Comentários ao Código Civil de 2002: Parte Geral – reparação de danos à personalidade

                                                           Márcia Belzareno dos Santos                                    

                                  Na análise do artigo 12 do Código Civil, como já vimos em um outro texto, temos a tutela geral da personalidade, com medidas judiciais preventivas e reparatórias. Aí temos o princípio da reparação integral dos danos, em havendo lesão a direitos da personalidade:

 

                                       Código Civil – Lei nº 10.406/2002

                                                        Dos Direitos da Personalidade

                                 Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar

                                perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

                              Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista

                             neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.

                                                                                      

                                  Dessa forma, podemos dizer que ao uso indevido de imagem, por exemplo, que é um dos direitos da personalidade, cabe uma medida preventiva correspondente, cabe uma ação de obrigação de fazer ou de não fazer, prevista no artigo 461 do Código de Processo Civil, é possível a tutela específica para fazer cessar lesão à direito da personalidade:

 

                                Código de Processo Civil – Lei 5.869/1973

                           Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer,

                                   o juiz concederá a tutela específica de obrigação ou, se procedente o pedido, determinará

                                   providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

 

                                E quando se fala em tutela específica, não podemos nos esquecer  da multa; a multa também pode ser fixada em caso de lesão a direito da personalidade, em ações de obrigação de fazer e de não fazer, em sentido de prevenir a possível lesão, caso venha a acontecer.

                                Mas, nesse campo,  temos ainda a reparação integral dos danos. Todos os danos suportados, poderão ser reparados ou indenizados, de alguma forma. Danos materiais, morais, estéticos. Ou outras categorias de danos que vêm sendo discutidos no Brasil: danos morais coletivos, sociais, por perda de uma chance, etc. Todos têm o seu remédio jurídico correspondente.

                               Embora a existência incontestável de outros danos já reconhecidos pelo direito, os danos clássicos, como chamamos, continuam a ser os danos materiais, morais e estéticos. Entretanto, quanto à cumulação,  o próprio Superior Tribunal de Justiça, de maneira reiterada, tem consolidado a possibilidade da cumulação tripla desses danos, sendo que, até algum tempo atrás, só era tratada e examinada a cumulação dupla.

                               Nesses casos, podemos trazer como exemplo, a situação hipotética em que uma cirurgia estética tenha vindo a produzir uma determinada deformidade. A acumulação tripla de danos materiais, morais e estéticos, nessas circunstâncias de sequela provocada pela intervenção cirúrgica,  é perfeitamente possível. Obviamente, que, de plano, encontramos ressalva na Súmula 37 /1992 do STJ, que prevê a cumulação dupla, e não tripla, composta apenas por danos materiais e danos morais.

                              Entretanto o próprio STJ superou esse entendimento da possibilidade já sumulada  de cumulação dupla de danos,   reconhecendo também a cumulação tripla: danos materiais, morais e estéticos; segundo o STJ, o dano estético é uma terceira categoria de dano, pois é mais uma lesão que, eventualmente, a pessoa possa vir a sofrer, cumulativamente com as demais lesões materiais e morais.

                             No páragrafo único do art. 12, segundo o professor Flávio Tartuce, flagramos, quem sabe, um tipo de “revolução”, no sentido de que, em princípio, nos traz uma espécie de  estupefação ou, no mínimo, indagação. Ou seja, surgem as perguntas: o morto tem direito de personalidade? O morto tem algum direito?

                              Como resposta taxativa, temos que sim, que o morto tem direitos da personalidade, expressamente previstos no citado parágrafo único do art. 12 do Código Civil, falando em legitimação para algumas pessoas, para promoção das medidas de prevenção e de reparação. Há previsão do cônjuge sobrevivente, dos parentes em linha reta, ascendentes e descendentes, ou colaterais até quarto grau.

                             O morto tem direito à imagem, à honra, ao bom nome. Segundo exemplo citado pelo professor  Flávio Tartuce, as filhas de um determinado jogador de futebol ingressaram com uma ação, solicitando a retirada de um livro/biografia do mercado e a respectiva indenização por danos morais nele contidos, pela afirmação do livro de que o pai era alcoolatra. O STJ entendeu procedente o pedido, reconhecendo a existência de danos morais ao morto e à família do morto.

                             Outro exemplo, também citado pelo ilustre professor Tartuce, é o do nome do morto estar inscrito em cadastro de inadimplente, depois da morte. Os familiares teriam legitimidade para retirarem o nome do morto desse cadastro de inadimplente ? Teriam direito de pleitear indenização por danos morais? Pelo art. 12 § único do Código Civil,  os familiares teriam, sem dúvida,  direito a ingressar com uma ação, pedindo indenização por danos morais.

