido (1999:62 e 125, nota nº 07). O contrário disso é mero ornamento, pois é a cultura que salvará do naufrágio, proporcionando aos homens a possibilidade de viverem sem que sua existência se configure uma tragédia, uma trajetória sem sentido, um aviltamento radical (1999:62).
Não se pode viver como humano sem idéias, pois dela dependem aquilo que fazemos, e nisso consiste o viver, no que o educador resgata excerto de antigo livro da Índia: nossos atos acompanham nossos pensamentos tal como a roda da carroça acompanha a pata do boi, de maneira que somos as nossas idéias, muitas vezes anti-intelectualistas, como Ortega y Gasset afirma serem as suas e, de uma maneira em geral, as do tempo em que vivia (1999:63 e 125, nota nº 08).
Vivendo sua vida em determinada época, é instado o homem a exercitá-la no estágio da evolução dos destinos humanos, pertencendo à sua geração, que não se instala em qualquer lugar, mas precisamente em cima da geração anterior, à altura dos tempos e das idéias deles, em conceito que ele trabalha na obra La rebelión de las masas (1999:62-63 e 125, nota nº 09).
Após essas considerações, finalmente José Ortega y Gasset cunha o seu conceito de cultura (1999:63):
é o sistema vital de idéias em cada época. Importa muito pouco que essas idéias ou convicções não sejam, nem em parte, nem totalmente, científicas. Cultura não é ciência. É traço de nossa cultura atual que grande parcela de seu conteúdo proceda da ciência; mas em outras culturas não foi assim, nem está escrito que na nossa o seja sempre na mesma medida de agora.
Comparando a universidade contemporânea com a medieval, a primeira complicou a tarefa desta, que, de forma embrionária, ministrava o ensino profissional, lhe acrescentando a pesquisa e retirando quase por completo o ensino ou transmissão da cultura, adjetivando o filósofo espanhol essas conseqüências de atrozes, funestas, catastróficas (1999:63).
Esse caráter catastrófico aparece agora na Europa, devendo-se no inglês inculto médio, o francês e alemão médios, não possuidores do sistema vital de idéias sobre o homem de seu tempo e sobre o mundo, sendo esse médio o "novo bárbaro", atrasado em sua época, arcaico, primitivo em face dos terríveis problemas que vivencia em sua experiência história (1999:63-64). Este novo bárbaro é o profissional, mais sábio do que nunca, porém, mais inculto também ? o engenheiro, o médico, o advogado, o cientista, como decreta Ortega y Gasset (1999:63-64).
Por oportuno, dissertando acerca dos currículos José dos Santos Camilo Filho (s/d:54) nos anota que no Brasil e América Latina, relegando a formação geral ao ensino médio, prevaleceu a tradição universitária de inspiração napoleônica oriunda do modelo profissionalizante francês, sem espaço para a formação cultural (s/d:54). No influxo das reformas universitárias dos anos 1960, surgem algumas tentativas de introdução de um primeiro ciclo de estudos gerais e básicos de relativo sucesso na América Latina, sobretudo pela influência das universidades norte-americanas e de brasileiros que com ela mantiveram contato (s/d:54). No âmbito brasileiro, porém, como tentativa de rejeição da invasão cultural dos Estados Unidos da América (EUA), o debate sobre uma idéia potencialmente relevante ficou restrito à rejeição do imperialismo, de maneira que até os dias atuais o debate entre as duas culturas, a saber, a da especialização acadêmica ou profissional e a de uma formação cultural geral, não ocorrera com a devida e merecida profundidade, como nos EUA e demais países (s/d:54-55). Assim, estudantes de áreas como engenharia, medicina ou de ciências exatas ou biológicas concluem a graduação sem freqüência em disciplinas das ciências humanas e sociais ou humanidades, podendo acontecer o mesmo com os graduados de ciências humanas e sociais e humanidades face às ciências da natureza e as biológicas (s/d:55). Lembra José Camilo dos Santos Filho ?, com apoio no La rebelión de las masas ? (s/d:55) que
Em ambos os casos, estão sendo treinados "bárbaros" especialistas, como diagnosticou Ortega y Gasset, ignorantes e analfabetos sobre importantes ramos do conhecimento humano que fazem parte da cultura moderna ocidental que é profundamente científica e tecnológica. O diálogo mais denso entre as duas culturas só será possível com a superação desse fosso (s/d:54).
A culpa desse barbarismo, então, salienta o próprio Ortega y Gasset, é das pretensiosas universidades do Século XIX, de maneira que, se fossem arrasadas em uma revolução, no haveria razão para queixas (1999:64). Elas ainda não são absolvidas com o desenvolvimento proporcionado à ciência, no que é preciso ter que considerar que ela ? a ciência ? é o maior portento humano, a maior maravilha do homem, subordinando-se, então, à vida humana que a torna possível, sendo, portanto, incompensável atentar-se contra esta (1999:64).
Trata-se de mal tão grande que o filósofo espanhol acreditava ser difícil que as gerações anteriores àquelas que naquele presente o ouviam pudessem compreender, no que ele resgata o filósofo chinês taoísta do Século IV a. C. Chuang Tse (ou Chuang Tzu), clamando por um "Deus do Mar do Norte":
como poderei falar do mar com a rã, se ela não saiu de seu brejo? Como poderei falar do gelo com o pássaro, se ele está retido em sua estação? Como poderei falar com o sábio acerca da Vida, se ele é prisioneiro de sua doutrina? (1999:64-65)
E novamente adentrando ao tema relativo das missões da universidade, o educador espanhol lembra-se da necessidade de se formar bons profissionais ? bons juízes, médicos, engenheiros ?, tendo elas esse destino profissional, mas sendo igualmente necessário criar lideranças, formar na arte de "mandar", pois em toda a sociedade um grupo manda, domina (1999:65). Recordando que a tarefa de comando está concentrada nas classes burguesas em que seus membros são, em maioria, profissionais, essa tarefa de mandar não se refere ao exercício jurídico de uma autoridade ou pressão/ influência sobre o corpo social, mas diz respeito às esses profissionais, a par de suas peculiares profissões, para que possam ser capazes de viver e influir fundamental e vitalmente, em consonância com o tempo, no que é necessário a universidade ministrar a cultura ou o sistema de idéias vivas desse tempo (1999:65). Ortega y Gasset, que em libelo, afirma que é o que tem de ser, de antemão e mais do que qualquer outra coisa, a Universidade (1999:65).
Defendendo o ensino universitário para os trabalhadores, o mesmo valeria se no futuro, os que mandarem for os operários ? no que lembra o espanhol que estes já mandam, subvencionando com os burgueses ?, devendo praticar essa ação de mando de forma que seja compatível e à altura de seu tempo, pois, do contrário, serão "suplantados" (1999:66 e 125, nota nº 11).
Ortega y Gasset entendia que as coisas iam mal à Europa, e, não à toa, outorgavam-se diplomas profissionais de médico ou magistrado sem que se tivesse a certeza que os formados eram portadores da maravilha da concepção física e dos espetaculares avanços da ciência (1999:66). Sendo grave, a situação não poderia ser tratada com eufemismos, de maneira que não deveria se tratar dos desejos de uma vaga cultura, e, sim, de ensinar a física e seu processo mental, tidas como uma das grandes roldanas inseparáveis da alma humana contemporânea (1999:66).
Lembra Luís Miguel Bernardo (2010) que a idéia de cultura de Ortega y Gasset era deveras abrangente, incluindo as idéias da história, filosofia e da ciência da vida, justamente as idéias da física. E nesse sentido, o filósofo espanhol proclama que na física desembocam quatro séculos de treinamento do intelecto humano, estando a sua doutrina mesclada a todas às coisas essenciais do homem, incluindo a sua noção de Deus, sociedade, matéria e do que não é matéria (1999:66). Ele prossegue afirmando que é possível até ignorá-la ? sem que isso seja uma ignomínia, um desdouro ou defeito, se se trata de um pastor ou lavrador preso à terra; inconcebível, porém, para o cavalheiro que quer ser médico, magistrado, general, filósofo ou bispo, melhor dizendo, sendo parte da classe dirigente, que não pode ignorar o que é hoje o cosmos físico para o homem europeu, ele é um perfeito bárbaro, por mais que conheça suas leis ou seus componentes, ou seus tantos pais (1999:67). E assim o serão aqueles que não possuírem uma imagem ordenada dos processos e mudanças históricas que trouxeram a humanidade para a encruzilhada em que se vive, sendo enfático:
Assim como de quem não tiver qualquer idéia precisa a respeito de como a mente filosófica encara, agora, seu ensaio permanente de formar um plano do Universo ou da interpretação que a biologia geral dá aos fatos fundamentais da vida orgânica (1999:67).
A questão não se confunde em, por exemplo, ser um bom advogado sem formação em matemática, compreendendo a atual física; trata-se, sim, de perceber, com honestidade mental, que aqueles que não possuem uma noção física ? a noção vital do mundo criado por ela ?, os que não detiverem a noção histórica, biológica ? esse repertório filosófico ?, não poderão ser homens cultos (1999:67). Não terão qualidades espontâneas, no que, então, não serão bons profissionais, um bom médico, um bom advogado, um bom juiz, um bom técnico (1999:67-68). Tudo o que transcender o estrito ofício, além das demais atividades da vida, tornar-se-á deploráveis, as idéias e atos políticos ineptos, a mulher que escolher... Esses atos estarão eivados do ridículo, do extemporâneo, o ambiente familiar será terrível, o momento ou tertúlia do café o momento para a exteriorização de pensamentos sem fim, monstruosos e grosseiros (1999:68).
A vida não tem outro caminho senão o do homem culto (1999:68). A selva da vida exige conhecimento de sua topografia, de seus "métodos", de seu espaço, de seu tempo, com uma noção e idéia do espaço em que se vive, com uma cultura atualizada (1999:68). Essa cultura é recebida ou inventada, e aquele que for capaz ? ele sozinho ? de fazer por si próprio tudo o que foi feito por trinta séculos de humanidade será o único a poder ter o direito de negar a necessidade de a universidade ser a instituição capaz de transmitir cultura (1999:68). E o educador espanhol desafia esse autodidata (1999:68), afirmando que seria este demente o único, com fundamento, capaz de se opor à sua tese...
Segundo Ortega y Gasset, foi no Século XX que se encontrou então o "bárbaro", aquele dono do "espetáculo" ? de "peculiaríssima e agressiva brutalidade" ? de saber muito sobre alguma coisa, e sobre o tudo ou demais basicamente não saber nada, no que ele faz referência ao capítulo intitulado "A barbárie do especialismo", de sua obra La rebelión de las masas (1999:69 e 125, nota nº 12). Barbarismo e especialismo, quando não devidamente compensados, fizeram o homem europeu em pedaços, colocando-o ausente dos locais onde necessitaria estar:
No engenheiro está a engenharia, que é apenas um pedaço e uma parcela: este, porém, que é um integrum, não se encontra em seu fragmento "engenheiro". E assim em todos os demais casos (...) (1999:69).
