Introdução

O corpus escolhido por mim é o do romance Coronel de barranco, de Cláudio de Araújo Lima, publicado em 1970, e o enfoque, quando eu estiver aplicando as contribuições de Maingueneau, recairá, principalmente, sobre o poder. Não o poder como lei, como proibição ou instituição, mas o poder como “relação de forças”, tal como Foucault (1979) o coloca em Microfísica do poder, chamado por ele de o “modelo guerreiro ou estratégico”. Mais adiante, teremos a oportunidade de lançar mais luz sobre a diferença entre esses dois modelos.

É importante que se diga, ainda, que o romance é, segundo Maingueneau, uma tipologia funcional à qual a AD, costuma recorrer, chamada de discurso narrativo, mas que constitui uma etapa preliminar, não o seu objetivo.

As contribuições que eu vou buscar em Maingueneau, sobre o que é e como analisar, são tomadas daquela que é considerada a sua Magnum opus, que é Novas tendências em análise do discurso, publicada pela editora Pontes em parceria com a editora da UNICAMP, em 1997, e que se subdivide em três partes. Também esclareço que não apresentarei a sua teoria solta, o que poderia levar à falsa ideia de que ele é o seu autor, mas procurarei relacioná-la com outros teóricos, que trarei para a discussão, tentando mostrar essa floresta terminológica na qual a AD está estruturada.

Alguns dados biográficos sobre o teórico eu vou buscar em outros textos, principalmente aqueles no formato de entrevistas. Dominique Maingueneau, por exemplo, é fluente em língua portuguesa, já esteve diversas vezes no Brasil, é professor da Universidade de Paris IV, e daí se tem um detalhe muito importante, que é o fato de ser um teórico ou um autor vivo, do alto de seus 65 anos.

O que é analisar?

Para Maingueneau, uma disciplina dessa natureza, que se presta a analisar o discurso, nasce de uma tradição francesa e marca o encontro entre “uma conjuntura intelectual e uma prática escolar”. Na primeira parte, intitulada “A instituição discursiva”, ele diz que em toda a Europa, mas em especial na França, é muito forte a “reflexão sobre os textos e história” (MAINGUENEAU, 1997, p. 9), a chamada “explicação de textos”. E este ponto é interessante porque essa prática se condensará em uma única palavra que é chave na análise de discurso, que é a exterioridade, ou a relação entre discurso e sociedade, a constitutividade sócio-histórica de um texto, que, como nós sabemos, não está ao lado do texto, mas o constitui.

Dentre os/as analistas do discurso, acredito que uma das que melhor enfatizam a importância deste ponto é Brandão, que diz o seguinte:

Numa perspectiva oposta a dessa concepção da analise do discurso como extensão da linguística, Orlandi aponta uma tendência europeia que, partindo de "uma relação necessária entre o dizer e as condições de produção desse dizer", coloca a exterioridade como marca fundamental. Esse pressuposto exige um deslocamento teórico, de caráter conflituoso, que vai recorrer a conceitos exteriores ao domínio de uma linguística imanente para dar conta da analise de unidades mais complexas da linguagem (BRANDÃO, 2002, p. 15).

Cleudemar Fernandes (2008) vai, igualmente, dizer que a língua se insere na história, logo, grande parte do que os sujeitos dizem é determinado pelas condições de produção ou “aspectos históricos, sociais e ideológicos que envolvem o discurso”.

Orlandi (2005, p. 16) diz que como a episteme da AD leva em conta três domínios disciplinares, formada pela Linguistica, pela Psicanalise e pelo Materialismo Histórico, ela busca por meio deste ultimo relacionar “o homem na sua história, considera os processos e as condições de produção da linguagem, pela analise da relação estabelecida pela língua com os sujeitos que a falam e as situações em que se produz o dizer”.

