Como a perspectiva musoniana nos ajuda a compreender o valor da educação escolar[1]

Gustavo Uchôas Guimarães

Não é novidade para a maioria das pessoas que hoje em dia os jovens se mostram mais questionadores em relação ao ensino em nossas escolas. Uma das perguntas mais ouvidas pelos professores é: “Para que vai me servir na vida isto que você está ensinando?” Alguns jovens questionam isto com sincero interesse em aprofundar-se nas motivações que o levam a estudar e usam este questionamento como forma de desconstruir o conhecimento adquirido e legitimamente adequá-lo às suas necessidades cotidianas; outros, porém, fazem a mesma pergunta como reflexo do seu desinteresse em relação a todo o acervo de conhecimentos que podem ser construídos, desconstruídos, divididos e adquiridos no espaço escolar, em uma clara despreocupação com o futuro e um explícito imediatismo[2] fruto da sociedade hedonista[3] em que vivemos. A cada dia, fica mais difícil para o professor motivar o aluno para que busque conhecimentos, independente da utilidade prática e imediata que estes venham a ter ou não. E é aí que gostaria de trazer os jovens leitores, bem como os colegas professores, a pensarem nas razões da busca pelo conhecimento do ponto de vista do pensamento musoniano. Oras, mas o que vem a ser um pensamento musoniano?

O nome musoniano refere-se a Caio Musônio Rufo, filósofo romano que viveu no século I d.C. (nasceu entre os anos 20 e 30 e morreu por volta do ano 100). Ele deixou diversos ensinamentos filosóficos que foram recolhidos e escritos por seus discípulos. As palavras de Musônio concentram-se majoritariamente em questões éticas, porém o que elas podem nos ensinar neste momento tem a ver com questões lógicas. Musônio dizia que todo assunto deveria ser demonstrado de forma clara e eficaz. Assim seus discípulos escreveram[4]:

Certa vez em que surgiu o tema das demonstrações que os jovens hão de ouvir dos filósofos para compreender o que aprendem, Musônio disse que não convém buscar para cada assunto demonstrações numerosas, mas eficazes e claras.

Não merece louvor – dizia – o médico que receita muitos remédios aos enfermos, mas o que beneficia de modo efetivo mediante os poucos que receita. [...] E quanto mais inteligente seja quem lhe escuta, tantas menos demonstrações necessitará e tanto mais rapidamente dará seu assentimento.

Repare que Musônio exemplifica com uma prática da medicina, dizendo que o bom médico não é aquele que receita muitos remédios, mas o que receita o remédio certo, da mesma forma que qualquer assunto pode ser demonstrado não por muitos argumentos, mas pelo argumento suficientemente necessário para o entendimento de quem ouve. Este pensamento serve para todos aqueles que utilizam a retórica, ou seja, todos nós que, no cotidiano, argumentamos por inúmeros motivos nas mais diversas situações.

Voltando à questão educacional, esta concepção musoniana demonstra o quanto são importantes os conhecimentos que adquirimos a fim de que possamos nos relacionar com todas as formas de argumentação e de entendimento das realidades ao nosso redor. Além disso, a mesma concepção é também importante argumento para os professores, demonstrando que não é preciso um “rosário” de palavras para convencer os alunos da importância dos estudos: basta utilizar os argumentos mais eficazes para tal situação.

Musônio continua ensinando que:

Quem necessita de demonstrações por todas as partes, inclusive onde as coisas estão claras, se pretende que lhe demonstrem por muitos meios o que se pode demonstrar por poucos, é que é um insensato e um torpe.

O filósofo julga como insensatez o ato de querer comprovações onde estas já estão claras. Realmente, é um esforço desnecessário demonstrar coisas que por vezes soam óbvias. Se, por exemplo, já foi demonstrado por todos os meios que duas substâncias químicas entram em reação e neutralizam-se, para que gastar tempo buscando demonstrações onde são desnecessárias? Por outro lado, há que se questionar este pensamento musoniano em algumas situações, como a evolução científica[5].

No caso da educação escolar, voltamos à ideia de que não é preciso dar demonstrações desnecessárias para que os alunos percebam a importância do conhecimento adquirido e discutido na escola em seus anos de estudos. É também possível afirmar que a escola oferece, através dos conhecimentos curriculares e extracurriculares, condições para que o aluno perceba e entenda o mundo ao seu redor sem a necessidade de muitas demonstrações e explicações[6].