Antes parecendo uma maneira barroca e exagerada, uma verdade: a "Europa está feita em pedaços", refletindo a fragmentação do homem europeu, em um processo cujas etapas se puderam verificar nas três gerações do Século XIX e na primeira do Século XX, momento em que escrevia Ortega e Gasset (1999:69 e 125 nota nº 13). Estar-se-ia, então, em um quebra-cabeças de membros diversos ? disjecta membra ?, donde urgia reconstruir com os pedaços espalhados a unidade vital do homem europeu, e sem utopismos, crer que cada um pudesse personificar por si o homem inteiro, sendo tão-somente a universidade a instituição capaz dessa tarefa (1999:69-70).
Esse é o remédio, inescusável e ingente, a ser agregado às universidades hoje (1999:70). De maneira visionária, Ortega y Gasset pregava que o ensino superior, primordialmente, deveria ser ensino de cultura ou transmissão para as novas gerações da visão de mundo¸ do sistema de idéias sobre ele e do homem que buscou a maturidade na geração anterior, devendo então, integrar em suas tarefas as seguintes funções: 1) Transmissão da cultura; 2) Ensino das profissões; 3) Pesquisa científica e formação de novos homens de ciência (1999:70).
O filósofo espanhol, ainda assim, tem consciência de não ter respondido a pergunta sobre a missão da universidade, rememorando a tarefa pouco produtiva de elaboração de meras questões, lamentando que não se tivesse feito outra coisa senão reunir-se uma pilha desorganizada de coisas com as quais a universidade deveria ocupar seu tempo e aquelas que achamos que deveria fazer (1999:70-71).
Ele qualifica como vã ou subalterna a discussão entre o filósofo Max Scheler (1874-1928) e o ministro prussiano Becker, em que debatiam se essas funções deveriam ser feitas por uma ou várias instituições (1999:71). Ora, gravitando em torno da juventude do estudante, essas instituições concentram-se nele, de maneira que a questão seria outra, uma vez que mesmo reduzindo o ensino ao profissionalismo e a pesquisa, proporciona quantidade enorme de estudos impossibilitando o educando médio de aprender o que a universidade deseja ensinar-lhe (1999:71). Essas instituições só existem porque existe o homem médio, e provavelmente não existiriam ? inclusive instituições pedagógicas e poder público ? se somente houvesse seres excepcionais (1999:71). Ele lembra que o anarquismo se coloca como lógico ao pugnar a inutilidade e, em conseqüência, perniciosidade das instituições, visto que o homem como nativitate excepcional, seria bom, inteligente e justo (1999:71 e 125, nota nº 140). Toda instituição, então, é feita para o homem médio, tendo este como unidade de peso e medida (1999:71).
Ortega y Gasset traz a suposição de, por um momento, não haver abusos na universidade, mas critica a de sua época dizendo que ela está sendo falsa e capaz de praticar um "puro e constitucional abuso" (1999:72). Afinal, a vida universitária aceitou o fracasso do estudante médio em não aprender verdadeiramente o que lhe foi ensinado: diante do que a universidade pretendeu ser, foi um ensino irreal, e uma vida institucional falsa que faz da falsificação a essência da instituição (1999:72). O "pecado original" é não ser automaticamente o que se é, residindo aí a raiz de todos os males (1999:72). Até se é possível cogitar ser alguma coisa, ou o que quisermos, mas não é lícito fingir o que não somos, mentindo para si próprios, onde, havendo um sistema fictício, dele brota um onímodo desmoralizador (1999:72). Um aviltamento, que representa a impossibilidade de conceber a falsificação sem que antes se perca o respeito por si mesmo, no que resgata Leonardo da Vinci (1452-1519): chi no può quel che vuol, quel che può voglia ("aquele que não pode o que quer, que queira o que pode") (1999:72-73).
A reforma universitária tem que pautar nesse sentido, sendo o que estritamente se é (1999:73). E não somente ela, mas a reforma de toda vida tem que ser feita com autenticidade ? advertindo Ortega y Gasset os jovens que o ouviam ?, pois do contrário, estariam perdidos (1999:73). A instituição que fingir e exigir dar o que não pode é falsa e desmoralizada, muito embora essa ficção inspire e estruture a universidade do tempo de sua época, segundo o filósofo espanhol (1999:73).
Pois bem: Ortega y Gasset coloca como inevitável reformar radicalmente a universidade, fugindo das utopias, não ensinando o que deveria, mas apenas o que se pode ensinar e o que se pode aprender, refletindo um problema de maior amplitude que o do próprio ensino superior, alcançando todos os níveis de instrução (1999:73-74).
Ortega y Gasset relembra a história da pedagogia, com as "viradas geniais" de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), Friedrich Wilhelm August Fröbel (1782-1852) e o idealismo alemão que radicalizou algo tido como óbvio, mas não, por conseguinte, ridículo (1999:74). Para o educador espanhol, há três elementos na educação: 1) O saber, o conteúdo a ser lecionado; 2) O professor que ensina; 3) O discípulo que aprende (1999:74). O ensino saía do saber e do professor sem que se considerasse o discípulo ou o aprendiz enquanto princípio da pedagogia no que Rousseau e seus sucessores inovaram em deslocar o fundamento da ciência pedagógica para os alunos, a única coisa capaz de orientar para a construção de um organismo a partir da atividade de ensino (1999:74). Então, a atividade científica e o saber contam com sua própria organização, diferente do processo de ensinar o conhecimento, no que Ortega y Gasset decreta: o princípio da pedagogia é bem diferente do princípio da cultura e da ciência (1999:74).
E se propõe mais um passo: ao invés de se estudar minuciosamente o discípulo como criança ou jovem, é preciso fechar o tema em um objetivo mais modesto ? embora mais preciso ?, tendo a criança, o jovem, vale dizer, na condição de discípulo, de aprendiz, no que não se trata a criança como criança, nem jovem por ser jovem, mas conceber o que se entende por "ensino", por algo que traga consigo os elementos do formal e simples, que, então, serão demonstrados na terceira palestra (1999:74-75).
6. A terceira palestra (III): Princípio da Economia do Ensino.
Segundo Ortega y Gasset a economia política surge destroçada como a economia das nações que estiveram em guerra (1999:77). O processo de reconstrução costuma ser benéfico para as ciências por procurar princípios mais elementares e firmes (1999:77). O renascimento das cinzas dá-se de um simples raciocínio acaciano, onde a ciência econômica deve vir do princípio que estrutura a atividade econômica do homem (1999:77).
Os humanos praticam atos econômicos porque seus desejos não se realizam com absoluta prodigalidade; a demanda motiva as questões econômicas, de maneira que na falta de um bem, os homens trabalham para superação dessa necessidade (1999:78).
Exemplificando a sua argumentação com o ar, ele se lembra dos hotéis e sanatórios que oferecem ar puro, relembrando a simplicidade surpreendente do princípio da escassez enunciado pelo sueco Karl Gustav Cassel (1866-1945), significando, em parte, um retorno a alguns pontos da economia clássica diante dos vistos naqueles últimos sessenta anos (1999:78-79 e 125-126, nota nº 15). Resgatando Albert Einstein (1879-1955), "se existisse o movimento contínuo, não haveria física", recorda da fartura da região do Vale do Jauja no Peru (ou Vale do Mantaro), onde se supunha em face da fartura não haver ciência econômica (1999:79).
Diante dessa explicação, o educador espanhol supunha ocorrer o mesmo com as atividades docentes e a pedagogia onde, para essa compreensão os românticos mesclavam valores humanos e divinos (1999:79). Entretanto, apreciamos o que as coisas de fato são, na sua simplicidade reconhecendo a dureza e o rigor da vida, sem sofisticação do destino, sendo também, mesmo assim, magnífica (1999:79-80). Vida dura, vida magra ("tendão e nervo"), a exemplo do que queremos no nosso trato com as coisas, que desnudamos e lavamos em nosso olhar buscando vê-las como elas de fato são in puris naturalibus (1999:79-80).
A preocupação do homem com a educação advém de uma preocupação esmirrada e lamentável: desejando viver com acerto, firmeza e bem estar, sabe que é necessário aprender muitas coisas, ao passo que a criança e o jovem têm uma capacidade limitada de aprendizado (1999:80). Se a infância e juventude, cada uma, durassem cem anos, ou se os jovens tivessem memória, atenção e inteligência sem limites, não haveria necessidade de atividade docente e todas aquelas razões dos românticos seriam inoperantes para a constituição do "professor" (1999:80).
O princípio da instrução materializa-se na escassez, na limitação da capacidade de aprender, cuja medida é dada justamente no que não se pode aprender (1999:80).
Ortega y Gasset aponta que a atividade pedagógica entrou em erupção em meados do Século XVIII, mas que desde então voltou a crescer, justamente pela primeira grande colheita da cultura moderna aumentando os saberes humanos (1990:80-81). O novo capitalismo, donde imerge a vida, torna-a complicada, exigindo mais recursos (1999:81). O educador espanhol materializa o problema: em vista disso, de vez que se impunha saber muitas coisas, cujo número ultrapassava a capacidade de aprender, intensifica-se e amplia-se também, de imediato, a atividade pedagógica: o ensino. (1999:81).
Já nas épocas primitivas, quase não havia ensino e a capacidade de aprender em muito supera a matéria assimilável, disponível, sobrando capacidade (1999:81). O parco saber existente de então diz respeito aos rituais para afugentar os demônios, ou para a fabricação de alguns utensílios que qualquer um aprenderia (1999:81). Nos tempos primitivos, o ensino surge com um aspecto inverso ou de ocultar, sendo transmitido a uns poucos (1999:81-82).
Ortega y Gasset nesse ponto, demonstra a profusão educacional relacionada com a expansão do capitalismo e consolidação da revolução industrial, e o conhecimento estruturado enquanto instrumento de poder.
O segredo dos ritos técnicos, outrossim, sempre reaparece quando surge um supernovo tipo de saber, no que há a exemplificação na famosa sétima carta de Platão escrita apenas para protestar contra a acusação de ter repassado a sua filosofia para Dionísio de Siracusa (o Dionísio I) (1999:82).
A abundância de conhecimento também pode ser uma ameaça, pois se torna difícil às novas gerações alcançarem a sua absorção ? eis aí o princípio da economia do ensino ?, pois como aprendiz a criança ou o jovem não podem aprender tudo o que se lhes quer ensinar (1999:83). Porém, por nele não haver complicação, transcendentalidade ou melodramaticidade, o princípio só atuou na ação pedagógica de forma subsidiária pela força das coisas (1999:83).