Maingueneau vai dizer que esse olhar para a exterioridade, ou como o social se relaciona com o linguístico, com o imanente, se trata do antigo olhar da filologia, pois a Análise do Discurso “se ocupou de uma boa parte do território liberado pela antiga filologia, porém com pressupostos teóricos e métodos totalmente distintos” (MAINGUENEAU, 1997, p. 10). Dentro deste território filológico, eu destacaria, por exemplo, a relação dos textos com a sua transmissão, que aponta para as condições de produção, ou mesmo a etimologia da palavra, filologia, em grego, “amante da discussão”, do discurso. Apenas lembrando que Maingueneau coloca isso como deixis discursiva, onde se deve distinguir entre locutor, destinatário, topografia (de onde se diz) e cronografia (em que momento ou conjuntura se diz).

Em Coronel de barranco, por exemplo, só é possível compreender essas palavras entusiasmadas de Henry Wickhan, o inglês que fugiu com as sementes de seringueiras, se tiver uma visão clara das condições de produção, a saber, da excitação, na Europa da segunda metade do século XIX, em relação à teoria da evolução de Darwin:

Com orgulho britânico disse-me que a cigana era a melhor prova de quanto estava certa a teoria de um sábio inglês, que provara estarem as espécies todas presas umas às outras, através de transições hoje quase impossíveis de encontrar [...] — Look, Matias, look. E mostrava-nos, assombrado, as garras de dragão em que terminavam as asas da cigana. Dizia-nos que se tratava de animal sobrevivente de uma fauna extinta, com aqueles inconfundíveis sinais de que, milhões de anos atrás, ela caracterizava a transição de um réptil à condição de ave [...] que aquela asa tinha sido o equivalente do braço [...] que aquele incomensurável Amazonas era um pedaço de mundo que ainda não havia acabado de nascer [...]

Eu destaco esta ultima parte do excerto, “que aquele incomensurável Amazonas era um pedaço de mundo que ainda não havia acabado de nascer”, porque, talvez, poucos saibam da importância e o papel que desempenhou a Amazônia na Teoria da Evolução. Dois amigos de Charles Darwin, Alfred Russel Wallace e Henry Walter Bates vieram para a Amazônia, enviados pelo Museu de História Natural de Londres e enviaram material zoológico e botânico que foi analisado por Darwin para entregar a teoria. Mas esse não é o meu ponto de interesse.

Ainda neste excerto, quando Wickhan fala da “teoria de um sábio inglês”, o narrativa de Coronel de barranco está fazendo uma citação, o que Maingueneau chama de “heterogeneidade mostrada”, uma outra palavra para a noção de citação de uma fonte, de forma explícita, claramente recuperável. E quando ele fala de “estarem as espécies todas presas umas às outras, através de transições hoje quase impossíveis de encontrar”, ela está realizando um intertexto, ou seja, se utilizando de um fragmento da teoria evolucionista.

Meu ponto de interesse, seguindo Maingueneau (1997, p. 10-11), é dizer que a AD, ao contrário da AC, não pretende percorrer os textos para codificá-los, mas “trazer sua contribuição às hermenêuticas contemporâneas [tampouco] se instituir como especialista da interpretação [isso aqui ele já diz citando Pêcheux], dominando ‘o’ sentido dos textos; apenas pretende construir procedimentos que exponham o olhar-leitor a níveis opacos à ação estratégica de um sujeito, [ou de] construir interpretações”.

A AD, portanto, não procura cristalizar as interpretações de um texto, tampouco remete “a uma disciplina conexa à linguística”, mas “define um campo de problemas da linguagem” (MAINGUENEAU, 1997, p. 13). Isso leva Maingueneau (1997, p. 11) a afirmar que “a análise do discurso depende das ciências sociais e seu aparelho está assujeitado à dialética da evolução científica que domina este campo”. Assim fazendo, ele está dialogando com dois teóricos, e cito esses dois sem nenhuma pretensão de ser exaustivo em meus exemplos: um é Terry Eagleton e o outro é Bourdieu.

