Como é possível um imperativo categórico?[1]

João Gilberto Engelmann[2]

A pergunta do cabeçalho é feita por Immanuel Kant, quando, em meados da Metafísica dos Costumes, e justificando a passagem desta à crítica da razão prática pura, intui um questionamento do futuro leitor. Certamente, após ler seu esboço, o interlocutor ficaria tentado a dizer: mas como isso é possível?, ainda que sabendo que o imperativo diz respeito a uma necessidade inerente à própria vontade quando está prestes a agir, enquanto exigência da liberdade. No contrário, se não houvesse uma necessidade ligada a essa vontade, o que estaria intrínseco a ela seria algo de causal, de forma que não serve aquilo que tem leis fora da própria inteligibilidade humana.

O imperativo categórico funda a possibilidade da moral. Ele propõe a universalização da ideia que evoca, no sentido de ação do sujeito. Esse sujeito passa, por isso mesmo, a ser um legislador universal, à medida que os princípios subjetivos, máximas, que o levam a agir podem ser tomados como fundamento da ação de qualquer ser racional.

Porém, isso tão somente explica o que é o imperativo, mas não diz sobre sua origem e necessidade, ou até mesmo sua possibilidade[3]. Essa parte de sua fundamentação remete-nos à clássica divisão do mundo em sensível ou fenomênico e inteligível. Enquanto partes daquele, somos fundados por leis da natureza que agem de modo a remeter a res extensa[4], essa mescla de sensibilidade,a uma heteronomia das normas reguladoras. Significa dizer que enquanto sensíveis, não somos autônomos quanto às ações. Todavia, como partes do mundo inteligível, nossa vontade possui uma propriedade de agir conforme essa mesma racionalidade, à medida que somente a razão lida com a liberdade, que é essa propriedade, assim como o entendimento trata das determinações do conhecimento sensível.

Kant prossegue:

"Se eu fosse um mero membro do mundo inteligível, todas as minhas ações estariam em perfeita conformidade com o princípio da autonomia da vontade pura; (assim também) como simples partes do mundo sensível, teriam de ser tomadas como inteiramente de acordo com a lei natural dos apetites e inclinações e, portanto, da heteronomia da natureza." (KANT,2003)

Nesse sentido, o homem não faz parte somente de um dos mundos, mas de ambos, sendo, porém, o mundo inteligível, o fundamento daquele. Enquanto fundamento, fornece à ação humana princípios que orientem sua ação, na medida em que o agir humano transcende as determinações naturais. É nesse mundo inteligível que a liberdade se desenvolve e afeta a vontade para a ação. Repete-se: a liberdade habita o mundo inteligível, à medida que não admite a intervenção do mundo fenomênico em seus desdobramentos, que se dão em relação a vontade.

Essa não permissão dá à razão pensante o estatuto próprio da moralidade, ao passo que somente será moral a ação que não se inclina pelos sentidos, mas tão somente é movida livremente a partir de uma vontade que se auto-regula, ou seja, uma vontade autônoma. Significa, ainda, que a máxima que origina a lei da ação jamais deverá ser proposta com base numa influência dos fenômenos. Enquanto moral, a ação é necessariamente desprendida dos resquícios do mundo sensível. Assim, toda ação que ampara sua motivação nos sentidos, poderá até ser considerada conforme o dever, ainda que não pelo dever.

Dito rapidamente, esse distinção que separa uma ação conforme o dever de outra por dever contrapõe as motivações que originaram a ação. Na primeira, a vontade objetivada apenas condiz com o núcleo motivador da ação em si, sem lhe ser estranha, mas sua natureza se radica em algo que está fora de si mesma, ou seja, na sensibilidade. Quando uma ação é por dever, então ela não somente condiz, mas, como vontade livre, determinou-se a si mesma. Assim, por mais que a ação da vontade inclinada pelos sentidos tem, na prática, o mesmo resultado da ação livre, ainda assim não poderá ser considerada ação moral. Esta requer que a máxima que a determinou tenha prescindido completamente dos sentidos.

