Como cometemos os nossos infanticídios?

Eu nasci em Águas Belas ? PE ? a cidade esta situada no centro de uma possessão indígena, la habitam os Fulniôs, ou Carnijós ou ainda, Carijós ? raça de guerreiros valentes que comiam os seus inimigos. Tribo aculturada que mantém até hoje a sua língua viva o Ia-tê - e também praticam, um ritual sagrado e secreto de sua religião ? o Ouricuri.

No ritual do Ouricuri, o Ia-tê desempenha um papel fundamental, já que é a língua preferencialmente falada durante as suas quatorze semanas de duração. É aí que se socializam os membros mais jovens pelo ensino de um código simbólico diferente daquele utilizado pela sociedade envolvente.

Outra curiosidade interessante foi o processo de demarcação das terras dos índios fulniôs, cuja disputa com o homem branco começou no século XIX e só foi concluído em 1928, como segue:

Em 1928 esta área foi dividida por representantes do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, que então incluía o Serviço de Proteção aos Índios. Da divisão resultaram 400 lotes de 550 x 550 metros (30,25 hectares) e mais outros 27 lotes de menor extensão com dimensões irregulares. Em 14 de maio de 1929 os Fulniô receberam títulos individuais da terra que possuíam, de caráter provisório, expedidos pelo mesmo Ministério. Embora em 1929 cada família Fulniô tenha recebido um lote, na atualidade algumas carecem de terra. http://pib.socioambiental.org/pt/povo/fulni-o/494

Esses índios, segundo o último senso de 2010 constituíam de 4.336 pessoas, são sustentados por uma taxa paga pela Prefeitura de Águas Belas ? uma espécie de laudêmio, que se entende como uma ´espécie de aluguel pelo uso da terra`, essa taxa embora possa parecer um benefício, sob determinado ângulo, ao meu ver, trás mais dissabores do que benefícios, porque o benefício auferido sem a contrapartida do trabalho gera ócio e atraí todos os vícios que decorrem da preguiça e da comida fácil. Combinação que degenera os valores humanos.

No passado recente não era assim, de um modo geral a qualidade da vida indígena sobressaia aos costumes dos povos conquistadores, principalmente, porque, ao respeitar a terra, viviam em plena e total harmonia com a natureza, tirando dela o necessário à sua vida e preservando e cultuando uma vida de modo altamente ecológico e inteligente, conservando, integralmente, para gerações futuras o meio ambiente.

Eu, particularmente, chamo a isso, de evolução social. Vejamos abaixo registros desses hábitos, que no seu conjunto ou isoladamente, constituem hábitos saudáveis para qualquer povo da face da terra, além de representar um dos melhores ensinamentos que se pode adquirir durante a vida de um homem:

- Os índios brasileiros se alimentam exclusivamente de alimentos retirados da natureza (peixes, carnes de animais, frutos, legumes, tubérculos);
- Costumam tomar banho vários vezes por dia em rios, lagos e riachos;
- Os homens saem para caçar em grupos;
- Fazem cerimônias e rituais com muita dança e música. Costumam pintar o corpo nestes eventos;
- Desde pequenas as crianças são treinadas para as atividades que deverão desempenhar na vida adulta;
- Realizam rituais de passagem entre a fase de criança e a adulta;
- Moram em habitações feitas de elementos da natureza (troncos e galhos de árvores, palhas, folhas secas, barro);
- Fazem objetos de arte (potes e vasos de cerâmica, máscaras, colares) com materiais da natureza. Esta atividade é desempenhada pelas mulheres das tribos;
- Tratam as doenças com ervas da natureza e costumam realizar rituais de cura, dirigidas por um pajé;
- Possuem o costume de dividir quase tudo que possuem, principalmente os alimentos;
- Possuem uma religião baseada na existência de forças e espíritos da natureza.

Talvez, nós os ditos civilizados, não tenhamos entendido corretamente a razão do que realmente significa o verbo "viver", bastaria um olhar mais atento e sem a crítica culta condicionada pelo saber importado das terras europeias, para facilmente chegar a conclusão, que o índio chegou mais próximo de entender com clareza o significado desse verbo.

Vejam que beleza de conclusão a que se chega ao observar o tratamento dado à educação de um modo geral ? com a nossa mania psicopedagógica de batizar as coisas, me pergunto: seria uma educação holística, o que vemos no relato abaixo?