Eu vejo muita semelhança entre essa afirmação de Maingueneau, ao dizer que a AD depende das Ciências Sociais, com o que Eagleton (2006, p. 298) afirmou sobre a teoria literária: “se a teoria literária é uma reflexão crítica sobre a crítica, segue-se, então, que também ela é uma não-disciplina [...]. Talvez a crítica literária e a teoria literária signifiquem apenas qualquer manifestação sobre um objeto chamado literatura”. Ela é mais um passeio, por assim dizer, por disciplinas como a história, a sociologia, a linguística, a geografia, a filosofia, a antropologia etc. A unidade dos estudos recai sobre o problema ou o objeto, literatura, assim como o da AD, o discurso, e o próprio domínio disciplinar ou filiação teórica dela aponta para isso. Como diz Maingueneau (1997, p. 17), citando um outro autor, “é preciso ser linguista e deixar de se-lo ao mesmo tempo”.

Já Bourdieu (1989, p. 59) fala de “conhecimentos que pude obter, no decurso dos anos, pela aplicação a universos diferentes do mesmo modo de pensamento”.

Maingueneau cita um autor que disse “esta corrente (a analise do discurso) parece a única na qual a sociolinguística é definida como tal, sem colocar-se a reboque de uma outra disciplina” (ACHARD, 1978 apud MAINGUENEAU, 1997, p. 13). E é bem de ver que quando a AD fala sobre identidades, um conceito fundamental, ela fala de algo que é muito próximo à noção de identidade ou papel social, tal como é tratado em Sociolinguística, ou seja, de um “tema que vem sendo discutido por filósofos e sociólogos nos chamados estudos culturais pós-modernos”, dentre eles Stuart Hall e Zygmunt Bauman. O conceito tem sido incorporado ao arcabouço teórico da Análise do Discurso, advindo do teatro, e constitui um dos pontos fulcrais para a determinação do tipo de sujeito discursivo.

Em Coronel de barranco, em virtude do caráter movente, transitório, plural, heterogêneo e deslocado da identidade, não seria descabido dizer que Matias Cavalcanti, o protagonista, assume cerca de dez identidades. Ao entrar naquilo que Stuart Hall (2006) chama de o “jogo das identidades”, ele troca de identidade conforme é interpelado. Assim, ao longo da narrativa ele é o sobrinho, primo, intérprete do Wickhan, estrangeiro (quando viaja), esposo, escriturador do armazém, seringalista, o repatriado e o sexagenário.

Ao se falar sobre identidade deve-se, por tabela, falar de descentralização e de deslocamento, pois o sujeito discursivo é descentralizado, deslocado, fragmentado, o seu discurso é constituído por outros discursos. No entanto, permanece o indivíduo (do latim, individuum), a essência, algo parecido com aquilo que Nietzsche (2002, p. 17) fala no Zaratustra, “o grande do homem é ele ser uma ponte, e não uma meta; o que se pode amar no homem é ele ser uma passagem e um acabamento”. Ou seja, permanece a passagem, o individuo, embora disperso por planos sociais diferentes. A imagem do homem como uma “ponte” traz Kierkegaard, que afirmava ser o homem uma síntese de finito e infinito. Ou Sartre (1987, p. 18), que dizia ser o homem algo que “está sempre por fazer [...] que está constantemente fora de si mesmo: é projetando-se e perdendo-se fora de si mesmo que ele faz com que o homem exista; por outro lado, é perseguindo objetivos transcendentes que ele pode existir”. Mas essa descentralização só não se transforma em ruptura por causa daquilo que C. S. Lewis chamou de “percepção da sucessão”, coisa que somente o sistema nervoso do ser humano, dentre todos os animais superiores, tem: consciência.

De acordo com Maingueneau, nem todos os discursos constituem, em principio, objeto de estudo da AD. Mas é preciso levar em consideração que “a Ad relaciona-se com textos produzidos no quadro de instituições que restringem fortemente a enunciação e nos quais se cristalizam conflitos históricos, sociais, etc” (MAINGUENEAU, 1997, p. 13).