Musônio continua sua argumentação da seguinte forma:

Os jovens melhor dotados e que têm participado de uma melhor educação assentirão e compreenderão com poucas demonstrações as razões que se lhes disse com maior facilidade e rapidez. Facilmente nos daremos conta de que isso é assim se pensarmos em uma criança ou em um jovem educado na moleza plena, [...] dissoluto de alma por costumes que lhe conduzem à falta de caráter [...]; e, junto a este, um educado à maneira espartana, não acostumado à moleza e exercitado na perseverança [...]. Então, se pusermos estes dois jovens a escutar um filósofo que falara sobre a morte, sobre o trabalho, sobre a pobreza, sobre coisas semelhantes e que dissera que não são males, e que pelo contrário, sobre a vida, sobre o prazer, sobre a riqueza, sobre as coisas similares a estas, dissera que não são boas, se mostrarão acaso de acordo os dois por igual a estes raciocínios e obedecerão de maneira semelhante um e outro ao que se lhes disse? Não há nem que dizê-lo. Ainda que um, o mais lento, quiçá o aceite a duras penas e despacho e movido por mil razões, é certo que o outro receberá o que se lhe disse com rapidez e com boa disposição, como coisas que lhe são familiares e adequadas, sem pedir muitas demonstrações nem maiores argumentações.

 

Neste trecho que, apesar de longo, quis trazer à reflexão e discussão, Musônio dá lições para a geração atual. A maior delas: o jovem com boa base educacional enxergará melhor o que lhe argumentarem, ou seja, mesmo que não concorde ao terminar de ouvir, ele vai entender mais facilmente o significado e o valor do que ouviu. Mas que “boa base educacional” é esta que proporciona este melhor entendimento?

O próprio Musônio responde: educação à maneira espartana, o que poderíamos adequar ao nosso tempo com o nome de imposição de limites. Jovens sem limites em casa quase sempre serão jovens sem limites na escola. O sucesso ou o fracasso da família é uma das bases do sucesso ou do fracasso da escola em sua tarefa de formar cidadãos. Jovens com limites em casa normalmente são jovens mais organizados nos estudos e mais conscientes da importância da escola em suas vidas[7]; já pelo contrário, jovens criados sem rédeas encaram a escola apenas como mais um lugar para bagunçar e se divertir despreocupadamente.

Ainda com base no trecho citado acima, é possível afirmar que jovens bem educados em casa e que valorizam a educação escolar terão maior facilidade de se relacionar com o mundo, pois entenderão mais facilmente seus mecanismos de funcionamento, seus fenômenos, suas “justiças” e “injustiças”, podendo assim refletir mais criticamente e tomar posições mais firmes. Por exemplo: pessoas que não valorizaram a escola nem se deram ao trabalho de se empenhar nos conhecimentos adquiridos falam de política mais baseadas no senso comum do que em argumentos bem embasados; já pelo contrário, pessoas que aproveitaram melhor os conhecimentos adquiridos e valorizaram o que aprenderam na escola normalmente têm mais chances de entender melhor o contexto político ao seu redor para depois falar disto (nem que seja em uma mesa de bar) com argumentos sólidos e que fogem ao senso comum.

Um ponto importante também deve ser pensado: a preparação do professor para o desafio de argumentar com os alunos sobre a importância da escola. O professor também precisa ser um seguidor dos conselhos musonianos, ou seja, buscar esclarecer-se melhor, apurar melhor a sua capacidade argumentativa, exercitar-se melhor nos estudos (se preciso, fazer isto à maneira espartana).

Com a realidade educacional brasileira, onde professores trabalham muito e recebem pouco (para não citar várias outras realidades ainda mais adversas), soam difíceis estes conselhos baseados em Musônio, porém vale a pena o esforço, pelo bem do próprio professor (que ganha intelectualmente e como pessoa) e do aluno que vai aproveitar melhor as realidades ao seu redor a partir do momento em que puder dialogar com elas de forma mais crítica e melhor embasada em conhecimentos adquiridos na escola.



[1] Este trabalho, além do referencial teórico em Musônio, também se baseia nas próprias observações do autor em seus anos de estudos e carreira docente.

[2] Imediatismo: preocupação em viver apenas o “agora”, sem muitas vezes refletir sobre consequências dos atos.

[3] Hedonismo: filosofia pela qual o único bem da vida é o prazer individual e imediato, devendo a vida sempre girar em torno disto.

[4] RUFO, Caio Musônio. Disertaciones, fragmentos menores. Madrid: Gredos, 1995. Tradução de Paloma Ortiz García (do latim para o espanhol). Tradução para o português feita por mim.

[5] A ciência evolui, por exemplo, quando uma descoberta é feita quando todos pensavam que ali já não havia mais o que demonstrar. Ou ainda, temos o caso específico das Ciências Humanas, que por mais que deem várias explicações sobre um fato ou fenômeno, sempre deixam brechas para que novos pontos de vista venham demonstrar por um ângulo que talvez ninguém tenha percebido.

[6] Em teoria, todo aluno termina seus anos de ensino básico com todo um aparato linguístico, matemático, científico, humanístico, artístico e filosófico capaz de sustentá-lo nos novos desafios da vida, possibilitando que ele se posicione eficazmente diante das estruturas e sistemas ao seu redor.

[7] Considerando algumas variáveis, como a importância que a família dá para a educação escolar.