Na Espanha ? e mais ainda fora dela ?, a universidade "é um bosque tropical de ensinos", e se tentarmos acrescentar o ensino da cultura, poderá cobrir o horizonte da juventude, que deve estar aberto para que vejamos os incêndios que ali poderão acontecer (1999:83). Por isso é preciso valer-se do princípio da economia, fazendo uma poda (1999:83-84).
E no princípio da economia, poupando nas matérias ensinadas, é preciso partir do estudante e não do saber ? e muito menos do professor ?, e a universidade, sendo a projeção institucional do aluno, precisar incorporar a dimensão de ser o que ele de fato é ? na sua escassez de assimilação de conhecimento ?, e o que ele necessita saber para viver (1999:84).
Ortega y Gasset faz críticas ao movimento estudantil, mencionando, de dez, apenas três de suas pautas, razoáveis para justificar uma agitação (1999:84). Eram, então, as seguintes: 1) A própria inquietação política do país, o abalo da substância nacional; 2) Concretos e grandes abusos cometidos pelos professores, e; 3) Que a universidade volte a se concentrar no estudante e não no professor ? a reivindicação mais importante ?, repetindo o período em que foi mais autêntica (1999:84-85). Essa é uma necessidade do tempo, no que os estudantes têm razão, devendo eliminar os componentes inúteis de sua mobilização, afinal, a universidade é a casa deles (1999:85 e 126, nota nº 16).
Então temos a organização e o quê a universidade deve ser: é preciso partir do estudante médio, considerando o núcleo da instituição universitária apenas aqueles ensinamentos que de fato o bom aluno médio é capaz de assimilar (1999:85). E esse dorso ou minimum da universidade poderá ser determinado promovendo uma dupla seleção na multidão de saberes: a um, que essa poda deve levar em consideração apenas os saberes realmente necessários para a vida do estudante, e, a dois, que esse conteúdo seja reduzido àquilo que o aluno possa aprender com soltura e de forma plena (1999:85-86), e assim, se deve agir a qualquer preço.
7. A quarta palestra (IV): O Que a Universidade tem de ser "Em primeiro lugar" ? a Universidade, a Profissão e a Ciência.
Ortega y Gasset lembra que para a aplicação desses princípios, os seguintes temas se colocam (1999:87):
1) Em primeiro lugar, imediatamente, a universidade se coloca como a instituição que irá ministrar o ensino superior que o homem médio deverá receber (1999:87);
2) Há a tarefa de situar esse homem médio um homem culto, situando-o à altura de seu tempo, cabendo à universidade colocá-lo à altura dos tempos, cumprindo com a sua função central e primeira de ministrar grandes disciplinas culturais, que são o ensino da física ? a imagem física do mundo ?, a biologia ? com os temas fundamentais da vida orgânica ?, a história ? refletindo o processo histórico da espécie humana ?, a sociologia ? demonstrando a estrutura e funcionamento da vida social ?, e, finalmente, a filosofia ? lecionando plano do universo ? (1999:87).
3) É preciso discutir o tema do ensino profissional para aclará-lo, sendo necessário tornar o homem médio em um bom juiz, advogado, médico, professor de matemática ou de história, no que a universidade, através disso, lhe ensinará procedimentos intelectualmente mais sóbrios; eis, então, duas importantes tarefas da instituição universitária (1999:88);
4) Diz Ortega y Gasset sobre o homem médio, ciência, cientista, e universidade:
não se observa qualquer razão mais sólida, para que o homem médio não precise nem deva ser um cientista. Conseqüência escandalosa: a ciência, em seu sentido próprio, isto é, a pesquisa científica, pertence, imediata e constitutivamente, às funções primárias da Universidade não tem nada a ver, sem quê nem para quê, com elas. Não obstante, em que sentido a Universidade é inseparável da ciência e, portanto, tem de ser, também ou aliás, pesquisa científica, coisa que adiante veremos (1999:88).
Entendendo que suas opiniões trazem consigo um caráter heterodoxo ? sem olvidar as divergências sobre o que disse ?, o filósofo espanhol menciona a grande quantidade de tolices que aparecem sobre quaisquer tipos de assunto, e mesmo considerando sérias objeções às suas teses, já aguarda pelas palavras que caem nos lugares-comuns de todos os homens que falam sobre algo sem antes ter tido a oportunidade de refletir o tema (1999:88). Porém, ele alerta que esse plano universitário não traga a confusão sobre três coisas bem diversas que são cultura, ciência e profissão intelectual (1999:89).
Nesse esteio, Ortega y Gasset esclarece que é preciso separar profissão de ciência, sendo que esta última, não é qualquer coisa, visto que em seu sentido autêntico não se equipara a mera compra de um microscópio ou explicar um postulado, mas é pesquisa pura, consubstanciada na apresentação de problemas e no esforço para o alcance de resoluções (1999:89). O que for feito daí em diante, o que for feito dessas resoluções, já não será ciência, a não ser que a questão seja novamente problematizada, criticando-a, reiterando o próprio processo em que a pesquisa consiste (1999:89 e 126, nota nº 17). Aprender ou ensinar uma ciência não é ciência, tampouco usá-la, aplicá-la, visto que há ótimos professores de ciências que não são pesquisadores, cientistas, no que basta que saibam a sua ciência (1999:89). Saber, porém, não é pesquisar, pois essa tarefa consiste em descobrir uma verdade demonstrar um erro, ao passo que o saber é inteirar-se desse conteúdo já postulado, pronto, obtido (1999:89).
Diz o filósofo espanhol que nos primórdios da ciência, em especial na Grécia, não se corria o risco de agora, que é a confusão do que ela não é, lembrando que na época de Platão e Aristóteles se carecia de termos para a sua correspondência exata, usando-se vocábulos equivocados como "história", "éxtasis", "filosofia", que não significam a idéia de "possessão" (1999:90). Afinal, a própria palavra "filosofia" era um esforço para não se confundir a sabedoria sólida com aquela nova atividade, que não era o saber de agora, o buscar de saber (1999:90). Acerca do uso estranho e novo do nome "filosofia", Ortega y Gasset recomenda as palavras no v. 3 de Tusculanae disputaciones, de Cícero (106 a. C.-43 a. C.), lembrando que o conjunto de significados de "conhecimento" nos é resgatado pela palavra "episteme" (1999:126, nota nº 18).
Ciência é criação, ao passo que a ação pedagógica é a transmissão dessa criação, destinando-se a digeri-la, injetá-la (1999:90). É preciso fazer, então, a distinção entre docência e ciência, de maneira que a ciência, no pensamento de Ortega y Gasset está acima da universidade enquanto instituição docente e, mesmo, do próprio homem médio (1999:90). E, nesse ponto, o filósofo espanhol é enfático: a ciência é uma das coisas mais elevadas que o homem faz e produz (1999:90), e, querendo ou não, sendo um ofício altamente elevado e delicado, implica uma vocação peculiaríssima e sobremaneira infreqüente na espécie humana. O cientista vem a ser o monge moderno (1999:89-90).
Os homens podem fazer outras coisas nobres além de ciência (1999:91), de maneira que ter a pretensão de fazer o estudante normal se tornar um cientista é algo ridículo, um utopismo típico, segundo o educador espanhol, das gerações que lhe antecederam (1999:91). Nem idealmente isso é desejável, pois, como dito, a ciência é algo nobre, mas não é a única coisa nobre a fazer, não havendo motivo para ela desalojar as outras a serem feitas (1999:91). E a ciência é esse algo nobre, e não o cientista, que é um homem tão limitado quanto os demais, até mais que alguns imagináveis, no que o Ortega y Gasset prefere não avançar na argumentação, bem naquele momento, para que suas declarações não soem "nocivas" (1999:91). Ele atém-se ao que é urgente, anotando com freqüência que o "verdadeiro cientista", enquanto "homem", se parece a um monstro, um maníaco, até mesmo a um demente, segregando este homem o elemento valioso, a "pérola", e não a ostra (1999:91).
Ortega y Gasset esclarece que não querer demonstrar que todos os demais necessitem ser de ciência sem se ater detalhadamente a todas as condições ? umas ditas "prodigiosas" e outras "mórbidas" ? que tornam o cientista algo possível, exemplificando ? em uma causa profunda, séria ? a facilidade com que os cientistas aderem às tiranias (1999:91 e 126, nota nº 19).
Pode até ser que a tarefa de ensinar ciência, com ressalvas, deva, de per si, caber ao cientista (1999:89). Mas é preciso separar o ensino que se destina a ensinar profissões da tarefa da pesquisa científica, não se confundindo estas diferentes tarefas perante os professores e os jovens, sob pena de um prejudicar o outro (1999:92). Ora, a aprendizagem profissional pressupõe a recepção do conteúdo científico, sistemático, de muitas ciências, porém, é só o conteúdo, não é a pesquisa em si, afinal, o estudante não é um aprendiz cientista (1999:92). Para o educador espanhol, o médico precisa aprender a curar, não tendo que aprender mais que isso, lhe bastando o conhecimento clássico da fisiologia, não necessitando ser um fisiólogo (1999:92). Ele se questiona, sem compreender, do por que de se empreender o impossível, sentindo repugnância do "prurido" de se fomentar ilusões ? muito embora seja preciso tê-las, mas não forjá-las ?, o que representa uma megalomania, um obstinado utopismo em insistir fingir o que se não consegue, algo estéril, que é chamado de "pedagogia de Onã" (1999:92).
Diz Ortega y Gasset: a virtude da criança é o desejo, e seu papel, sonhar. Porém, a virtude do homem é querer, e seu papel, fazer, realizar, e a diferença é que este último representa um querer fazer, um querer conseguir, e o desejo, o imperativo de realmente conseguir algo implica em limitarmo-nos (1999:92-93 e 126, nota nº 20). A autenticidade da vida é obtida por esse "limitar-se", no que ela se coloca como destino, pois se ilimitada fosse nossa existência, não existiria o destino (1999:93). Os jovens são então conclamados pelo filósofo a compreender a vida autêntica como uma alegre aceitação do destino inexorável, de nossas limitações intrínsecas, o que os místicos chamavam de "estado de graça" (1999:93). Diz o educador: aquele que, realmente, aceitou uma vez seu destino, sua limitação, dizendo-lhes "sim", e incapaz de comover-se. Impavidum ferient ruinae (1999:93).
Não é possível apenas ter vocação para ser profissional e não flertar a ciência (1999:93). Diz Ortega y Gasset: aquele que tiver vocação para médico e nada mais, que não flertar a ciência, fará apenas uma ciência medíocre (1999:93). Se for médico, isso já será tudo, dizendo-se o mesmo do professor de história no ensino secundário, sendo um erro crer que ele na universidade se tornará um historiador, uma tarefa com nada a ganhar (1999:93). O estudo das técnicas necessárias para a história podem não fazer sentido para um professor de história, impedindo-o de ensinar, de lhe permitir que tenha uma visão minimamente clara, estruturada do quadro geral da experiência histórica humana (1999:93). É evidente que lhe será ensinado as técnicas em que a história é obtida, mas não se pode forçá-lo a assimilá-las, adquiri-las (1999:93 e 127, nota nº 20).