O que interessa à AD, falando praticamente agora, segundo Maingueneau, são as formações discursivas. “Nesta perspectiva, nao se trata de examinar um corpus como se tivesse sido produzido por um determinado sujeito, mas de considerar sua enunciação como o correlato de uma certa posição sócio-histórica na qual os enunciadores se revelam substituíveis” (MAINGUENEAU, 1997, p. 14).

Em sua obra, ele apresenta a definição de formação discursiva dada por Foucault, em Arqueologia do saber, mas, aqui, eu opto por citar a de Fiorin, em Linguagem e ideologia, que diz: “é um conjunto de temas e de figuras que materializa uma dada visão de mundo. Essa formação discursiva é ensinada a cada um dos membros de uma sociedade ao longo do processo de aprendizagem linguística [...]. Assim como uma formação ideológica impõe o que pensar, uma formação discursiva determina o que dizer” (FIORIN, 1998, p. 32).

A partir dessa concepção, eu gostaria de destacar, em Coronel de barranco, dois pontos: primeiro a instituição, no romance, “que restringe fortemente a enunciação”, dos seringueiros, é claro; e segundo, os conflitos históricos e sociais ou posição sócio-histórica desses enunciadores que faz com que o que eles enunciam seja digno de estudo por parte da AD.

De antemão, é preciso fazer coro, com Pêcheux (2013, p. 4), e afirmar que “só pode haver aí uma única ideologia dominante, em um momento histórico dado”, devendo todas as demais serem tomadas como “ideologias dominadas, [assim mesmo] no plural”. Como não devemos nos esquecer de que “a ideologia dominante é a da classe dominante” (FIORIN, 1998, p. 32), é esse classe que forma a instituição que tenta restringir a enunciação da classe dominada. Ou, Marx e Engels (2000, p. 29): “os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa dada sociedade é também a potencia dominante espiritual”.

A ideologia dominante, em Coronel de barranco, é formada pelo conjunto daqueles que tinham o controle da economia gomífera: o seringalista, a casa aviadora (um grande comerciante que vendia a prazo e abastecia os armazéns dos seringais) e as companhias exportadoras do látex. Mas principalmente o seringalista, porque é em torno do eixo maniqueísta seringalista/seringueiro que vai se estruturar a maioria das ficções do ciclo da borracha, em especial, as da primeira fase, a começar por O paroara, de Rodolfo Teófilo, em 1899, até A selva, de Ferreira de Castro, em 1930.

É essa classe ou essa ideologia que está em embate com a formação discursiva dos seringueiros, e trabalha para “reforçar suas defesas sobre seus pontos de fragilidade, falhas e fraturas [pois uma formação discursiva possui fraquezas], que são também pontos de formação das ideologias dominadas” (PÊCHEUX, 2013, p. 18). E eu trago este excerto de Coronel de barranco para mostrar que esta ideologia dominante procurava restringir o discurso da dominada não somente por meio do poder que reprimia e dizia não à caça e à pesca (pois se os seringueiros caçassem e pescassem eles não comprariam no armazém do seringalista), não à presença feminina (pois se possuísse família, o seringueiro não viveria somente para o lucro do patrão, mas cuidaria de sua família, e quando morresse, vitima da malária, do beribéri, ou das feras, ou pelas mãos dos índios, o saldo iria para as mãos da esposa e dos filhos, e não nas mãos do seringalista), ou pela tática da intimidação. Mas domina porque ela se esforça para isso: para dominar, para se perpetuar.

Sessenta ou setenta cabeças de gado humano, levado por vários proprietários, que reforçavam seus rebanhos de quando em quando, à proporção que os preços da borracha subiam. Novos braços para o “fábrico”, assim mesmo no paroxítono, como se dizia no linguajar específico da extração da seringa (LIMA, 2002, p. 103).