                              Nesse campo de indagação, podemos citar a obra do professor Alfredo Migliore, de título muito interessante – Direito além da vida – que analisa, com muita propriedade e clareza, os direitos de personalidade do morto. É exemplo de um desses direitos o direito à honra,  que se constitui o cerne do livro citado.

                              Note-se que o art. 20 §  único do Código Civil, que  fala no direito de imagem do morto e do ausente, “esqueceu-se” dos colaterais de quarto grau:

 

                             § único, art. 20: Em se tratando de morto ou ausente, são partes legítimas  para requerer

                                                                  essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

 

                             Na verdade, os dois dispositivos citados anteriormente, a saber o art. 12 e o art. 20 do Código Civil,  “esqueceram” igualmente do companheiro, devendo-se, nesses casos, buscar uma interpretação extensiva, para que possa haver a proteção integral da pessoa já falecida ou ausente. É importante destacar que o convivente também tem legitimidade, do ponto de vista da proteção constitucional da uniãos estável, como prevê o art. 226 da CF:

 

                             art. 226. § 3º CF:  Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem

                                      e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar em conversão em casamento.

                                

                            Na doutrina, inclui-se o companheiro quando se fala em dano ao morto.  Nesse sentido, encontramos  o chamado dano direto, que é aquele, como a própria classificação indica, que  diz respeito  diretamente ao morto; e há o dano  indireto, que atinge o familiar, que é o dano conhecido com dano “em ricochete”, expressão surgida originariamente na França e difundida e consagrada no Brasil, através do jurista  Caio Mario da Silva Pereira.

                            Em suma, o morto, indubitavelmente, possui direitos da personalidade.

                            Ainda em relação à análise das regras relativas à pessoa, temos que salientar um tema bem atual, previsto no art. 13 do Código Civil, que trata da integridade física, de disposição de parte do corpo por ato inter vivos, dizendo que, salvo por exigência médica, são vedadas as disposições de parte do corpo que geram perda da integridade física ou que contrariam os bons costumes:  

                             Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando

                                      importar diminuição permanente de integridade física, ou contrariar os bons costumes.

                                                   Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante,

                                                  na forma estabelecida em lei especial.

                           Nesse sentido,  podemos citar como exemplo, atualmente, as questões relativas às cirurgias que envolvam  o transsexualismo. Conforme o professor Flávio Tartuce, é reconhecido por entidades médicas, através de Resolução do Conselho Federal de Medicina, como sendo o transsexualismo  uma patologia, pois a pessoa apresenta a manifestação física e anatômica de um gênero, mas tem o desejo de ser de outro.

                      Nesses casos, ainda segundo o citado professor, há uma forte tendência de automutilação e de suicídio. Por esse motivo,  entidades médicas  haveriam balizado a necessidade de cirurgia para adequação do sexo, em casos de transsexualismo. Surge aí uma exigência médica para uma cirurgia de transgenitalização, geralmente do sexo masculino para o sexo feminino. Para essas situações, há Resolução do Conselho Federal de Medicina e não se exige autorização judicial para a realização da cirurgia, pois é um problema médico, e não jurídico.

                        Entretanto, após a cirurgia, a situação passa a ser jurídica, em virtude da necessidade de mudança de nome. Já nessa fase, a pessoa ingressa em juízo para a troca de nome e do registro civil, inclusive com a troca de designação de sexo. Já há julgados nesse sentido, como exemplo, no TJ de São Paulo, que tem deferido alteração do nome e do registro. Assim, há a alteração jurídica do nome, do registro civil e, por consequência, da designação de sexo. Também nesse sentido, o Enunciado 276 do CJF – 4ª Jornada de Direito Civil, previu expressamente a troca de nome e de registro civil.

                         Dessa nova realidade, surgida após a alteração do registro, aparecem alguns  desafios jurídicos, tais como:  a pessoa que mudou de sexo, pode se casar, com a nova designação de gênero? Segundo o professor Tartuce, já há doutrina que diz que sim.

                         Outro desafio seria: é possível aplicar a lei Maria da Penha para uma pessoa que trocou de sexo? Sim, juridicamente é possível.

                         Como já vimos anteriormente, o Art. 13 torna  possível a disposição de parte do corpo para cirurgia. Entretanto,  é no Art. 14 que encontramos a disposição pos mortem de parte do corpo, para fins científicos e de doação de órgãos:

 

                            Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.