Suscitar o predomínio da pesquisa na universidade foi desastroso, visto que isso destruiu a cultura, indo além, impedindo o cultivo do objetivo de educar profissionais ad hoc. A profissão fica ao "Deus dará", e essa confusão é recíproca, pois a ciência igualmente sofre com a utópica aproximação com as profissões, em um quadro que poucos pensavam seriamente no que se deveria ser um bom médico, quais deveriam ser os atributos de um profissional desta área (1999:93-94).
Há a crença no "cientificismo", o qual padece a universidade, alimentado pelo pedantismo e falta de discernimento de seus mentores (1999:94). A coisa chegava a tal ponto, segundo Ortega y Gasset, que bastaria realizar um estágio em laboratório ou seminário alemão ou estadunidense ? quem sabe até mesmo uma descoberta científica ? que o indivíduo voltaria à Espanha como "novo-rico" da ciência, parvenu da pesquisa, sequer pensando na missão da universidade e sugerindo ridículas reformas (1999:94). Para piorar a situação, esse indivíduo ? qualificado de pedante ? não é capaz de ensinar a sua "disciplina" e muito menos dela saber na íntegra (1999:94-95).
O filósofo espanhol então propõe uma "sacudida" na árvore das ciências, para que sobre somente o necessário e se cuide das profissões, então completamente em estado bruto, refletindo um estágio em que se é preciso começar do zero (1999:95). Ademais, ainda será preciso ensinar a este pedante, caso queira aprender, o que são as técnicas pelas quais se obtém a história (1999:95 e 127, nota nº 21).
8. A quinta palestra (V): Cultura e Ciência.
Nessa fala, Ortega y Gasset começa dissertando sobre as relações entre profissão e ciência; profissão é uma atividade prática, um ofício, cuidando-se de curar e manter a saúde humana (1999:97). Para essa finalidade, retira aquilo que é adequado da ciência, abandonando o desnecessário, excluído, portanto, o que mais característico da ciência, justamente a problematização (1999:97). Afinal, a ciência expõe problemas, no que a medicina está aí apenas para soluções, que se forem científicas, melhor, embora nem sempre isso seja necessário, como no caso de uma experiência milenar que funciona e que a ciência não explicou (1999:97).
O educador espanhol lembra que naqueles últimos cinqüenta anos a medicina foi infiel à sua missão, deixando-se levar pela ciência, sem se confirmar profissionalmente (1999:98). A medicina é fecunda para a ciência quando se propõe a curar, muito embora a fisiologia contemporânea tenha nascido no começo do Século XIX não dos cientistas, mas dos médicos que se desvincularam da filosofia escolástica ? outrora tão criticada por Hobbes ? que predominava na biologia do Século XVIII, através, por exemplo, da anatomia e da sistemática (1999:98 e 127, nota nº 23). Então, foi preciso que os médicos aceitassem a missão da medicina, pugnando teorias pragmáticas de cura no que ela aceitou o seu destino, não querendo ser ciência pura, não querendo ser outrem (1999:98 e 127, nota nº 23).
É clara, portanto, a diferença entre ciência e profissão.
No pensamento de Ortega y Gasset no momento em que entra na profissão a ciência precisa se desarticular para se organizar em outro centro e em outro princípio, inclusive como técnica profissional, o que pode ser levado em conta para se ensinar as profissões (1999:98).
E, nesse ínterim, sobeja no pensamento do filósofo espanhol, a diferença entre ciência e cultura.
Antes disso, conceitua cultura no sistema de idéias vivas que cada época possui, donde o tempo avança, e onde o homem apóia a sua existência (1999:98-99). Essas idéias são as reais convicções dos homens sobre o mundo e o semelhante, sobre valores e ações, não estando ao nosso alcance possuir ou não tal repertório (1999:99). Isso se trata de uma necessidade inerente do ser humano, inevitável, e a realidade de nossas vidas nada tem a ver com a biologia, que é apenas o ofício aos quais alguns homens se dedicam (1999:99). Ortega y Gasset explica: o sentido mais verdadeiro da palavra "vida" não é, portanto, biológico mas sim biográfico que é o que possui desde sempre na linguagem vulgar representando o que somos, o que fazemos, em nossa árdua tarefa de se equilibrar no Universo, convivendo com coisas e seres, no que ele repete a fórmula do seu ensaio El Estado, la juventud y el Carnaval, publicado no jornal La Nación de dezembro de 1924 e no v. VII do El Espectador de 1930, com o título de El origen deportivo del Estado: viver é, certamente, lidar com o mundo, dirigir-se à ele, atuar nele, cuidar dele, lembrando, porém, que esse atos não surgem no próprio homem (1999:99-100 e 127, nota nº 24).
O autômato não é capaz de viver, visto que a vida não nos é dada pronta, temos que ir decidindo-a minuto a minuto, temos que resolver coisas imediatamente, sendo a vida um problema eterno para o homem (1999:100). Precisando, mesmo nas coisas mais simples, ir seguindo sempre com a tarefa de planejar, ainda que os mais pueris desígnios, não havendo vida mais discreta, sublime ou estúpida que não esteja alicerçada em planos (1999:100). O plano não é o mesmo para toda a vida; sempre varia, e se revela e cabe para os aspectos sublimes, estúpidos ou ínfimos (1999:100 e 127, nota nº 125). Até mesmo deixar nossa vida sem rumo no desespero é um plano, e fazemos aquilo que naquele momento nos faz sentido, no que a existência "é planejada" por si mesma, justificando-se perante a própria visão (1999:100). Agimos naquilo que, no momento, parece fazer o melhor sentido; a justificativa por si mesma é parte substancial da vida, uma justificativa de si mesma (1999:100-101).
Todavia, é preciso assinalar que esse plano e justificativa nos exige a formação de uma idéia do mundo e de seus elementos ? e de nossas coisas nele ?, dos nossos atos correlatos, não podendo deixar de reagir diante do contorno primeiro desse exterior e sem forjar uma interpretação intelectual e a maneira pessoal sobre como agir nesse mundo e universo, em atos que não podem faltar em nossa vida (1999:101). Invocando o seu La rebelión de las masas, Ortega y Gasset lembra que esse comportamento é parte de uma atitude vital, e quando isso não ocorre, é sintoma de uma enfermidade gravíssima, como se vê no homem mencionado na obra (1999:101 e 127-128, nota nº 26).
Esse rol de idéias não são aleatórios, mas recolhidos do tempo histórico, de seu próprio meio, onde se verificam diferentes sistemas de convicções (1999:101). Alguns desses sistemas representam uma "sobrevivência enferrujada e inábil de outros tempos", havendo, em contrapartida, um sistema vivo que simboliza o tempo superior, atual, que é justamente a cultura (1999:101). Os que ficarem sob o sistema de idéias arcaicas estarão fadados a uma vida menor, tosca, difícil, sendo o caso do homem inculto, que anda de carroça ao passo que vê os outros irem de automóvel (1999:11). Isso implica em um mundo menos certeiro, menos rico, convertendo o homem em um "infra-homem" (1999:101-102).
Lembra o filósofo espanhol que na época em que vivia, a maior parte da cultura era proveniente da ciência, embora cultura não fosse ciência (1999:102). O que se acreditava ser ciência era apenas uma fé vital, uma convicção típica de nossa cultura, a exemplo do que se fazia há quinhentos anos antes, quando o conteúdo da cultura partia dos Concílios, induzindo a neles se crer (1999:102).
Diz Ortega y Gasset: a cultura, portanto, faz com a ciência a mesma coisa que a profissão fazia. Espuma daquela o vitalmente necessário para interpretar nossa existência (1999:102). Existiriam ainda parcelas inteiras da cultura que não são ciência, mas técnica científica pura, no que a cultura precisa de uma completa noção do mundo e do homem (1999:102). A exemplo da ciência, não pode a cultura determinar onde os métodos do pleno rigor científico encerrem casualidade (1999:102). A própria vida não deve esperar plenas explicações científicas sobre o Universo, não se podendo viver ad kalendas graecas, isto é, buscando-se algo que não se realizará (1999:102). A ciência traz consigo a peremptoriedade, a vida sempre presente, vivendo-se o aqui e o agora (1999:102-103). A vida é algo a "queima-roupa", e a cultura, enquanto interpretação dela, não pode esperar (1999:103).
Os homens não vivem de ciência, como se exemplifica de um físico, que se vivesse da física, não teria escrúpulos e muito menos aguardaria cem anos para que outro pesquisador finalizasse os seus trabalhos, renunciando a possíveis soluções exatas com antecipações, aproximações ou deduções verossímeis, escapando ao rigor doutrinal, ainda que algo a essa ciência sempre falte (1999:103).
Enquanto o regime interno da cultura se rege pela vida ? tendo que ser algo completo, integral estruturado ?, sendo, portanto, vital, o da ciência não o é, não se preocupando com as nossas premências e seguindo adiante em favor de suas próprias vicissitudes, se especializando, diversificando, sem parar nunca (1999:103). A cultura, por sua vez, representa o plano da vida, o guia dos caminhos da selva da existência (1999:103).
Lembra o educador espanhol que a metáfora das idéias como vias ou caminhos (= méthodos) é velha igual à cultura, no que, quando estamos em uma situação difícil, nos vemos em uma densa e tenebrosa selva, onde o caminhar é feito com o temor de se perder (1999:102-103). É preciso que alguém nos traga uma idéia aclaradora, nos trazendo luz, a luz da evidência, simplificando o emaranhado, trazendo as linhas lídimas similares aos caminhos desbravados (1999:103-104). Então, é nesse esteio que juntos caminham método e iluminação/ ilustração, Aufklärung (1999:104). Na época de Ortega y Gasset, o que se chamava de "homem culto", um século antes, era chamado de "homem ilustrado", vale dizer, capaz de enxergar com luz os caminhos que se traçam na vida (1999:104).
Porém, é preciso terminar por definitivo com qualquer possibilidade de imagem ambígua da ilustração e da cultura, vistas como adorno que certos homens ornamentam suas vidas, pois isso é grave tergiversação (1999:104) A cultura tem que ser vista como um imprescindível mister na vida humana, assim como são uma de suas qualidades físicas, embora alguns não as tenham, e em decorrência disso, não se tratam de homens comuns, mas sim com deficiências (1999:104). Essa analogia, de forma mais radical ainda, pode ser transpassada para uma vida sem cultura, que é fracassada, falsa (1999:104). Viver abaixo de seu tempo e de sua autêntica vida faz o homem viver uma vida falsa, em que ele a desvia, rouba de si próprio (1999:104-105).