Esse trecho, que diz “sessenta ou setenta cabeças de gado humano... novos braços para o fábrico” traz à tona o que disse Pêcheux (2013, p. 4), “a ideologia da classe dominante não se torna dominante pela graça do céu”. E eu iria ainda mais longe e diria que ela não domina de uma hora para a outra: ela se esforça para isso. Wagley (1988, p. 110), antropólogo americano que trabalhou no Brasil na década de 40, declara que “proprietários de seringais enviavam seus agentes aos Estados nordestinos a fim de aliciarem homens para a extração de borracha no Vale Amazônico”. Até porque, com o passar do tempo, muitos morriam no inferno verde. E isto se coaduna com o que vai dizer Althusser (1980, p. 9), ao dizer que “até uma criança sabe que se uma formação social não reproduz as condições da produção ao mesmo tempo que produz não conseguirá sobreviver um ano que seja. A condição última da produção é, portanto, a reprodução das condições da produção”. Essa reprodução das condições de produção está, portanto, ligada à capacidade de imaginar a sua dominação, algo bem parecido com o que diz Ortega y Gasset (1987) em relação ao Estado, em A rebelião das massas:

Não há criação estatal se a mente de certos povos não é capaz de abandonar a estrutura tradicional de uma forma de convivência, e, além disso, de imaginar outra nunca sida. Por isso é autêntica criação. O Estado começa por ser uma obra de imaginação absoluta [...]. Um povo é capaz de Estado na medida em que saiba imaginar. Daí que todos os povos tenham tido um limite em sua evolução estatal, precisamente o limite imposto pela Natureza a sua fantasia.

O segundo ponto destacado por Maingueneau são os conflitos históricos e sociais dos enunciadores, o que aponta para um dos “três níveis entrelaçados” que compõe a realidade humana, como põe Zizek (2010), que é o simbólico. Como este é uma estrutura furada ou falha, outros sujeitos ou sociedade vão ocupar a posição, mas estruturas ou regras de funcionamento estarão presentes em Coronel de barranco, se repetem, fato que eu vejo como próximo do que Jung falou sobre o inconsciente coletivo ser “a formidável herança espiritual do desenvolvimento da humanidade que nasce de novo na estrutura cerebral de todo ser humano”. Destaco, aqui, a expressão “que nasce de novo”, pois tudo indica que há uma “estrutura psicopsicológica do animal social, o Sapiens sapiens”, como afirma Durand (1998, p. 93), seja em forma de “arquétipos” ou de “imagens universais”, como coloca Jung (2000b, p. 16), seja como “formas inteligíveis ou incorpóreas”, como as colocou Platão (1991, p. 274), o que permite que essas regras de funcionamento se repitam.

Em Coronel de barranco, por exemplo, escapa à corrosão do tempo o maniqueísmo ou o conflito cósmico entre explorador e explorado, a diferença, aqui é que se dá entre seringueiro e seringalista. Daí Marx e Engels, em A ideologia alemã, dizerem que “a história não é mais do que a sucessão das diferentes gerações” (MARX; ENGELS, 2000, p. 21).

Repete-se, ainda, o desequilíbrio humano, do ser de linguagem, que é o ser humano ou a sera humana, em forma de angústia, de sofrimento, de miséria e de desespero. A questão é que entra o meio físico amazônico, essa muralha verde, magnifica, mas ao mesmo tempo indiferente à angústia humana e à sua miséria. Para Maingueneau (p. 31), essa noção de regras foi tomada “junto ao domínio do jogo [...]. As regras dao conta das regularidades exatamente da mesma maneira que as regras de futebol dao conta das regularidades apresentadas em uma partida de futebol”.

O que eu acabo de mostrar, ao falar das formações discursivas, constitui, segundo Maingueneau (1997, p. 21), a “AD de primeira geração, aquela dos fins dos anos 60 e inicio da década de 70, procurava essencialmente colocar em evidencia as particularidades de formações discursivas (o discurso comunista, socialista, etc.)”

Maingueneau recomenda, ainda, que o analista do discurso esteja atento ao que ele chama de “ethos” enunciativo. Para ele “nao basta falar de ‘lugares’ ou de “deixis”, pois o “discurso é inseparável daquilo que poderíamos designar muito grosseiramente de uma ‘voz’” (MANIGUENEAU, 1997, p. 45)”. Em outras palavras, “o que é dito e o tom com que é dito são igualmente importantes e inseparáveis”. Mais diretamente ainda, por meio do ethos, “pode-se localizar as características mais marcantes que a formação discursiva impõe ao "tom" de seus autores e definir o ideal de entonação que acompanha seus lugares de enunciação” (p. 46).