Para muitos povos indígenas o corpo humano é resultado de uma ―fabricação cultural. Há todo um processo, desde o nascimento até a puberdade, no qual o corpo vai recebendo as marcas da cultura, vai sendo culturalmente construído: ― O ser em fabricação está nu, não usa pinturas, nem adornos 2. Pode-se daí supor que há, inicialmente, um corpo não humano, ou, pelo menos, não completamente humanizado, passando a sê-lo por meio dos ritos de ―fabricação do mesmo. A pessoa também é resultado de uma construção da cultura (2006, p. 06) (nosso grifo)

Aqui lembro-me da lição do filósofo Mário Cortela que prega o seguinte: Nós não nascemos prontos ? nós nascemos um projeto e vamos nos fazendo homens. É isso ou algo bem próximo disso. Eu diria em acréscimo ? na construção do homem temos de cuidar de fabricar não somente um corpo mais também uma alma humana. E desse entendimento partiria todo um ensinamento a ser buscado em toda e qualquer sociedade humana. Priorizando, logicamente a mente para que esta pudesse controlar o corpo ? como já ensinavam os romanos: mente sã, corpo são.
Uma coisa curiosa nos hábitos dos índios ? infanticídio.

Ninguém, por mais que possa se abstrair, consegue ver o próximo como ele realmente é, a realidade sempre terá um componente cultural de quem olha. É como se um filtro, posto à frente de nossos olhos e mente, modificasse as realidades que presenciamos. Assim, tentemos nós, não julgar as razões da ocorrência do infanticídio ? como justo ou injusto, devido ou indevido, evoluído ou bárbaro. Não nos compete julgar ? apenas conhecer e se pudermos viver, na pratica, essas razões, talvez possamos compreender na sua inteireza e apreender suas razões.

Vejam o registro feito abaixo ? em que as mulheres índias são chamadas a sacrificar seus filhos defeituosos.

Lígia Simonian (2001) destaca a contradição vivida pelas mulheres Amundawa e Urueu-Wau-Wau, ao comentar o significado do infanticídio entre esses povos. A essas mulheres cabe manter e afirmar a tradição de seus povos, o que envolve o dever de matar seus filhos que não se enquadram no padrão aceito em suas tribos, reproduzindo nesse processo a ideologia de suas culturas em relação aos papéis a ser exercidos pelas mulheres.

Para nós soaria como totalmente infundado o sacrifício de um recém nascido, mas no entendimento do povo indígena existem razões maiores que justificam seu ato:

As razões são diversas, mas, para fins práticos, podem ser agrupadas em torno de três critérios gerais:
1) a incapacidade da mãe em dedicar atenção e os cuidados necessários a mais um filho;
2) o fato do recém-nascido estar apto ou não a sobreviver naquele ambiente físico e sócio cultural onde nasceu;
3) e a preferência por um sexo (2006, p. 05)

Agora depois da revolução causada pela mídia, com massificação de culturas e diante de uma avanço cultural no mundo, torna-se pouco prático entender argumentos de manutenção de "tradição", "princípios" e de "praticas por hábitos passados", mas em uma cultura que busca a vida saudável sem conhecimento de remédios tecnologicamente avançados, talvez o processo de obediência a tradição seja o único meio possível de encontrar uma forma de justificar a vida subsequente, para o grupo.

O infanticídio é prática tradicional em muitos grupos indígenas brasileiros, tendo sido apontado pelo coordenador da Funasa (órgão responsável pelos programas de saúde indígena) em 2007, Ramiro Teixeira,

Surpreendentemente, até o fato do nascimento em duplicata (gêmeos), ou filhos saudáveis de mães solteiras, ou viúvas, como exemplificado abaixo. Isso, apenas, pode significar a presença de desequilíbrio da ordem natural a ser seguida, razão porque, se encontram os fatos que nos alarmam, como a prática de infanticídio até em seres completamente saudáveis que por incompreensão mais profunda são eliminados

Entre os Kamaiurá, a prática de infanticídio coloca as crianças entre os grupos de maior risco de morte (Pagliaro et al, 2004, p. 13), sendo considerados motivos para a morte das crianças o nascimento de ―...gêmeos, de crianças malformadas ou nascidas de uniões instáveis, como a de jovens solteiras, de separação do casal antes do nascimento da criança, de mulheres viúvas‖ (Pagliaro e Junqueira, 2007, p. 43).

Devemos entender que um ser defeituoso significa um peso morto a ser carregado, por todos, e partindo da filosofia de que todos são responsáveis diretos pela manutenção da existência de todos, não há como se admitir a existência de quem não seja produtivo ou que venha de alguma forma a quebrar essa regra. Daí a justificativa de se eliminar os defeituosos, e como vimos, até aqueles que moralmente, não se ajustaram aos padrões estabelecidos, também são eliminados ? mesmo que sem defeitos de "fabricação" física.