Ortega y Gasset denunciava viver em uma época de terrível incultura, onde se encontravam presunções, aparências, onde o homem médio, como talvez nunca tenha se verificado antes, vive extremamente abaixo de seu tempo, abaixo do que este lhe demanda (1999:105). Ao mesmo tempo, pela mesma razão, há a maior quantidade de existências falsas e fraudulentas, onde poucos são os que estão em seu juízo perfeito, que deve ser apoiado no viver de seu autêntico destino (1999:105). O homem comum vive em um contexto de subterfúgios, embora a sua consciência vital lhe conclame ao verdadeiro mundo ? justamente o da atualidade plena ? que é gigantesco, complexo, preciso, exigente (1999:105). Não obstante, esse homem médio se coloca como fraco, medroso, praticante de bravatas, receoso de se abrir para o mundo verdadeiro ? que muito dele exigiria ?, preferindo, ao invés disso, falsificar a sua vida, conservando-a hermética no capulho verminoso de seu mundo físico e bastante simplório (1999:105).
Ora, a importância da universidade é devolver o homem à sua vida autêntica. E essa é a importância realçada por Ortega y Gasset, onde cabe a ela ilustrar o homem, de lhe ensinar a cultura do tempo em plenitude, tornando-o capaz de desvendar com precisão o enorme mundo que se mostra, encaixando nessas circunstâncias a sua existência rumo à vida autêntica (1999:105-106). E a sua proposta era a de criar uma "faculdade" de cultura como o núcleo da universidade, e não só dela, mas de todo o ensino superior, onde as disciplinas estariam delineadas no molde de cultura supra dimensionada, onde, por exemplo, ter-se-ia a "imagem física do mundo" ? no ensino da física ? (1999:106). Com essa dualidade na nomenclatura restaria evidente a diferença entre uma disciplina cultural, a vital, e a ciência que lhe é correspondente, que dela se nutre (1999:106).
Nessa faculdade de cultura, não haveria a explicação da física, como ela é ensinada àqueles que serão pesquisadores físico-matemáticos, haveria a física da cultura, nas palavras do educador espanhol, rigorosa síntese ideológica da figura e do funcionamento do cosmo material, segundo os resultados da respectiva pesquisa física realizada até então (1999:106).
Deveria ainda essa disciplina ensinar o modo de conhecimento que o físico utiliza para formular as suas construções, em que é obrigado a esclarecer, analisar os princípios da ciência física, culminando, ainda que brevemente, por ensinar a sua evolução histórica (1999:106). Esse componente, então, permitirá ao aluno ter uma visão clara do que foi o mundo vivido pelo homem do passado, com a aquisição da plena consciência do estado peculiar do mundo hodierno (1999:106).
E, finalmente, Ortega y Gasset diz ter chegado ao momento que responderia a objeção surgida no início de sua explanação, aduzindo como poderia alguém compreender a atual imagem da física não sendo especialista em alta matemática, visto que o método matemático, segundo ele, vai penetrando, mais e mais, o corpo da Física até a medula (1999:107).
O acerto disso seria uma tragédia sem escapatória para os humanos, pois, ou viveriam de forma inepta, sem a noção do mundo material onde nos mexemos ? todos, velis novis, teriam que ser físicos ? dedicando a vida à física, dedicando-se à pesquisa, ou conformar-se em uma experiência, que, em uma de suas dimensões, é classificada de estúpida (1999:107 e 128, nota nº 27). Ambas as soluções não são boas, de maneira que teríamos o físico como um ser de saber mágico diante dos demais (1999:107).
Considerando, então, que esse quadro não existe, o filósofo supõe a sua doutrina implicar em uma intensa racionalização nos métodos de ensino, em processo que iria desde o primeiro grau até o ensino superior, onde, sublinhando a diferença entre ciência e o seu ensino, se desarticularia a primeira para que fosse mais facilmente assimilada (1999:107). Novamente o princípio da economia do ensino não se satisfaz em excluir disciplinas que os alunos não podem assimilar, porém, igualmente economiza nos meios de como e sobre o quê ensinar, proporcionando ao estudante maior capacidade de aprendizado que na época em que fazia o discurso (1999:108). O ato de poupar no ensinar permitiria maior e mais efetiva aprendizagem (1999:108 e 128, nota nº 28). Ortega y Gasset decreta: E acho, portanto, que no dia de amanhã nenhum estudante chegará à Universidade sem conhecer suficientemente bem a matemática física para poder sequer entender as fórmulas (1999:108).
O educador espanhol entendia que os matemáticos exageravam um pouco acerca das dificuldades de sua área de conhecimento, que ele comparava às favas contadas (1999:108), afirmando:
se hoje ela parece tão difícil, é porque falta trabalho diretamente orientado para simplificar seu ensino. Isto me dá a oportunidade de declarar pela primeira vez, com certa solenidade, que se não se fomentasse esse tipo de trabalho intelectual, dedicado não tanto a expandir a ciência, no sentido habitual da pesquisa, quanto a simplificá-la e nela produzir sínteses quintessenciadas, sem perda de substância e qualidade, o porvir da própria ciência seria desastroso (1999:108).
Não poderia continuar, então, a dispersão e complicação no trabalho cientifico, sendo, portanto, compensadas, pelos opostos concentração e simplificação do saber, criando talentos sintetizadores, estando, neste ponto, o próprio destino da ciência (1999:108-109). De outro mote, Ortega y Gasset nega com veemência que as idéias fundamentais de uma ciência ? incluindo-se seus princípios e conclusões ?, forçosamente, só possam ser compreendidas através da formal habituação técnica (1999:109). Para ele, a verdade é o oposto, pois, no estudo de uma ciência, quando se vai alcançando as idéias que requerem um hábito técnico, elas se tornam meramente instrumentais ? assuntos intracientíficos ?, perdendo seu foco fundamental, no que a habilidade da alta matemática é deveras importante para se fazer física, mas não o é para entendê-la de um ponto de vista humano, afinal, a matemática teria um caráter totalmente instrumental, não fundamental ou real, como se é possível observar na "ciência que estuda o microscópio" (1999:109 e 128, nota nº 29).
Para o educador espanhol, a Alemanha colocava-se ? com glória e de forma indiscutível ?, como a nação à frente da ciência, atribuindo a isso um misto de sorte e desgraça (1999:109). Ao lado desse grande talento e seriedade, os alemães seriam portadores de um defeito difícil de eliminar e congênito, consubstanciado no pedantismo e hermetismo, o sendo a nativitate (1999:109). Muito do que se fala em ciência não passaria de "bugiganga pedantesca", "falta de mundo", donde lhe sai uma tarefa para a Europa (1999:109):
uma das tarefas que a Europa precisa realizar logo é libertar a ciência contemporânea de suas excrescências, ritos, manias, exclusivamente alemãs e deixar isenta sua parcela essencial (1999:109-110).
E, sobre isso, Ortega y Gasset melhor explica as suas insinuações, mencionando a necessidade de se lembrar que ele mesmo deve quatro das quintas partes de seu patrimônio intelectual ao país, sentindo com clareza, inclusive naquele momento, a enorme e indiscutível superioridade da ciência alemã sobre as demais, de sorte que o argumento neste ponto deduzido, nada tem a ver com o fato (1999:109-110 e 128, nota nº 30).
Denunciando a existência de uma espécie de "feudalismo", presunção em disciplina, o filósofo espanhol lembra que a salvação da Europa só ocorrerá se houver uma adaptação rigorosa, maior que as até então usadas e abusadas, ninguém dela escapando, muito menos o cientista (1999:110).
A denúncia de Ortega y Gasset menciona a insubordinação do cientista do Século XIX, contaminado do "evangelho de rebelião", uma vulgaridade e falsidade do seu tempo, e no que tange a grande tarefa moral do presente da estupidez dos homens vulgares que insistem nessa revolta pouco exigente; a denúncia prossegue na afirmação que praticamente todas as coisas contra as quais o homem se insurgiu, mereceram ser sepultadas (1999:110 e 128, nota nº 30). Para ele ? lembrando que Luzbel é o patrono dos pseudo-rebeldes ? a única rebelião que pode ser taxada de verdadeira é o ato de criação, pois a rebelião contra o nada representa o antinihilismo (1999: 110 e 128, nota nº 30).
Da mesma forma o educador clama novamente que o homem de ciência deixe de ser um "bárbaro", o que o é com freqüência, sabendo muito sobre alguma coisa (1999:110), mas nada sobre o todo. O alento surge do fato que na geração de cientistas que ele via, havia alguns que, atendendo necessidades internas de sua própria área, buscavam complementar o seu especialismo com um tanto de cultura integral, forçando os demais a segui-los, como se faz ao se seguir o líder (1999:110).
Nessa perspectiva, Ortega y Gasset supunha um novo movimento de integração do saber, então despedaçado pelo mundo, lembrando, também, que a tarefa é muito grande e não pode se concretizar se não houver uma metodologia para o ensino superior, semelhante aos demais níveis de ensino (1999:110).
Por incrível que pareça o filósofo espanhol também denunciava a total carência de uma pedagogia universitária (1999:111). Conclamando a necessidade da criação de uma técnica para a acumulação do saber, ele decreta:
Se não encontrar meios fáceis para dominar essa vegetação exuberante, o homem por ela será sufocado. Sobre a selva primária da vida viria justapor-se essa selva secundária da ciência, cuja intenção era simplificar aquela. Se a ciência pôs ordem na vida agora será preciso pôr ordem também na ciência, organizá-la ? já que é impossível regulamentá-la ?, tornar possível sua permanência saudável. (1999:111)
Então, eis a necessidade de vitalizar a ciência, tornando-a compatível com a vida, da qual veio e para a qual foi feita, pois, de outro modo e sem otimismo, o homem não terá interesse por uma ciência volatilizada (1999:111).
Daí que Ortega y Gasset, ao refletir sobre a missão da universidade identifica o caráter peculiar, sintético e sistemático de suas disciplinas culturais, que se abrem em muitas perspectivas, que vão além do campo pedagógico, demonstrando a instituição universitária como motivo de salvação da ciência (1999:111).
E agora ter-se-á o talento criador, especialização na criação da totalidade.
Há uma necessidade de criar sínteses e sistematizações do conhecimento para ministrá-lo no seu projeto da "faculdade de cultura", produzindo o talento integrador, que até então, só tinha se verificado por acaso (1999:111-112). Em rigor, o esforço criador é uma especialização; porém, aqui, a especialização constrói uma totalidade, e a decomposição da pesquisa em problemas particulares exige um esforço compensador, e em direção inversa que reduza e retenha em um rigoroso sistema a ciência centrífuga (1999:112).