Aristóteles, segundo ele, na Retórica, já havia chamado atenção para esse fato, quando sinalizou que os oradores conferiam à sua maneira de dizer propriedades que apontavam implicitamente para um certo caráter, corporalidade ou “traços psicológicos que o leitor-ouvinte atribui espontaneamente à figura do enunciador, em função de seu modo de dizer” (p. 46), o que eles revelam pelo próprio modo de se expressarem.

Coronel de barranco, conquanto seja um corpus escrito, permite a observação do ethos enunciativo da formação discursiva dominante ou da ideologia dominante, que era a daquela que controlava a economia gomífera. Para Maingueneau, “os corpus escritos [sic] não constituem uma oralidade enfraquecida, mas algo dotado de uma voz” (p. 46).

Assim, podemos ver neste trecho, que mostra o dia do aviamento, quando os seringueiros compravam no armazém o que iam precisar para a primeira semana de corte, o caráter de intimidação por parte do coronel, os traços psicológicos de alguém, como é habito dizer, curto e grosso, que por estar lidando com brabos, como era chamado o seringueiro recém-chegado, achava que não precisa usar de tato ou humanidade, que levava a sério o adágio romano, depois nazista, de que é melhor ser temido do que respeitado:

_ Como é o nome?

_ Do padre?

_ Não se faça de besta. O seu nome?

_ Joca.

_ Joca não é nome de gente. Não foi batizado?

_ Batizado e crismado, graças a Deus.

_ Então?

_ Desculpe, coronel.

_ Quero o nome todo, pra assentar no livro.

_ José Maria Silvino.

_ Silvino? Família de cangaceiro.

A essa mescla entre a formação discursiva e o ethos, essa maneira de dizer, esse modo de se expressar, Maingueneau dá o nome de incorporação.

Na segunda parte da obra, intitulada por ele de “A heterogeneidade”, Maingueneau (p. 116) também introduz o conceito de universo discursivo para falar do “conjunto de formações discursivas de todos os tipos que coexistem, ou melhor, interagem em uma conjuntura”. As formações discursivas, portanto, que aparecem em Coronel de barranco, ou seja, aquelas pertencentes à conjuntura de Manaus da época da borracha formam o universo discursivo do romance. É um conceito bem próximo à noção foucaultiana de arquivo, a saber, “o conjunto de enunciados constitui o arquivo de uma época. Este conjunto nao e a coleção de um espaço homogêneo (o espirito de uma época, um estado de cultura ou de civilização), de tudo que foi dito, de tudo o que se diz, mas um conjunto de regiões heterogêneas de enunciados produzidos por praticas discursivas”.

Quando duas formações discursivas, como são a dos seringueiros e a dos seringalistas, no romance, “se encontram em relação de concorrência, em sentido amplo e se delimitam, pois, por uma posição enunciativa em uma dada região” (MAINGUENEAU, 1997, p. 116), dá-se a isso o nome de “campo discursivo”.

A respeito dessa noção colocada por Maingueneau, eu gostaria de dizer duas coisas: primeiro algo sobre a sua importância para o analista de discurso; e a segunda, uma associação dessa ideia a algo que remete, por tabela, a Pêcheux e a Marx e Engels. Em relação ao analista, é cara esta noção porque, segundo Maingueneau, nem todas as oposições são importantes. Assim, ao montar o seu corpus e o seu dispositivo de analise, ele deve beneficiar ou dar preferencia para aquele campo discursivo ou “espaço discursivo” cujas FD “mantêm relações privilegiadas, cruciais para a compreensão dos discursos considerados”. Nas palavras dele, “certas oposições sao fundamentais, outras nao desempenham diretamente” (p. 117).

