COMBINAÇÃO DE LEIS PENAIS EM BENEFÍCIO DO RÉU NO PROJETO DE LEI DO NOVO CÓDIGO PENAL.

 

PRATES BARBOSA DE SOUSA, Yorran Lirio

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RESUMO

Será analisada a permissão da combinação de leis para o benefício do réu que consta expressamente no projeto de lei do novo Código Penal. Será feita uma análise da doutrina e da jurisprudência. Ao final, ficará demonstrado que, mesmo permitida expressamente, a combinação de normas ofende a nossa Constituição.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal. Combinação de leis penais. Princípio da separação dos poderes.

O nosso Código Penal foi criado na década de 1940 e, ao longo do tempo, passou por algumas reformas nestas mais de sete décadas de vigência. Porém, apesar das mudanças feitas em seu texto original, o certo é que o atual Código Penal não se encontra em consonância com a nossa Bíblia Política.

Neste contexto, foi designada uma comissão para que fosse criado um novo código penal que mais se adapte ao nosso texto constitucional de 1988 e aos inúmeros tratados internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil faz parte.

Cabe destacar que este projeto de lei é ambicioso, pois tenta unificar toda a legislação extravagante no Novo Código Penal, tanto é assim que o número de artigos do projeto de lei são 541, diferente do atual que conta com 361 artigos.

Diferente da legislação atual, que não trata explicitamente do tema, no anteprojeto do novo Código Penal consta expressamente no art. 2º, §2º a possibilidade de combinação de leis quando presente o fenômeno da sucessão de normas no tempo, sempre que esta conjugação favorecer o réu, conforme se observa:

Art. 2º É vedada a punição por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória.

§ 1º A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.

§ 2º O juiz poderá combinar leis penais sucessivas, no que nelas exista de mais benigno.[1]

A justificativa dada para a autorização da combinação de leis foi de que tal procedimento estaria em consonância com o que manda a nossa Constituição, conforme pode ser observado na Exposição de Motivos do Projeto de Lei do Novo Código Penal:

Trata da sucessão de leis penais no tempo e diz que: “o juiz poderá combinar leis penais sucessivas, no que nelas exista de mais benigno”. Foi a solução encontrada para harmonizar o Código Penal com a garantia de que, constante do art. 5º da Constituição. Ciente da polêmica sobre se a combinação de leis sucessivas não faria do juiz penal um legislador ad hoc, a Comissão entendeu que não se trata de autorizar a mistura de leis vigentes, mas da eficácia ultrativa da lei que regia o fato, se mais favorável, com a eficácia retroativa da lei nova, igualmente favorável. Não ofende o sistema de separação de poderes autorizar o juiz à referida combinação de eficácias normativas. Além do mais, esta solução é mais adequada do que determinar a aplicação em bloco da lei mais favorável, posto que esta, em algum trecho, poderia malferir o comando constitucional obstativo da retroação gravosa.[2]

À primeira vista esta possibilidade expressa na lei traria o fim da controvérsia sobre a possibilidade ou não da combinação de normas para se beneficiar o agente. Porém, cabe destacar o ensinamento de Nelson Hungria:

(...)cumpre advertir que não podem ser entrosados os dispositivos mais favoráveis da lex nova com os da lei antiga, pois, de outro modo, estaria o juiz arvorado em legislador, formando uma terceira lei, dissonante, no seu hibridismo, de qualquer das leis em jôgo. Trata-se de um princípio prevalente em doutrina: não pode haver aplicação combinada das duas leis.[3]

Desta forma, se for dada a possibilidade de o juiz mesclar duas leis para ser aplicada no caso concreto, estará nascendo uma nova norma que não seguiu o procedimento legislativo comum para ser criada e aplicada, violando, desta forma, a Constituição, mais precisamente a cláusula pétrea da separação de poderes.

Contrário ao entendimento de Nelson Hungria, Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina:

Note-se que na combinação de leis penais o juiz não está criando uma nova lei; apenas aplica as partes benéficas devidamente aprovadas pelo Parlamento. O juiz não cria nenhuma lei. Combinar aspectos favoráveis de duas leis não significa criar uma terceira. Esse ato (a criação de lei) é de atribuição exclusiva do Legislativo. Combinar leis devidamente aprovadas pelo Parlamento, entretanto, não significa criá-las. O juiz estaria criando lei nova se a decisão tivesse como fonte sua vontade. Aplicar aspectos favoráveis de duas leis significa aplicar a vontade da lei, resultando da mens legislatoris e da mens legis. Se o juiz não está impondo sua vontade, sim, apenas combinando aspectos favoráveis de duas leis aprovadas pelo Parlamento, não há que se falar em criação (sim, em aplicação de lei penal)[4]

 

Portanto, os juristas acima indicados entendem que o magistrado não estará criando uma nova lei se for combinada outras duas. Desta forma, não estaria sendo violado o princípio da separação dos poderes, previsto na nossa Constituição.