O infanticídio, nesses casos, está ligado ao significado socialmente que tem a vida entre grupos do Xingu, como os Suruwahá e Yanomami: o nascer com alguma deficiência física ou mental, por sua incapacidade de caçar, pescar, plantar e se locomover com os demais membros do grupo, seria um peso para a sociedade e por isso a morte lhe seria melhor que uma vida de dependência, de peso para os demais. Assim, por não se desenvolver no mesmo ritmo que as outras crianças, Niawi teria uma vida limitada, sem condições de viver conforme a definição cultural de vida do povo suruwahá, tornando-se um peso.

Agora se você acha o infanticídio bárbaro, bizarro ou cruel, não deixe de avaliar as culturas mais evoluídas na face da terra, como a Grega, que praticava o mesmo ato, com justificativas muito parecidas dos nossos silviculturas.

Na Grécia antiga especialmente na cidade de Esparta, por exemplo, quando uma criança nascia, os pais apresentavam-na a funcionários do Estado que avaliavam se a "robustez" do recém-nascido valeria o esforço que sua educação exigiria. Se não valesse, o bebê seria jogado do alto do monte Taigeto, localidade onde eram destinados todos os recém-nascidos com alguma deficiência que agredisse a estética quase que perfeita dos espartanos.
Na Roma mais atual ? as palavras de um pensador respeitado pode nos causar sincero estarrecimento, por que ele Sêneca ? é conhecido por seus ensinamentos de humanismo e vem nos mostrar que dependendo do tempo e do lugar, podemos defender qualquer tese, mesmo aquela que hoje, usando nossos filtros culturais ? julgamos alarmantes.

"Matam-se cães quando estão com raiva; exterminam-se touros bravios; cortam-se as cabeças das ovelhas enfermas para que as demais não sejam contaminadas; matamos os fetos e os recém-nascidos monstruosos; se nascerem defeituosos e monstruosos afogamo-los, não devido ao ódio, mas à razão, para distinguirmos as coisas inúteis das saudáveis. (Sêneca, Apud Silva, 1986, p. 129)".
A lista de exceções é imensa e podemos alinhavar até mesmo povos da Europa que nos deixam registros de práticas de infanticídio, como as seguintes. Um detalhe, não se esqueça de que o termo "bárbaro" aqui aplicado aos Visigodos e Ostrogodos é uma adjetivo aplicado pela Igreja Católica àqueles povos que não praticavam sua fé.

Enquanto isso, povos do Norte da Europa como os Visigodos, Ostrogodos considerados bárbaros, matavam seus deficientes assim como os Célticos que achavam ser um mal pressagio ou castigo dos deuses; também eram povos nômades e deixavam seus deficientes para trás.
Vejam a combinação de curiosidades, os Espanhóis aqueles responsáveis pelo dizimação do Povo Inca e Asteca ? ficaram chocados com o costume de Montezuma em separar as pessoas com defeitos.

Assinala-se também o que mais chocou os homens espanhóis quando de sua chegada na América, "foi o fato de Montezuma (México) ter em instalações separadas homens e mulheres defeituosas, deformadas, corcundas, anãs, albinas, onde eram apupados, provocados e ridicularizados" (Silva, 1986, p. 46)
E como regra geral, e não poderia faltar neste rosário de exemplos, os regimes totalitários e sua busca da supremacia das raças, através da eliminação pura de seres que ao seu julgamento eram tidos como defeitos da raça ariana.

Vieram os sistemas totalitários, como o comunismo que eliminava quem não era qualificado para trabalhar, o fascismo italiano não li nada de diferente, mas o maior escândalo foi quando li sobre o nazismo. As pessoas com deficiência eram utilizadas como cobaias em experiências médicas e os anões eram castrados para que a raça não se multiplicasse, foi usada a esterilização como método para evitar a reprodução desses "seres imperfeitos" e aconteceu o mesmo, em plena época do fascismo italiano, a aniquilação pura e simples das pessoas com deficiência que não correspondiam à "pureza" da raça ariana.
A nossa moderna sociedade tem um modo diferenciado de tratar do assunto, ao tomar conhecimento dessa forma de pensar e agir, dos índios, dos gregos, dos romanos, dos "bárbaros", e dos Aztecas ? ficamos naturalmente alarmados, mas não nos alarma a quantidade de meninos e meninas, velhos e doentes que perambulam por nossas cidades, a cada de migalhas para sobreviver, tirando e comendo diretamente de latões de lixo dos restaurantes. Sem moradia, sem hospitais e sem escola.