Os dotados desse genuíno talento estão mais perto de serem bons professores do que os que habitualmente estão imersos na pesquisa, pois a confusão entre ciência e universidade entregou as cátedras a pesquisadores, em regra, péssimos professores, que acreditam ser o ensino um desperdício ou roubo de seu tempo (1999:112). Ortega y Gasset se lembra de seu período de estudo na Alemanha, recordando que conviveu com os mais importantes nomes da ciência de sua época; contudo, nunca cruzou com um bom professor ? acreditando, embora sem a mínima freqüência exigida, que eles existissem ? refutando a idéia que a universidade alemã, enquanto instituição é um modelo (1999:112 e 128, nota nº 32).
9. A sexta palestra (VI): O Que "aliás", A Universidade tem de ser
Ortega y Gasset volta ao seu princípio da economia, reiterando que simultaneamente ele representa a vontade de ver as coisas como de fato são, rejeitando a utopia, conduzindo-lhe a possibilidade de enxergar a missão da universidade nos seguintes termos (1999:113): 1) Stricto sensu a universidade é a instituição à qual cabe ensinar o aluno médio a se tornar um homem culto e bom profissional (1999:113); 2) Não se admitirá na universidade imposturas nos seus usos, vale dizer, ensinando ao estudante apenas aquilo que pode ser exigido (1999:113); 3) Parar-se-á com o fingimento que o estudante médio será um cientista, inclusive fazendo-o perder o seu tempo, no que, para isso do centro da estrutura universitária, a pesquisa científica propriamente dita será eliminada (1999:113-114); 4) Com racionalização pedagógica e formato sintético, sistemático e completo, oferecer-se-á disciplinas de cultura e estudos profissionalizantes, não repetindo os problemas fragmentados de ciência e pesquisa, que a metodologia de então preferia (1999:114); 5) A posição de pesquisador não pode influir na eleição do professorado, devendo sim, ser considerado, o talento sintético e as suas qualidades de professor (1999:114); 6) Sendo a universidade inexorável nas suas exigências em face do aluno, proporcionará, em contrapartida, aprendizagem do minimum de quantidade e qualidade (1999:114).
Ortega y Gasset reconhece uma franqueza rude em suas palavras, mas crê que elas são necessárias para reposicionar a universidade para a sua verdade e sinceridade, na busca da nova vida, reformada e direta na aceitação do destino do indivíduo e da instituição (1999:114-115). Todo o resto ? Estado, instituições particulares ou o que quisermos fazer de nós mesmos ? somente frutificará dessa aceitação preliminar do nosso destino e do nosso minimum (1999:115). Diz ele:
a Europa está doente porque há quem prefira, de antemão ser o número dez, sem antes se esforçar sequer para ser o número um ou dois, ou três. O destino é a única gleba onde a vida humana e todas as suas aspirações podem lançar raízes (1999:115).
A ênfase é tal em suas palavras, que para ele, o resto é vida falsa, de maneira que, com clareza e sem reserva, se pode deduzir o que a universidade, no restante, deve ser (1999:115).
De imediato, a universidade é apenas o dito, não podendo, porém, ser só isso, no que se deve reconhecer o papel essencial da ciência na fisiologia do corpo universitário, dotado de um espírito (1999:115).
Foi dito que cultura e profissão não representam ciência, mas dela se nutrem, no que, sem ciência, o homem europeu tem o seu destino como impossível (1999:115). Esse destino significa viver do seu intelecto dentro da grandeza da história, viver com o intelecto em forma (1999:116). Ortega y Gasset se pergunta se foi um acaso entre tantos povos, só a Europa ter possuído universidades, sendo a vontade específica do intelecto europeu, perante outros tantos, outras tantas terras e épocas, ter a misteriosa decisão de partir e viver de sua própria inteligência (1999:116). Outros prefeririam viver de diferentes atributos e potencialidades no que ele lembra Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) (Lecciones de filosofia de La Historia Universal. Revista de Occidente, 1928) (1999:116 e 128, nota nº 33), exaltando a "faculdade maravilhosa" da inteligência européia, capaz de perceber a própria limitação, capaz de provar até mesmo se a inteligência é de fato inteligente (1999:116). Essa virtude é, ao mesmo tempo, freio de si mesma, e se realiza na ciência (1999:116).
Se cultura e profissões se isolassem na universidade, sem o contato com a fermentação da ciência e da pesquisa, ambas se atrofiariam rapidamente, culminando em "sarmentosa escolástica" (1999:116-117). Ao lado da universidade mínima é preciso que as ciências acampem com seus laboratórios, seminários e debates, representando o húmus das raízes do ensino superior (1999:117). Nesses acampamentos estudantes superiores e médios poderão ir e vir à universidade, e vice-versa, onde haverá cursos exclusivamente científicos, em especial ao humano e ao divino (1999:117). Os professores mais capazes acumularão a função de pesquisadores e outros menos capazes serão apenas docentes, movidos e vigiados pela ciência (1999:117). Porém, não se pode admitir a confusão do centro da universidade com o círculo de pesquisas que deve rodeá-la, pois se tratam de órgãos diferentes em uma completa fisiologia (1999:117).
O caráter institucional será próprio da universidade e o da ciência será uma atividade sublime e demais refinada para sê-lo, pois esta é incoercível e irregulamentável (1999:117-118). É por isso, que ensino superior e pesquisa se prejudicam mutuamente quando se tenta fundi-los, ao invés de colocá-los um ao lado do outro em tensa, livre e espontânea troca de influência (1999:118). Para o filósofo espanhol: ao que conste, a universidade é diferente, porém inseparável da ciência. Eu diria: a universidade é, aliás, ciência (1999:118).
Não se trata, porém, de um aliás qualquer, e sem temer confusões, se pode apregoar que antes de ser universidade ela tem de ser ciência representando o desejo de alentos e esforços científicos, enquanto pressuposto fundamental seu (1999:118). Em especial, porque, por si mesma não é ciência, tem que viver dela, pois sem isso a argumentação deduzida em toda a sua palestra fica sem sentido (1999:118).
Se há quem viva sem dignidade, a ciência é a dignidade da universidade, nutrindo-a de vida e impedindo que ela seja algo vil, em argumentação implícita na assertiva que a universidade é, aliás, ciência (1999:118).
Deliberadamente Ortega y Gasset explicita não querer entrar no tema da educação universitária para se restringir ao problema do ensino, lembrando que palavra aliás é outra coisa, pois a universidade precisa de contato permanente não só com a ciência, mas também com a existência pública, com o presente e a realidade histórica, um integrum, aceito apenas na totalidade e sem cortes ad usum delphinis, aberta a plena atualidade, estando dentro dela (1999:119). E isto é dito não só pela motivação histórica, mas porque a vida pública urgentemente necessita da intervenção da excitação dessa motivação (1999:119). Ortega y Gasset, lembrando de suas origens, aduz que o maior poder espiritual da vida pública é a Imprensa (1999:119). Sendo verdadeiramente histórica, a vida pública tem que ser regida, pois, por si só é anônima e cega, sem direção (1999:119). Ele lembra o desaparecimento de certos poderes espirituais, como é o caso da Igreja, que abandonou o presente (1999:119). Contudo, a vida pública é sempre muito atual e na democracia, o Estado não a dirige, sendo governado pela opinião pública, de maneira que a dita vida pública se orienta pela força espiritual que por sua natureza se atém para a atualidade, vale dizer: a Imprensa (1999:119-120).
O filósofo espanhol lembra se considerar um jornalista, mas lembra também que o jornalismo na hierarquia das realidades espirituais, ocupa uma categoria inferior, aonde a consciência pública não sofre outro tipo de pressão senão aquelas pequeninas das colunas de jornal (1999:120). De tão pequena essa espiritualidade, ela chega a ser uma anti-espiritualidade e em função do abandono de outros poderes, coube ao jornalista alimentar e dirigir a alma pública, justo ele que vem de umas das classes menos cultas (1999:120). Ademais, isso ocorria aos jornalistas ? por razões que ele desejava ser transitórias ? pela admissão em seu sindicato de pseudo-intelectuais reprimidos, carregados de ressentimento e ódio em relação ao verdadeiro espírito, em um ofício que cria celeumas sem perspectiva e construtivismo (1999:120).
A vida real consiste pura atualidade, porém a visão jornalística deforma a verdade fazendo o atual em instantâneo e este em retumbante, de maneira que na consciência pública, o mundo se mostra com uma imagem rigorosamente invertida (1999:121). Isso ocorre a tal ponto que, ao passo que mais importância substantiva tenha uma pessoa ou coisa, os jornais menos deles falarão, e em contrapartida, destacam um "acontecimento" (1999:121). Os interesses são muitas vezes inconfessáveis e não deveriam influir nos jornais onde o dinheiro deveria ser afastado de sua órbita e influência, bastando que a imprensa abandone sua própria missão para "pintar o mundo de cabeça para baixo" (1999:121). Eis o relato de Ortega y Gasset:
Grande parte da capotagem grotesca de que sofrem as coisas, hoje ? a Europa anda a muito tempo de cabeça para baixo e com os pés em piruetas para o alto ? se deve a esse império indiviso da Imprensa, único poder espiritual. (1999:121)
Para a resolução do problema, o filósofo espanhol o qualifica de questão de vida ou morte, e para isso, a universidade deve intervir na realidade trazendo para os grandes temas o seu ponto de vista, seja ele cultural, profissional ou científico, a exemplo do que se via no problema do câmbio que incomodava a Espanha, em que a universidade, de forma séria, sobre ele não oferecesse um curso sobre tão delicada questão econômica (1999:121 e 129, nota nº 35).
A universidade então, não será uma instituição apenas para os estudantes, será um recinto ad usum delphinis, e com advertência de estar dentro das premências da vida de suas paixões, irá se impor como um poder espiritual, superior ao da imprensa numa situação em que a serenidade restará superior ao frenesi, a austeridade aguda se sobressairá diante da frivolidade e franca estupidez (1999:122).
Então, o decreto final de José Ortega y Gasset: a universidade voltará a ser o que foi em seu melhor momento: um princípio promotor da história européia (1999:122).
10. Algumas considerações sobre a "Missão da Universidade" de José Ortega y Gasset.
Dotada de uma grande atualidade, a reflexão de José Ortega y Gasset se coloca como deveras importante para a compreensão do papel da universidade, e não apenas para isso, sendo, igualmente relevante, para a compreensão da época contemporânea, nos introduzindo em uma abstração portadora de uma vitalidade tal, que em vários pontos, parece que feita e perpetrada na realidade brasileira.
A cultura tem papel chave nas formulações do educador espanhol, que a entende como o sistema de idéias vivo de uma dada época, o rol superior de idéias, que estando à altura do tempo presente, se torna ferramenta capaz de trazer vida autêntica e luminosidade aos homens, que, minuto a minuto, devem tomar decisões para seguir vivendo (uma vida que a eles não é dada pronta), prosseguindo em sua jornada.