Em que pese as opiniões em contrário, por mais que se afirme que se trate somente de eficácia ultrativa da lei que regeu o ato e eficácia retroativa da lei posterior, ambas favoráveis, aplicadas em conjunto, o fato é que o fenômeno da combinação de leis acaba por criar uma nova norma.

O tema da combinação de leis penais encontra-se pacificado tanto no STJ quanto no STF, conforme depreende-se das decisões abaixo:

Na hipótese em apreço, busca o Impetrante, em síntese, a incidência da minorante prevista no art. 33, § 4.º, da Lei n.º 11.343/2006, sob o argumento de que a causa de diminuição de pena prevista na referida Lei deve retroagir de moldo a alcançar os fatos praticados sob a vigência da Lei 6368/76.

Com a devida vênia da corrente contrária, tenho que não se pode conceber, na espécie, a possibilidade de combinação de leis, porque a minorante insculpida o § 4.º do art. 33 é regra dirigida ao caput do mesmo artigo, não podendo o juiz cindir a norma para aplicá-la somente em parte, em combinação com outra, criando uma terceira nova, sob pena de se transmudar em legislador.[5]

Portanto, vemos que, quando da solução de um caso no qual era requerida a combinação de leis, tal conjugação foi negada, sob a justificativa de que se assim fosse permitido, o juiz estaria assumindo o papel de legislador. A próxima decisão que nega a combinação de leis é do STF:

É inadmissível a aplicação da causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006 à pena relativa à condenação por crime cometido na vigência da Lei 6.368/1976. Precedentes. II - Não é possível a conjugação de partes mais benéficas das referidas normas, para criar-se uma terceira lei, sob pena de violação aos princípios da reserva legal e da separação de poderes.[6]

Observa-se que o voto do ministro segue o mesmo entendimento, o de que a combinação de leis ofende o princípio da separação de poderes. Portanto, vemos que tal polêmica relativa à combinação de leis não iria acabar com a possibilidade expressa no novo código, surgindo pois, um conflito entre a legislação ordinária e a nossa Constituição.

Portanto, apesar de expressamente permitido no Projeto de Lei do novo Código Penal, entende-se que tal permissão afronta a nossa Carta Magna, devendo, dessa forma, não ser recepcionado pela nossa Constituição, caso o projeto de lei seja aprovado.



[1] COMISSÃO DE JURISTAS PARA A ELABORAÇÃO DE ANTEPROJETO DE CÓDIGO PENAL (Brasília) (Org.). Anteprojeto de Código Penal. 2012. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/anteprojeto-codigo-penal.pdf>. Acesso em: 19 abr. 2014.

[2] COMISSÃO DE JURISTAS PARA A ELABORAÇÃO DE ANTEPROJETO DE CÓDIGO PENAL (Brasília) (Org.). Anteprojeto de Código Penal. 2012. Disponível em: < http://www12.senado.gov.br/noticias/Arquivos/2012/06/pdf-veja-aqui-o-anteprojeto-da-comissao-especial-de-juristas>. Acesso em: 05 maio de 2014

[3] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 4ª ed. Vol. I, Tomo I. Rio de Janeiro, Forense, 1958, p.112.

[4] GOMES, Luiz Flávio; García-Pablos de Molina, Antonio. Direito Penal Parte Geral. 2ª ed. Vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.75

[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 179.915, Rs 2010/0132868-0. PEDRO ROGÉRIO OLIVEIRA CAMPOS. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Relator: Ministra Laurita Vaz. Brasília, DF, 06 de dezembro de 2011. Diário de Justiça. Disponível em: <http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21287570/habeas-corpus-hc-179915-rs-2010-0132868-0-stj/inteiro-teor-21287571>. Acesso em: 18 abr. 2014.

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 94687 MG, Primeira Turma. Defensoria Pública da União. Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Brasília, DF, 24 de agosto de 2010. Dje. Disponível em: <http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/15922019/habeas-corpus-hc-94687-mg>. Acesso em: 19 abr. 2014.