Leite e Callou (2004), em sua obra Como falam os brasileiros, apresentam uma leitura de extrema importância para formação do estudante de Letras, bem como para os de todas as áreas direta ou indiretamente ligadas ao estudo da língua/linguagem, sob uma perspectiva sociolinguística. Denota-se, de início, o cuidado em relação à pesquisa, utilizando-se de aspectos minuciosos que caracterizam a identidade do falante, levando-se em conta fatores como faixa etária, gênero, escolaridade, país de origem, região, estado, cidade, comunidade, etc.

A obra reflete, principalmente, sobre os dialetos de Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife (centros urbanos, nas palavras das autoras, "irradiadores de cultua”) por serem “quatro cidades fundadas no séc. XVI e uma (Porto Alegre) no séc. XVIII, distribuídas por nossa extensão territorial mais densamente povoada, correspondendo, grosso modo, às regiões geográficas do Sul (POA), Sudeste (SP e RJ) e Nordeste (SA e RE)”.

O dialeto baiano tornou-se bem quisto pelos falantes de todas as regiões por exibir um ritmo “gostoso” de ouvir, mais precisamente o de Salvador, que tem uma marca geral acentuada e varia menos em relação ao de outras localidades da Bahia, sendo muito explorado pela mídia em geral, tornando-se um forte aspecto de diferenciação dos artistas soteropolitanos. Essa característica (a fala ritmada), porém, foi pouco ressaltada pelas autoras, que deram destaque a trejeitos tipicamente nordestinos, como a utilização de vogais abertas e às semelhanças com outros dialetos, talvez para frisar a questão de suas raízes, que se faz de importância cânone para que se possa compreender mais facilmente elementos que constituem a fala de dada região.

Dentre as semelhanças e diferenças dos dialetos brasileiros podemos enfatizar fatores que despertam curiosidade, como o fato de o dialeto de Recife, apesar de localizar-se no Nordeste, por diversas vezes, assemelhar-se muito mais ao dialeto de Porto Alegre do que ao próprio dialeto de Salvador, da mesma região. O interessante nisso tudo é o fato de as diferenças e semelhanças ultrapassarem fronteiras. O dialeto carioca, por exemplo, que é tido como padrão entre todos os falares Brasileiros, incluindo-se entre os pertencentes à região Sudeste, em alguns aspectos apresenta fala semelhante à de outra região. Exemplo: O r é semelhante ao de Salvador e ao de Recife. A principal marca que o caracteriza, seu famoso e inconfundível chiado, assemelha-se apenas ao de Recife. Tal pluralidade enriquece a Língua Portuguesa do Brasil, que eu chamaria, com Orlandi (1998), de língua brasileira.

O dialeto carioca há muito é destacado como referência em relação aos de outras regiões do Brasil. Há argumentos que podem servir de defesa para o estabelecimento desse padrão, como o fato de o Rio já ter sido Corte e Capital da República, ou ainda por possuir a menor taxa de analfabetismo entre as 12 maiores capitais brasileiras, além da maior média nacional no que tange ao nível de escolaridade da população (LEITE e CALLOU, 2004) . Assim, o Rio constitui o que autoras designam como “denominador comum da realidade brasileira”. Detalhando o falar carioca, Leite e Callou (2004) ressaltam a questão das diferenças entre este e os de outras regiões, além das variedades linguísticas que circulam no próprio Rio de Janeiro e têm a ver com questões regionais e socioculturais, mas também com o aspecto econômico.

A cidade do Rio de Janeiro costuma ser caracterizada como um espaço de contrastes, seja no plano geográfico, seja no plano socioeconômico, e é raro encontrar, no mundo atual, uma cidade tão diversificada. Esse quadro não é recente, a julgar por depoimentos de viajantes que passaram pela cidade no século XIX, e que contribuíram para traçar o perfil socioeconômico do local: “os diferentes idiomas da multidão dessa gente, de todas as cores e vestuários, se cruzam”.(Leite & Callou, 2004)

Tendo em vista que as multiplicidades socioeconômica, geográfica e cultural se refletem nos falares, e tais pluralidades se fazem latentes na Cidade Maravilhosa, permanecem as indagações: que linguajar carioca representa o padrão? o de Madureira ou o de Copacabana? o de Ipanema ou o de Bangu? ou seria o de grande parte dos veículos de comunicação? mas a própria norma culta não é apenas uma das incontáveis facetas do idioma? sendo assim, pode-se inferir que o padrão possui vários padrões? ou seria mais lógico supor que o padrão é “despadronizado”, ou ainda: o padrão possui vários padrões?