A universidade possui, portanto, papel central nessa formulação, pois para o pensador espanhol, cabe a ela, então, a formação do homem culto, de maneira a permitir que este seja o vetor e o propulsor da cultura. O próprio papel do intelectual ? e da própria elite ?, é a condução desse projeto de cultura. Ortega y Gasset, então, entende a elite como a condutora de um ideal maior, com repercussões no campo da cultura. Em consonância com o seu tempo, essa elite precisaria viver, influir de forma vital e transmitir a cultura ou o sistema de idéias vivas desse mesmo tempo, no que, antes de qualquer outra coisa, esse sistema teria que ser a universidade ou nela encontrar proposição ou representação.
Em contrapartida, rejeitando o homem inculto, Ortega y Gasset chega a afirmar que este é incapaz de realizar as tarefas de seu ofício estrito e de sua vida ordinária, criando uma existência deplorável, recheada de atos e idéias ineptas.
As massas, por sua vez, conduzidas, integrar-se-iam ao processo, e se não educadas/ escolarizadas, seriam maré revolta ou presas fáceis para as ideologias oportunistas e de ocasião, se entregando aos projetos pouco substanciosos ou suicidas. Os possíveis críticos do filósofo espanhol poderão até atribuir ao seu pensamento um caráter conservador ou anti-democrático ? muito embora Ortega y Gasset se coloque a favor da universidade para o operariado, pois desejáveis estes conhecimentos ?, mas, relativamente a essas passagens impressas na obra ? e nelas há um sentido eivado de grande vigor e transparência ?, se dimensiona um raciocínio deveras autêntico, ainda que em sua linha de concretização reproduza as estratégias de ação praticadas em um viés não muito diferente do que outros grupos que se autointitulam de supostas outras tendências afirmam fazer.
No que tange à reforma da universidade e do Estado, Ortega y Gasset lembra que para se alcançá-las é preciso estar "em forma", isto é, estar atento e altivo na busca, na perseverança e na luta de um genuíno ideal reformador, sem a costumeira preguiça política, institucional e pessoal de grande parte dos indivíduos, que viram o próprio mundo se lhes ser tirado em nome de interesses os mais diversos. Esse poder reformador da sociedade pode encontrar alento na universidade, que em sua missão, formará o homem culto, capaz de vier à altura de seu tempo ? e à altura de suas vicissitudes ?, de se lhe afastar uma vida medíocre, e caminhar junto às questões e à busca das resoluções dos problemas desse seu tempo. Em condições de relaxamento, em condições que se assemelham ao estar "fora de forma", haverá apenas a fragmentação, a brutalidade e a falta de autenticidade, não havendo as condições de sobrevivência no ambiente da dureza da vida, sem os meios de resgatá-la do naufrágio. Especificamente à universidade, nessa tentativa de proposição de sua reforma, será preciso definir, precisar a adequação de sua missão, buscando-se clareza, autenticidade e veracidade, não falseando os seus ideais, muito menos o inexorável destino em virtude de nossos desejos arbitrários, pois, do contrário, nada poderá ser conseguido individual ou coletivamente.
Por conseguinte, para Ortega y Gasset, o método e a pesquisa serão instrumentos que auxiliarão o homem diante do mencionado naufrágio, lhe trazendo os caminhos e o sentido para a sua existência, atribuindo também sentido singular à sua vida, sendo, por conseguinte, essa a tarefa das idéias, ainda que algumas delas não sejam necessariamente intelectuais, no que, os homens, pois, aproveitam a herança cultural das gerações anteriores.
Retome-se, então, que a proposta de cultura e do próprio homem culto é ser portador das já citadas idéias sobre o seu tempo, de (re)conhecer as idéias básicas do momento em que vive, ainda que essas idéias tenham um sentido "anti-intelectualista".
Certamente que essa tarefa dificilmente poderá ser alcançada em um modelo distante do de Educação Geral, no que reside uma das grandes contribuições de José Ortega y Gasset neste texto.
Lembre-se que a Educação Geral pressupõe formar um cidadão antes de um profissional, outorgando-lhe a base e herança central/ cultural da humanidade em um viés integrado de conhecimentos, formando o indivíduo como ente capaz de construir a sua própria história e de contribuir positiva e criticamente no meio e realidade onde está inserido.
O ideal de Ortega y Gasset ? na perspectiva de Educação Geral ? então, coloca a física no centro das ações, fazendo desse componente o eixo de sua filosofia. A formação geral se opõe à alta especialização, naquilo que o educador espanhol atacou com grande vigor, cunhando a figura do que chamou de "bárbaro moderno", justamente aquele que de um campo ou ponto específico do saber muito sabe, e sobre o saber todo, nada sabe. Lembre-se que o próprio exercício da liderança política somente poderia ser alcançado na materialização de uma cultural geral.
O diagnóstico da fragmentação do saber, por oportuno, é expresso por outros além de Ortega y Gasset, e no contexto da separação entre cientistas e não-cientistas, foi cunhado nas duras palavras de Charles Percy Snow (1905-1980), no clássico "As Duas Culturas e uma Segunda Leitura" (1995:22):
Os não-cientistas têm a impressão arraigada de que superficialmente os cientistas são otimistas, inconscientes da condição humana. Por outro lado, os cientistas acreditam que os literatos são totalmente desprovidos de previsão, peculiarmente indiferentes aos seus semelhantes, num sentido profundo antiintelectuais, ansiosos por restringir a arte e o pensamento ao presente imediato. E assim por diante. Qualquer pessoa com um pouco de talento para a invectiva poderia produzir uma profusão desse tipo de diz-que-disse pelas costas. De um lado e de outro existem alguns que não são inteiramente infundados. São totalmente destrutivos. Muitos deles, se baseiam em mal-entendidos que são perigosos (rodapé nº 02).
Outrossim, retomando o escrito em comento do próprio Ortega y Gasset, poderá ser a Educação Geral será uma das ferramentas capazes de colocar o homem como culto e à altura de viver o seu tempo, sendo a cultura a sua tábua de salvação à qual o náufrago deve agarrar. Não à toa que se atribui ao filósofo espanhol o adágio que o homem está condenado a não poder ser fundamentalmente feliz se não consegue sê-lo à maneira do seu tempo.
Resgatando a tarefa da reforma, lembra o filósofo espanhol que a escola segue a atmosfera pública do país em que está inserida, de maneira que se é desejável não apenas a reforma da universidade, mas a do Estado. Ainda, como instituição do país, a escola depende ainda mais da atmosfera pública que dos elementos da esfera pedagógica de seu entorno, no que é mister o equacionamento dessas pressões para ser ela boa.
No entanto, Ortega y Gasset lembra que nas universidades há limitações mais importantes que nas escolas especiais, visto que estas instituições instruem alguns que não deveriam ter este tipo de formação, e que só a possuem, por serem membros de classes sociais mais altas. Aduz ainda que existe na sociedade humana outras tarefas nobres, não apenas àquelas relacionadas com a ciência, no que é falsa ? um utopismo ? a tarefa de incutir a crença que o estudante normal ou o professor poderão ser cientistas, visto que há em seu pensamento plena separação entre transmissão do saber e o ato criativo da ciência e, ainda, quanto aos seus usos. Ademais, a vocação para a ciência é algo muito especial e raro ? seria uma catástrofe ter muitos cientistas ? no que se conclui que o ensino profissionalizante deve ser oferecido para todos, ao passo que a pesquisa científica se mostra tarefa de poucos.
O ensino superior, para ele, necessita de profissionalismo e pesquisa ? esta que não deve predominar na universidade ?, embora as profissões de mercado sejam deveras distintas da de cientista. Ser professor, advogado ou médico é apenas um exercício de natureza científica, sendo que estes não são pensadores, juristas ou fisiólogos, justamente pela disparidade das tarefas. Por conseguinte, a atividade científica e o saber têm organização própria, distinta do processo de transmissão do conhecimento.
Ensinar, pois, não é fazer ciência, profissão, que então, tem que ser separada de ciência, que não é mera compra de equipamentos ou edificação de postulados, mas sim pesquisa pura, representada da criação ou visualização de problemas.
Claro que a aprendizagem profissional pressupõe a retenção e recepção do conteúdo científico, porém, isso, por si só, não representa pesquisa, pois o estudante não pode ser considerado um aprendiz-cientista, sendo no mesmo ínterim, necessário se reconhecer as limitações e a dureza da vida para se alcançar objetivos, ainda que nessa jornada igualmente seja necessário "flertar" com a ciência, interagir e beber dela.
Então, decreta Ortega y Gasset que não se poderá falsear, de maneira que universidade, sendo inexorável em exigir o conteúdo ensinado, só pode lecionar aquilo que o homem médio puder aprender. A instituição que fingir e exigir o que não pode é falsa, desmoralizada, sendo, porém, inspiradora da universidade do tempo em que nos falava o filósofo espanhol.
Nesse esteio, o seu pensamento se insurge contra o que entendia ser o atraso da Espanha, refletido em falta de vocação e qualidade na tradição científica do país, talvez propondo que um caminho próprio fosse encontrado, visto que no desenrolar de suas explanações sobre seu ideal e proposta ? similar à de uma Educação Geral ?, haver peculiar passagem de rejeição do modelo da universidade alemã ? a par de se lhes reconhecer algumas virtudes ? que, tão de perto, ele vivenciou e reconheceu contribuir para a sua formação, rejeitando, igualmente, o modelo francês e o próprio sistema educacional inglês, ainda que reconhecendo que este traz consigo características peculiares.
Ortega y Gasset pensa o tempo todo na questão universitária no contexto europeu ? vendo-a com grande preocupação ?, reconhecendo uma fisionomia homogênea nas universidades continentais, ainda que, como dito, reconheça particularidades na instituição inglesa. Lembra ele ? um jornalista ? de uma pobreza intelectual e espiritual que fez a sociedade crer na imprensa como a portadora desses valores, em tarefa, que, na verdade, deveria ser exercida pela universidade, no que, finalmente, traz à tona o seu ambicioso projeto da "Faculdade de Cultura", capaz proporcionar ao estudante uma visão clara de mundo condizente com a vida social de seu tempo, que lhe permita reconhecer os elementos do mundo pertinentes para o seu desenvolvimento enquanto profissional e membro do corpo social. Esse deveria ser o remédio imprescindível a ser agregado nas universidades, onde o ensino de cultura, a transmissão dela e a exposição da visão de mundo das gerações anteriores que buscaram a maturidade deveriam ser repassadas para as novas, somando-se as tarefas do ensino das profissões e da pesquisa científica e, também, na formação de novos homens de ciência.
Seria preciso um movimento de integração do saber despedaçado pelo mundo, e sem uma metodologia para o ensino superior, semelhante aos demais níveis de ensino, essa seria uma tarefa de difícil concretização.