                                    Paragráfo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.

                       

                        E em nenhuma dessas duas hipóteses, a doação poderá acontecer com  intuito oneroso; pois, do ponto de vista   ético, não é possível a venda  de órgãos, seja  inter vivos ou pos mortem.

                        No Código Civil escrito por Mário Delgado e Jones Figueiredo Alves,  que enfrentam a questão da venda de órgãos, somente é possível a doação de órgãos com os ditames  previstos na Lei 9439/97 – Lei dos Transplantes de Órgãos.    

                            O Art. 15, por sua vez,  trata dos direitos do paciente, asseverando que ninguém pode ser constrangido, sob risco de vida, a tratamento ou intervenção cirúrgica:

 

                            Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a

                                    intervenção cirúrgica.

                            

                            Assim, encontramos, no art. 15, o princípio da beneficência e o princípio da não maleficência. 

                           O professor Flávio Tartuce  dá um exemplo prático de um caso previsto no art. 15 já citado. É a situação de um paciente que, contra a sua vontade, foi submetido à cirurgia de urgência no hospital de pronto-socorro. O médico, obedecendo o código de ética médica e  contrariando a disposição do paciente, que, por convicções religiosas, não aceitava a cirurgia com a necessária transfusão de sangue, realiza, mesmo assim,  o procedimento.

                           Após ter a vida salva, o paciente ingressa  com uma ação contra o médico e contra o hospital, pedindo danos morais.

                           Se examinarmos o art. 15, diremos que essa ação é procedente ou improcedente ? Para o professor Flávio Tartuce, esse é um caso de ponderação, que a jurisprudência tem enfrentado. Salienta-nos o professor Tartuce que há um julgado emblemático do TJ de São Paulo, que diz que a ponderação fica em pesar a opção religiosa em contraponto com a opção de salvar a vida. E, fazendo a devida ponderação, a opção pela vida suplanta a opção religiosa.

                       Os Artigos  16 a 19 tratam do uso do nome, que  é um direito de personalidade, é um direito fundamental. O nome completo, com todos os seus elementos, inclusive a proteção é estendida para o pseudônimo; o nome também é um direito moral do autor:

 

                             Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.

                            Art. 17. O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.

                           Art. 18. Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em propaganda comercial.

                          Art. 19. O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza de proteção que se dá ao nome.

                     

                   No  Art. 19, constatamos a aplicação do binômio composto pelo princípio da prevenção com o princípio da reparação integral de danos para a tutela do nome, no caso de uso indevido do mesmo. 

                   Podemos afirmar que o nome, em regra, é imutável; contudo, pode ser alterado no caso de troca de sexo, com vimos anteriormente, ou ainda em situações em que o nome da pessoa  o exponha ao ridículo, também em caso de inclusão de sobrenomes decorrentes de adoçaõ ou de casamente, entre outros exemplos.

                    Os Arts. 20 e 21, dizem respeito à imagem e à intimidade, respectivamente:

 

                               Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem

                               pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização

                               da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que

                                couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

                                             Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa

                                               proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

                                Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado,

                                adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

 

                    Embora esses artigos tratem de  dois  direitos/valores da personalidade, não são considerados absolutos, pois podem ser ponderados com o direito à informação, à liberdade de imprensa, por exemplo.

                   Enfim, nosso objetivo, ao escrever o presente texto, foi o de reexaminar, em breves palavras, os arts 12 a 21 do Código Civil, oferecendo ao interessado, sobretudo aos alunos dos primeiros semestres do curso de direito, um rápido resumo dos direitos da personalidade, complementando outros textos já escritos anteriormente.                 

                    Sempre lembrando que todos esses direitos de personalidade, que estão previstos no Código Civil, devem sempre ser examinados na perspectiva civil/constitucional.

                                                                                                                                                                         

Referências:

ABREU Filho, Nylson Paim de. Vade Mecum. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013.

DELGADO, Mário Luiz, ALVES, Jones Figueiredo.Novo Código Civil. Questões Controvertidas. Editora Método.

MIGLIORE, Alfredo Domingues Barbosa. Direito além da vida. São Paulo: Editora LTR, 2009                        

SILVA PEREIRA, Caio Mario da. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1993.

TARTUCE, Flávio. Código Civil – Parte Geral – Pessoa Natural. Programa Saber Direito. TV Justi ça.

Lei 9434/97 – Lei dos Transplantes de Órgãos

Súmula 37 do Superior Tribunal de Justiça.