A primeira frase a ser destacada e que vale de ponto de partida para toda a análise deste sermão, é aquela em que o Pe. Antônio Vieira diz: "A primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros". (MOISÉS, 1980, p. 161) Essa metáfora serve de guia para todas as demais desenvolvidas no sermão.

Ainda sobre o começo do texto e levando em consideração as metáforas, Pe. Antônio chama a atenção para o fato de que os peixes grandes comem os pequenos. Por isso, um só grande pode comer mais de mil, e que se fosse ao contrário, seria menos mal, pois um só poderia alimentar muitos, enquanto que um só não se sacia com muitos pequenos.

Todo o texto, em suma, é carregado de cultismo, caracterizando-o dentro dos moldes barrocos, pois a metáfora dos peixes é utilizada em toda a obra do Padre. Esse tipo de literatura moralista, comum na época se levarmos em consideração as outras produções do Pe. Antônio Vieira como o Sermão da Sexagésima, pregado em 1655, serviu para que os homens abrissem seus olhos para os acontecimentos da humanidade e refletissem acerca do texto pregado.

O que é visível, porém, é a relação que esse texto tem com o tempo atual. Se pregado, por exemplo, por um padre de hoje a pessoas sem conhecimento prévio do texto, seria aceito e posto de tal forma que se poderia dizer que foi preparado levando em consideração o contexto atual do mundo.

Afrânio Coutinho diz que:

"A literatura barroca, no afã de traduzir em forma especial a ideologia do homem seiscentista, polarizado por forças contraditórias e inspirado pela exaltação do mistério religioso, apresenta atributos identificáveis. É uma literatura (...) que exprime o sentido profundo do drama do homem e do mundo, a vocação de sentir a vida dramaticamente, o sentimento trágico da existência, a angústia do homem em face do Cosmo, a ideia da salvação do unicum humano por meio da arte". (COUTINHO, 1976, pp. 104-105).

Se nos atentarmos às considerações desse parágrafo, veremos ali características do pensamento conceptista que, a meu ver, traduzem com perfeição o pensamento barroco humano.

O homem de hoje é tão barroco quanto aquele do passado "polarizado por forças contraditórias e inspirado pela exaltação do mistério religioso", sedento pelo mistério divino para justificar sua existência e colocando no oposto de ideias e palavras a fórmula de seu íntimo: um ser que vive dos extremos, que respira o bem e o mal, que passeia entre a loucura e a sensatez para se realizar e transformar-se nesse ser que vive em busca de respostas.

Quando tomamos o texto do Pe. Vieira por essa ótica, vemos que o sermão fala a esse homem atual, cheio de dúvidas e buscando orientação divina ou, restringindo mais o campo de orientação, religiosa. Vou, no entanto, tentar considerar o porquê de o Pe. Vieira utilizar os peixes nessa metáfora às atitudes dos homens, levando em consideração o pensamento barroco. Não vou, porém, tentar justificar a grande metáfora. Farei hipóteses a partir dos conhecimentos barrocos e da experiência de mundo aqui cabível.

Primeiramente, parece-me que falar aos peixes serve de rebeldia, se considerarmos que um homem santo tenha a incumbência de trazer "palavras de Deus" aos homens perdidos. Desse modo, Pe. Antônio Vieira revela sua revolta com a situação em que os homens se encontravam e vira as costas a eles para falar com os peixes.

Um segundo olhar, se levarmos em consideração que os peixes são os homens a quem o Padre fala, nos remete à situação dos peixes/homens. Onde estão os peixes, senão dentro d'água a escutar a mensagem do representante de Deus? Assim como os peixes não podem sair totalmente da água para escutar tal mensagem, eles emergem de vez em quando para ouvi-la com mais clareza. Porém, se um peixe permanece tempo demais fora d'água, morre. O homem, então, é esse ser que está numa redoma terrestre, incapaz de ficar tempo demais na presença do divino e, talvez por preguiça de querer se adaptar a esse mundo fora da redoma, volta a atenção ao fato de comer peixes pequenos a fim de sobreviver, somente.

Além disso, se observarmos o óbvio, os peixes comem uns aos outros para sobreviver. Talvez não haja outro animal que coma um ao outro, no sentido literário da palavra, como o peixe. Se pensarmos no habitat deles, veremos que não sobrará muita opção para aqueles que são carnívoros. O homem, dentro desse grande aquário da humanidade, não vê de quem tirar proveito, levando em consideração que ele já o tira de toda a natureza, senão do seu semelhante. Desse modo, então, o homem sobrevive comendo um ao outro nesse ciclo de tirar vantagem do próximo. Tal como o texto diz,

"Morreu alguns deles. (...) Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, (...) come-o a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para mortalha o lençol mais velho da casa, (...) enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra". (MOISÉS, 1980, p. 162)

são muitos o que se aproveitam de uma só pessoa, de um só peixe. Os grandes um dia já foram pequenos e alguns pequenos não encontram alguém menor que eles para comerem e, por isso, são comidos rapidamente.

Esse comentário é embasado em:

"Diz Deus, que comem os homens não só o seu povo, senão a sua plebe: Plebem meam, porque a plebe e os seus plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem, e os que menos avultam na república, estes são comidos". (MOISÉS, 1980, p. 162)

Voltando um pouco à questão do homem à procura de respostas para justificar seu sofrimento, vejamos o seguinte parágrafo:

"As normas religiosas de comportamento baseiam-se nas incertezas de vida e variam muito de uma sociedade para outra. Entretanto, tornam-se mais evidentes nos momentos de crise". (MARCONI, 2001, p. 162) (grifo meu)

Portanto, a manifestação do homem barroco e a atitude do Pe. Antônio Vieira se fundem e se completam de tal forma que no equilíbrio do encontro Homem com oposição de ideias versus Sermão, prevalecerá a o esclarecimento com o uso das palavras de Deus. O texto serve de guia para que esse homem esclareça suas dúvidas e se fixe em um ideal de melhor entendimento pessoal. Dessa maneira, ele procurará sempre nas palavras de Deus as respostas para suas eternas incertezas.

Referências

BUSARELLO, Raulino. Dicionário básico latino-português. 6ª ed. Florianópolis: Editora da UFSC, 2005.

COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1976.

GOMES, Francisco Casado. Aspectos do barroco em Portugal, Espanha e Brasil. Porto Alegre: Sulina, 1972.

MARCONI, Marina de Andrade. Antropologia: uma introdução. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2001.

MOISÉS, Massaud. Literatura Portuguesa através dos textos. 9ª ed. São Paulo: Cultrix, 1980.

SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria da literatura. 8ª ed. São Paulo: Ática, 2000.