Pensando, ainda que brevemente, esse quadro para a realidade brasileira, vê-se na mídia um modelo de publicidade no ensino superior não integrado, direcionado apenas para a formação supostamente desejada no mercado de trabalho, quase sem considerações com a formação geral do indivíduo, de maneira que o acesso a esse nível de ensino ? sem uma atenção maior a questões outras ? fica adstrito à imagem de ascensão social. Por oportuno, lembremos o diagnóstico feito por Pereira (s/d:77), onde,
Nesse sentido, vemos que as instituições de ensino superior que se propõem a oferecer uma formação profissional de acordo com as necessidades empresariais, apenas oferecem os saberes técnicos de cada área e não se vêm com responsabilidade de disseminar conhecimentos culturais, tornando clara a distinção das preocupações e da estruturação curricular entre uma instituição voltada para uma formação mais ampla e geral e uma voltada para a formação mais especificamente profissionalizante. A primeira intenciona difundir sabedoria, a última intenciona treinar competências e habilidades.
Se Ortega y Gasset em sua faculdade de cultura ? sem deixar de valorizar o conhecimento não-científico que funcionava em seus propósitos ? ensaiava um projeto de Cultura Geral/ Educação Geral, ao mesmo tempo, reconhecia a fragmentação do homem europeu e da própria Europa, conclamando que "cada um" se juntasse para que as peças desse quebra-cabeça fossem agregadas, onde, lembrando-se do quadro de sua época, assinalava a existência de profissionais despreparados, que sequer sabiam ensinar a própria área do conhecimento.
Trazendo consigo preocupações atinentes ao ensino superior europeu, o filósofo espanhol tece um projeto ambicioso para a universidade, que talvez, só se realize em uma perspectiva global no espaço da própria Europa ? que igualmente é objeto de suas preocupações ?, ainda que, obviamente, sem ter ele condições de antever as transformações que a assinatura do Tratado de Paris, de 1951 ? que encerrou a criação da Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA) ?, impulsionaria nas iniciativas de integração do continente, culminando na União Européia ? através do Tratado de Maastricht, de 1992 ? e, no campo da educação superior, no Processo de Bolonha ? iniciado com a Declaração de Bolonha, de 19 de junho de 1999 ?, que, em um viés prático, representa movimento de verdadeira reforma no ensino superior do velho mundo.
O projeto de Ortega y Gasset conclama pela libertação da ciência contemporânea das excrescências, mitos e manias alemãs, preservando, porém, a sua "parcela essencial", representada, segundo ele, nos relevantes quatro quintos de participação da Alemanha em sua formação, e na indiscutível superioridade da ciência desse país sobre as ciências praticadas nos demais.
A integração do saber, muito provavelmente, da maneira como desejada na concepção da Educação Geral, somente poderia acontecer com a edificação de um Espaço Europeu de Ensino Superior, que vê suas intercorrências e tentativas de desenvolvimentos nesse início de Século XXI.
Ortega y Gasset, por outro lado, influenciado em sua formação pela "Geração 98" ? que pugnava por uma europeização e renovação dos valores ibéricos ?, denunciava o predomínio de um "feudalismo", "de egoísmo, indisciplina, presunção e atitudes hieráticas" (p. 110), devendo a Europa buscar a sua salvação em uma adaptação rigorosa e inexorável, a qual propugnava para o futuro. Sua reflexão acerca da missão da universidade igualmente supunha um caráter peculiar, sintético e sistemático de suas disciplinas culturais, onde estas se refletiriam além do campo pedagógico propriamente dito, alcançando e enaltecendo a instituição universitária como o órgão de salvação da própria ciência.
Em uma de suas denúncias, o filósofo espanhol alardeava ainda o que chamou de uma "Europa doente", visto que se tentava alcançar objetivos grandes antes mesmo do alcance dos básicos, onde se fazia necessário plantar o destino para a aspiração do humano. No mesmo esteio, Ortega y Gasset se questionou se foi um acaso que, dentre tantos povos, guerras e épocas, somente os europeus tivessem universidades, no exercício de um misterioso desiderato do continente de viver a sua própria inteligência e autodeterminar-se. De forma heterodoxa, também celebra a Europa, ao mesmo que crê que ela é capaz de perceber suas limitações (p. 116).
Reconhecendo a necessidade de intercâmbio ? e não confusão ? Ortega y Gasset lembra que a universidade é institucional, o que não o é a ciência, no que não se pode ter tal união. A universidade deve ser um poder espiritual superior na sociedade, superior, como já dito supra à imprensa ? dizendo isso ele, no alto de sua fala, quando se considerava um jornalista ?, imprensa essa que se constituiu em um império indiviso e nem sempre orientado pelos melhores ideais. Esse, aliás, era o motivo do estado de grosseria e desorganização européias. Representando a serenidade e autoridade, opondo-se à estupidez, frivolidade e frenesi, a universidade poderá alcançar a sua missão maior, como o foi em seu melhor momento, representado no decreto final da obra "Missão da Universidade": "um princípio promotor da história européia".
Novamente se diga que grande contribuição de José Ortega y Gasset é pensar a educação no viés próximo ao da Educação Geral, entendendo a universidade como elemento propulsor espiritual da própria sociedade. Em processo de idas e vindas, surgem ondas de especialização e retornos ao ideal de Educação Geral, fazendo do terreno universitário o palco de disputas sobre modelos e concepções de apropriação e uso do conhecimento. Mas resta claro que o ideal de Educação Geral do filósofo espanhol realiza-se na universidade, restando alicerçado na tríade da transmissão da cultura, no ensino das profissões, e na pesquisa científica e formação de novos homens de ciência, que compõem as missões mesmas da universidade.
No presente momento desenvolvem-se escritos que pugnam por funções as mais variadas da universidade, inclusive sobre a identificação de sua missão e de seu papel em face da pós-modernidade, inclusive pela sua atuação em âmbito de Estado e do mercado. As possibilidades que se revelam, se não trazem um horizonte claro e lídimo, revelam possibilidades e gênio propositivo.
Ainda que dissertando não propriamente acerca do tema de "Educação Geral", mas sim da temática dos "Estudos Avançados" em nível mundial, e contribuindo para o aclaramento de caminhos e estratégias de realização de um ideal universitário, Pedro Paulo Abreu Funari (2010) nos coloca que eles, os "Estudos Avançados"
Surgiram e se caracterizam pela pesquisa desinteressada, de caráter interdisciplinar, do mais alto nível, tendo em vista o conhecimento tanto mais aprofundado, como relevante para a sociedade, sem os vínculos burocráticos e acadêmicos tradicionais que tantas vezes podem inibir os melhores frutos da pesquisa científica
no que podemos interpretar que movimentos como estes buscam criar as condições para a universidade ter maiores condições de relacionamento interdisciplinar com o conhecimento em busca de possibilidades outras no gênero humano. Prossegue o autor com colocações de grande sentido propositivo e que por todos os atores da vida universitária podem ser aproveitadas em fecunda reflexão, assinalando a contribuição dos Estudos Avançados, onde,
Dentre os muitos benefícios para a universidade está a incubação de pesquisa inovadora, de modo a injetar energia em atividades menos tradicionais e arriscadas, mas promissoras e prenhes de avanços substanciais. No dia a dia, a publicação de artigos em revistas especializadas constitui o cerne de cada disciplina acadêmica, leva ao acúmulo de pontos nas avaliações institucionais, nos diversos países. Isso tudo é muito positivo, em particular, para cada disciplina e para cada campo especializado de pesquisa, mas constitui, ao mesmo tempo, uma limitação à criatividade e à busca pelo desconhecido que pode levar a grandes avanços no conhecimento e no seu potencial de transformação da sociedade. Os Estudos Avançados nas universidades cumprem essa função muito especial e que transcende os limites disciplinares tradicionais.
Seja na Educação Geral e no campo dos Estudos Avançados, a inter, multi e transdisciplinaridade contribui para uma educação que traga melhores condições de formação ao ser humano enquanto indivíduo personagem de seu próprio e autêntico destino, no que a contribuição de José Ortega y Gasset ? no seu "Missão da Universidade" ? na identificação dessa proeminente necessidade, possivelmente localizando-a em um projeto de reforma da educação européia, se coloca como de grande relevância.
Rodapés.
(1) Tendo nomes como os de Ángel Ganivet (1865-1989), Jacinto Benavente (1866-1954), Pio Baroja (1872-1956), José Martínez Ruiz, o Azorín (1873-1967), Ramiro de Maeztu (1875-1936), Miguel de Unamuno (1864-1936) e o já citado António Machado, lembre-se, porém, que obras representadas no modernismo de autores como Juan Ramón Jiménez (1881-1958) e Ramón Maria del Valle-Inclán (1866-1936, pseudônimo "Ramón Valle Peña"), ainda que inseridas em um processo de renovação no ínterim do final do Século XIX e início do XX, não se encaixam ou pertencem à Geração 98 (Lexicoteca, s/d), ainda que haja divergências nessa classificação e sobre essa mesma afirmação.
(2) Continua Snow (1995:22-23): Gostaria de abordar dois dos mais profundos, um deles de cada lado. Primeiro, sobre o otimismo dos cientistas. É uma acusação tão freqüente que já se tornou chavão. Tem sido feita por algumas das mentes não-científicas mais argutas de hoje. Mas ela se origina de uma confusão entre a experiência individual e a experiência social, entre a condição individual de homem e a sua condição social. A maioria dos cientistas com quem tive boas relações sentiram (tão profundamente quanto os não-cientistas que conheci bem) que a condição individual de cada um de nós é trágica. Cada um de nós está só: algumas vezes escapamos da solidão, através do amor ou da afeição, ou talvez de momentos criativos, mas esses triunfos da vida são clarões de luz que produzimos para nós mesmos, enquanto a margem do caminho continua às escuras: cada um de nós morre só. Alguns cientistas que conheci tinham fé em alguma religião revelada. Talvez para eles o senso da condição trágica não fosse tão intenso. Não sei. Para a maioria das pessoas de sentimento profundo, por mais vivas e felizes que sejam, às vezes principalmente para aquelas que são as mais felizes e vivas, ele parece estar presente em suas próprias, parece ser parte da carga da vida. Isso é tão verdadeiro no tocante aos cientistas que conheço mais intimamente quanto a qualquer outra pessoa. Essa oposição e desconsideração entre cientistas e não-cientistas, segundo Snow, são os anti-sentimentos do outro, pois, se os cientistas têm o futuro dentro de si, a cultura tradicional reage com o desejo de que o futuro não exista. E é a cultura tradicional, diminuída minimamente pelo surgimento da cultura científica, que governa o mundo ocidental (1995:29).
11. Referências.
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FUNARI (2010), Pedro Paulo Abreu. Os Estudos Avançados e sua importância para as universidades. In: Jornal da UNICAMP, Campinas, 15 a 21 de novembro, p. 02.
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