Diante da cena romântica de dois “ficantes”, a sala esperou minha reação e um dos alunos, resolveu, então, me provocar: “ E aí, professor, o que tem a ver beijo com aula de fonética?”. E, como aceitando a provocação, respondi convicto: “ Gente, parece até brincadeira, mas beijo tem mais a ver com nossa aula de  fonética do que com o afeto daqueles dois”.  E continuei: “ Acho que o episódio de hoje é  um bom exemplo para entendermos todas as consoantes do português que envolvem os lábios e a língua”. Claro, a gargalhada foi geral.

Na fonética, temos consoantes bilabais como nas palavras pêra, bola e mala em que os sons são produzidos por um falante, com os lábios unidos. Falantes de uma língua portuguesa também podem produzir sons labiodentais, como nas palavras faca e vaca, em que o lábio interior toca os dentes incisivos superiores. Temos nas palavras vaca e faca, as fricativas /v/ e /f/  que são, a rigor, monolabiais, uma vez que são os únicos sons da fala em que apenas um dos lábios é o articulador principal.

E o beijo? O que é o beijo,  foneticamente e fisiologicamente, falando? Nada mais é do que o  ato ou efeito de tocar, pressionando, os lábios sobre qualquer parte do corpo de uma pessoa, animal, ou sobre objeto querido ou com valor simbólico, podendo incluir  também movimentos de sucção, geralmente, para demonstrar carinho e afeto.O beijo só é beijo de verdade, digamos assim, quando envolve duas bocas ou quatro lábios. Por isso, o beijo é foneticamente uma articulação quadrilabial.

Decerto, um beijo para ser dado não precisa necessariamente de lábios. Um mão, por exemplo, pode ser o destino de um beijo. Nesse caso,  aquele que beija faz  roçar suavemente os lábios em nas mãos ou no rosto em sinal de reverência, deferência, veneração. Mas ocorre, também, o beijo de língua, aquele em que se tocam as línguas das duas pessoas que se beijam. Na religião, o beijo  era dado entre os primitivos cristãos em sinal de união fraterna.

Voltando à cena de beijo na sala de aula, recordo que, em um tom de humor, convidei um dos “ficantes” para vir à frente da sala. O rapaz, então, a princípio acanhado, aproximou-se de  mim e os colegas, então, ficaram numa expectativa febril do que poderia acontecer. Pedi-lhe que ficasse de frente para os colegas e que deixasse seus lábios naturalmente relaxados. Ele seguiu à instrução destemido.Apontei para os lábios do aluno, inferior e superior, e disse, como numa heurística, “observem, caros alunos, que este sr. aqui, como bom representante da espécie humana, traz – apontando, sem tocar, para a boca do aluno -  dois lábios, ou seja, duas partes carnudas”. Em seguida, pedi que o rapaz repetisse os movimentos feitos durante seu beijo. Ao começar a mover os lábios, fui  magistral: “Vejam – ó ó ó – que estes lábios são móveis e que constituem externamente o contorno da boca”.

Um dos alunos maliciosos da “turma da bagunça”, provocou: “ Professor, e a ficante do sexo feminino não serve para ser objeto de seus exemplos, não teria outros lábios para mostrar pra gente”. Entendi perfeitamente a malícia do aluno perguntador e me saí assim, fazendo as vezes de um educador sexual: “ é verdade, pessoal, as mulheres, além dos lábios generosos situados na boca, como os do sexo masculino, possuem os grandes lábios, que são dobras cutâneas múltiplas situadas no vestíbulo da vulva da mulher e das fêmeas dos mamíferos em geral”. Pela escuta ativa, acho que naquele dia, safei-me daquele embaraço e, com tanta explicação científica, decerto, aumentei uns pontinhos no “ibope”.

Aprendi, no decorrer de mais de duas décadas de magistério, que, em sala de aula, toda provocação de aluno deve ser respondida, sempre  que possível, com novos saberes. Quanto mais compreendemos nossos alunos e mais atendemos seu centro de interesse, mas somos reverenciados como mestres de experiências, ciências e saberes. Quanto mais dialogamos, mais somos amados e o magistério deixa de ser ensino e passa a ser o reino da contemplação do saber.

Vicente Martins é palestrante,  professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), em Sobral, Ceará. Dedica-se, entusiasticamente, ao estudo das dificuldades de aprendizagem relacionadas com a linguagem (dislexia, disgrafia e disortografia). E-mail: [email protected]