A nossa forma de eliminar os menos afortunados é mais cruel, menos transparente e ao mesmo tempo mais dolorosa ? para eles naturalmente. Para nossoutros, inteiros e afortunados que temos nosso canto para dormir, temos uns mais outros menos, nossas três refeiçoes diárias, e uns panos de marca para nos cobrir, julgamos que estamos isentos de pactuar com a eliminação de seres que nos rodeiam.

Não. Nós não praticamos o infanticídio como descrito e praticado pelos povos indígenas, mas assassinamos as oportunidades de muitas pessoas sãs, que possam sobreviver dignamente. Julgamos que o dever a obrigação de dar as oportunidades sempre serão do outro, do governo, do vizinho, do empresário que não cuida de criar emprego. Mas o nosso egoísmo e nosso conforto intelectual não permite ver uma vida comum com a vida do irmão que dorme ao relento e, por isso é condenado, a abreviar sua vida e a vida dos seus filhos. E o tempo que tem de vida é, na verdade de martírio e de sofrimento cruel até a morte chegar.

Quantas vezes, erguemos nossa voz para protestar pelo desmando, quantas vezes o nosso silêncio gritou aos ouvidos dos necessitados. Só porque não soubemos avaliar corretamente que matar por abandono significa mal maior, do que praticar o infanticídio.

Quantas vezes a nossa voz se ergue para defender o regime dos lucros, achando que estamos defendendo o progresso. O qual é produzido por via das tramoias financeiras sem a produção de um único bem, ou a custa do extermínio da natureza e, para o qual somos condicionados a admirar. Rejubilamo-nos com o lucro extra que nossa "esperteza" pode nos aquinhoar. Como aquela indígena que enterrava o seu filho seguindo apenas a tradição de seu povo.

Quantas vezes nossas mãos puderam aplaudir efusivamente os lucros desmesurados dos grandes conglomerados que, na verdade, representam os verdadeiros túmulos para milhões de crianças sem uma oportunidade, justamente, porque aquele lucro foi obtido por processos mesquinhos de eliminação de mão de obra e de processos que buscam castrar o emprego da mão de obra desqualificada que a sociedade não soube formar. Mas que deveria, por obrigação.

Antes de cesurar o antepassado que cometia seu infanticídio as claras e por razoável lógica cruel, ao nosso ver, como defendida por Sêneca ? façamos um ato de contrição e vamos tentar responder com convicção se o nosso processo de prática de infanticídio é mais ou menos cruel do que aqueles, praticadas no passado, por povos ditos desenvolvidos ou mesmo por povos ditos bárbaros ou por nossos índios que apenas buscavam viver em perfeita harmonia, por uma ideia de praticar uma vida voltada para a eternidade.

Para finalizar gostaria de trazer a tona uma história de um índio vencedor, claro vencedor aos padrões do homem branco, porque aos conceitos do homem da selva todos são vencedores, de modo indistinto e apenas pelo fato de poder desfrutar à vida, junto aos seus e em harmonia com a natureza.

Mario Dzururá, ou Juruna como era conhecido, foi o primeiro e único índio brasileiro a se tornar deputado federal. Eleito pelo PDT do Rio de Janeiro em 1982, cria política de Leonel Brizola e do antropólogo Darcy Ribeiro, que na época militava nas fileiras

Líder dos xavantes, Juruna saiu da sua tribo, na reserva de São Marcos no Mato Grosso, e foi para Brasília tentar ser ouvido pelo presidente. Depois de enganado muitas vezes, Juruna decidiu usar o gravador que tinha comprado em Cuiabá para registrar as "mentiras" que lhe diziam e as promessas falsas que lhe eram feitas.
A ideia de Juruna portar um gravador, para registrar a fala de seus interlocutores, aponta o hábito do homem branco, principalmente, no meio político de não dar cunho de assertividade às suas palavras, constitui um habito "civilizado" que muito prejudica o entendimento entre as pessoas ? diferente daquele em que o Cacique fora criado, onde a palavra expressa significava o que realmente ocorria em sua mente.
Falar a verdade por habito constitui, portanto, o grande diferencial que ainda temos de aprender com o indígenas. E a partir daí surgirão outras mudanças que por certo modificarão nossa sociedade de modo inimaginável, para melhor, sem dúvidas, espero.

Apolinario de Araujo Albuquerque Rio, 21 mai 2011.
[email protected]

Fonte:
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/fulni-o/491
http://www.laudemio.com.br/
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/fulni-o/494
http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2002/jusp606/pag10.htm