Yonne Leite e Dinah Callou exemplificam, com base em dados estatísticos, os motivos que tornam o linguajar carioca padrão, apontando as diferenças existentes na língua, dentro do próprio estado, marcadas, muitas vezes, por contextos sociais e educacionais vinculados à qualidade ou à ausência de qualidade de vida. O leitor parte de pontos que o conduzem a conclusões baseados baseadas em dados estatísticos. Segundo as autoras, mesmo variando dentro do próprio estado, o dialeto carioca é o que menos apresenta marcas, características que o tornam inconfundíveis, seja o de Madureira o de Jacarepaguá, o da Zona Norte ou o da Zona Sul.  No entanto, classificar algo como culto na relação com o "não-culto" é uma prática, sempre e sobretudo, política.

A pronúncia do "r" é um marcante elemento para a distinção dos dialetos. A mesma apresenta-se de modo rolado nos falares gaúcho e paulista, apresenta-se também com ausência do seguimento, sendo o Rio de Janeiro o lugar que exibe com maior freqüência esta variação tida como nova. Como, por exemplo, em: Tá afim de nadá hoje? O r no final do verbo nadar tem sido praticamente abolido. No interior paulista, o r retroflexo é inconfundível. Curioso como as mesmas pessoas que dizem incomodar-se com o r do interior paulista, demonstram identificação com línguas estrangeiras como o inglês. A pronuncia do r em inglês é semelhante e, não raro, os mesmos que demonstram aversão ao r paulista, não se opõem à pronuncia do inglês. Talvez se possa concluir que haja um certo preconceito, ou uma automatizada valorização da língua e da cultura estrangeiras. Vira-latices

Outra variante marcante na língua falada no Brasil é o s, que se apresenta de diversas formas, dependendo de onde o pronunciam. A pronuncia de Recife assemelha-se à carioca no chiado. No centro do Rio de Janeiro, onde inicialmente residiu a corte portuguesa, o índice de s chiado chega a 96%. Especula-se que esse chiado tenha vindo com corte de D. João VI, mas ainda restam dúvidas, pois, se for essa a causa, falta explicar de onde vem o chiado de Recife e de Alagoas, por exemplo.

No campo dos estudos gramaticais, em sua Moderna Gramática Portuguesa, Evanildo Bechara afirma que “temos de ser poliglotas de nossa própria língua”. O que isso sugere? Ora, um ensino de competência que, raramente, é priorizado nas escolas. É clichê a afirmação de que ser linguisticamente competente é adequar a fala à situação em que é produzida, já que isso parece suficientemente definido e compreendido, sob a influência da Sociolinguística. Não há dúvidas de que a questão da adequação deve ser preservada, mas necessita-se de considerar a escolha do linguajar pertinente a cada circunstância como estando abocada a uma série de possibilidades de uso pré-adquiridas, pré-definidas.

Para a sociolinguística, todas as variações da língua são eficazes, enquanto ferramentas de interação, já que os indivíduos interagem uns com os outros sem quaisquer transtornos. Contudo, e se pensarmos sobre sujeitos se mantêm aprisionados em suas comunidades, visto que seu linguajar não dá conta de uma socialização em todos os níveis? são tachados, desse modo,  de esdrúxulos pelos que se consideram mais cultos, pois contrariam os preceitos da Norma Soberana.

          Os que desconhecem a linguagem dos guetos certamente a estranham, não possuem uma competência para adequar sua fala à realidade da periferia, pois são raríssimas as situações em que precisam estabelecer contato com ela. Para eles, basta dominar o aclamado padrão e/ou, em alguns casos, linguajares pertinentes ao seu âmbito de convivência para que estejam supridas suas necessidades de interação via língua. Mas de que maneira sujeitos “periferificados” terão acesso a outros registros, especialmente o padrão, que é, inevitavelmente, indispensável a certas aquisições, se as portas das demais entradas do social permanecem cerradas, no que tange à educação e cultura?

Qual é a relação entre o choque linguístico e colisão/divisão socio-política? Os centros urbanos se destacam como universos que, economicamente, sustentam a periferia, no exercício da reclamada dominação social.  Basta ver quantas pessoas descem os morros e saem das favelas, ainda de madrugada, para trabalhar no asfalto . A periferia, enquanto se destrói, serve à administração da estrutura central, e só ganha destaque quando seu aniquilamento deixa de ser apenas autoflagelo e resvala sobre o centro. O problema é que isso ocorre há séculos. Eram os brancos que erguiam as estruturas da Corte? Não. Eles gozavam e “se gabavam” de toda a beleza e conforto produzidos pelas mãos de miseráveis. Os atributos de seu “mundo”, o prazer e o prestígio se produziam por “alienígenas”, que sequer tinham condições repousar com o mínimo de aconchego. Alguma mudança?

Alguns livros didáticos reforçam, inevitavelmente, pois a escola está vinculada à preparação do sujeito para o mundo do trabalho, o valor de prestígio atribuído à variedade padrão, deixando explícito que quem não a domina é dominado por ela, correndo o risco de ser desqualificado. O problema está em “exclusivizar” o padrão.

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