Abrindo aqui um parêntesis e trazendo essa ideia para a cultura popular, percebemos que essas oposições (chamadas, em Antropologia, de “oposição binária”, como coloca Levi-Strauss, ou “pares de oposição”, para aquele que é considerado o pai da antropologia inglesa, Edmund Leach), onde elas se desenvolvem de forma fundamental ou crucial, levam o desenvolvimento da cultura ou da economia ad infinitum. Em tal caso, poderíamos citar a oposição fundamental que se desenvolveu entre os bois garantido ou caprichoso, diante da a oposição entre outros bois ou entre suas FD, de insignificantes que são, chegam a não interessar. Durand (1998, p. 83) chama isso de “conivência dos contrários, uma cumplicidade onde um elemento existe pelo outro”. Não é possível entender o garantido sem o caprichoso, e vice-versa, assim como o leno significado só advem durante a contemplação de um céu noturno estrelado, como diria Cassirer (1992, p. 27). Não pretendo multiplicar muito meus exemplos, mas poderíamos citar a oposição entre Barcelona e Real Madrid, onde a liga BBVA ou La liga, só interessa ou é uma liga rentável, conseguindo vender seus direitos de imagens para os canais esportivos do mundo inteiro, em virtude da oposição crucial que se estruturou em torno desses dois clubes. Os outros clubes, com exceção de um Atletico de Madrid, ou de um Villareal de 2008, quase não interessam.

O segundo ponto, que remete a Pêcheux e a Marx e Engels, é que em virtude e grande parte da relação de oposição que FD gozam entre si, FD opostas se formam no mesmo espaço discursivo. Ele diz: “a burguesia e o proletariado são formados e organizados juntos no modo de produção capitalista, sob a dominação da burguesia e, em particular, da ideologia burguesa” (PÊCHEUX, 2013, p. 7). E Marx e Engels (1999, p. 18) afirmaram que “com o desenvolvimento da burguesia, isto é, do capital, desenvolve-se também o proletariado, a classe dos operários modernos, que só podem viver se encontrarem trabalho, e que só encontram trabalho na medida em que este aumenta o capital”.

Na terceira parte, “As palavras do discurso”, ele trata do estudo do léxico e do lugar importante que ele ocupa na consciência dos locutores. Ele diz: “qualquer que seja a questão dominante da AD, nela o estudo do léxico ocupa um lugar importante” (p. 129). Colocando em palavras mais claras, a importância do estudo do léxico, em AD, se mostra, por exemplo, através da possibilidade de se reconhecer ou identificar uma formação discursiva por meio de “palavras características, objeto de amor ou de ódio” (p. 129).

E aqui é digno de nota o jogo de palavras que Cleudemar Fernandes faz, em seu livro, entre os léxicos “ocupação” e “invasão”: ocupação usado pelo MST, e invasão, o léxico usado pelos proprietários, latifundiários. Eu identifico uma dessas duas FD por meio da escolha entre esses dois léxicos. Orlandi (2005, p. 40) chama isso de formações imaginárias, ou seja, na “posição discursiva”, eu consigo distinguir o lugar e a posição de onde um sujeito fala, e nessa projeção ou formação imaginária, o léxico desempenha papel importante. Esse conceito, segundo Brandão (2004, p. 44), nasceu da tentativa de Pêcheux de dar uma definição para as CP. Nas palavras dela, as formações imaginárias é a imagem que destinador e destinatário fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro.

Maingueneau dá a essas palavras gatilho de pressuposição o nome de termos-pivôs. Em Coronel de barranco, são termos-pivôs a palavra “estrada”, que em posição discursiva, é associada à FD dos seringueiros, brabo e manso, que remete à FD dos seringalistas, que era como eles diferenciavam o seringueiro recém-chegado daquele experiente e já acostumado ao regimento dos seringais.

Considerações Finais

Enfim, tentei aqui apresentar, em linhas gerais, aquilo que Dominique Maingueneau considera o que é fazer análise e como fazer análise em AD, conforme está em sua obra máxima, que é Novas tendências em análise do discurso. Este foi o meu trabalho.

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