Retomando aquela anterior proposta de justificação do imperativo categórico, e tendo em mente que não é o homem somente parte do mundo inteligível; e que, sendo parte do mundo sensível requer um norte que direcione a vontade a partir da propriedade da liberdade, vigente tão somente naquele complexo racional, então surge a necessidade de se expressar mais objetivamente o que é este norte que direciona, então, a vontade: é o imperativo categórico.

O imperativo categórico é o instrumento pelo qual a vontade segue um itinerário para agir. Ou seja, ela sabe que somente deve agir tendo em vista a universalização da sua máxima, o que significa agir de maneira autônoma, livre. Nesse sentido, dizer que a vontade é autônoma é o mesmo que dizer que é livre. A liberdade é, portanto, guiar a vontade de maneira a dar a lei a si próprio e, pelo imperativo categórico, estendê-la a todo ser racional.

Assim, o imperativo é possível e necessário à medida que sozinho, por fazer parte daqueles dois mundos, o sujeito teria a sua ação radicada na sensibilidade, não sendo, por isso, jamais detentor de sua liberdade. Além de orientar-lo, o imperativo torna possível a existência de ações universais, ou seja, que todos podem praticar sem prejuízo à liberdade.

Todavia, as críticas que se seguem à moralidade kantiana, sob o título de moral formalista, originam uma bibliografia que, desde Hegel, traçam o perfil da filosofia kantiana. Se por um lado essa filosofia representa um avanço em relação a teoria do sujeito, por outro a remete a uma estrutura abstrata que, mesmo o considerando parte do mundo das coisas, não produz relevância para a prática da liberdade, que se faz sentir também como abstrata. Se é possível fundar o imperativo categórico sob a égide de uma estrutura formal que faça do sujeito alguém livre pela vontade que se auto regula, então estaríamos dando um passo somente no que diz respeito a possibilidade de uma construção lógica das formas morais. Não significa que, sendo possível, seja aplicável, justamente pelo teor formal que a torna, grosso modo, propriedade de um ser que não vive no mundo sensível.

Por fim, e tomando como base as palavras de Hegel, o passo de Kant foi o de dar ao sujeito as rédeas da moralidade no sentido de serem fundadas a partir de si. No entanto, essa Moralität inaugura o movimento inicial da filosofia moral rumo a sua determinação objetiva, ou seja, quando a ação livre toca o terreno da sociedade e acaba concluindo uma moralidade objetiva, Sittlichkeit, em termos hegelianos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2003

________________ Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária, 1993.

HEGEL, Georg Whillelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. Trad. Norberto de Paula Nóbrega. Petrópolis: Vozes, 1997.

CIRNE LIMA, C. R. V. O dever-ser- Kant e Hegel. Filosofia política, Porto Alegre, v.4,p66-87, 1987.

ROANI, Alcione Roberto. Moral e direito: Kant versus Hegel. Passo Fundo: IFIBE, 2006.

____________________A Aplicabilidade das objeções hegelianas: à ética kantiana e à ética discursiva. Perspectiva, Erechim, v.26, n.94, p.55-64, jun. 2002.

SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e igualdade. 2ed. Belo Horizonte: UFMG, 1996.

SILVA, M.Z.A. História e Astúcia da razão em Kant e Hegel.Fragmentos de Cultura. Goiânia: Ifiteg, SGC/UCG, v. 13, p.99/113, out. 2003.mplo em um tratado internacional entre naçciais, como o direito



[1] Trata-se da pergunta do próprio Kant, encontrada na seguinte obra, página 86: KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2003.

[2] Acadêmico de Filosofia e Direito.

[3] Localizado em lugar específico, o fundamento que possibilitaria enunciar a possibilidade da moral situa-se no plano do imperativo categórico. Quando Kant desmembra a moralidade dos sentidos, do que é externo ao ser, além de situá-la no plano da liberdade que abstrai o fenômeno, cria o Imperativo categórico como meio pelo qual o indivíduo se auto-legisla; com ele, ainda, evoca-se uma possibilidade universalizadora da moral, no sentido de estendê-la aos demais entes racionais.

[4] Coisa extensa, na definição cartesiana.