Minha avó contou para minha mãe. Minha mãe contou para mim. E agora eu conto para vocês! Isto aconteceu perto do KM 30. Era noite no sítio. A família reunida no alpendre para passar o tempo até chegar a hora de dormir. Todos tinham histórias para contar. E isto depois do galo cantar três vezes, porque não existem mais contadores de histórias como antigamente. Como a falta de energia dava um ar de mistério ao cenário, a hora estava propícia para contar casos de assombração. Aí valia tudo: desde a seção nostalgia, anedotas, piadas, cantigas populares, cantigas de ninar, música sertaneja e o programa principal: contar e ouvir contos de terror.
Estávamos em casa contando "causos" no alpendre da casa grande. Os mais velhos recordavam velhas histórias de pessoas que já morreram: as aventuras dos heróis familiares e as brincadeiras dos engraçados que sempre têm em toda família que se preza e, que mesmo depois da morte, são lembrados com simpatia.
Na seção de contos de aventuras, após esgotar as dos antepassados, passávamos às peripécias de João grilo, Pedro Malazarte e outros personagens das histórias portuguesas de Trancoso e as da Carochinha do nordeste do Brasil. A série de histórias dos fantasmas engraçados começava sempre com as lembranças que marcaram o tempo deles aqui na terra, pelas travessuras, cantorias zombeteiras e diabruras divertidas. Os parentes mais queridos eram exaltados, após a narração de suas estripulias: aquele sim , sabia contar "causos"! Com o mesmo entusiasmo também "malhavam" os anti-heróis ou personagens mal-caráter.
Era quase meia noite. Mas ninguém estava se importando com isso!Os sapos da lagoa pararam de coaxar. Os grilos agora cantavam em outro tom. A floresta estava mais preta do escuro e a cachoeira escandalosa aumentava seu barulho, dando a impressão que as águas estavam jorrando cada vez mais perto do alpendre. Os que estavam deitados nas redes dormiam tranqüilos. Os que estavam sentados nos tamboretes e no chão fechavam–se em círculo para ouvir melhor as histórias mal contadas. Mesmo que ninguém tivesse mais arrepios nem medo dos fantasmas modernos, o cantar da acauã ainda fazia as pessoas que estavam acordadas se aproximarem umas das outras temendo mau agouro. Os mais velhos correram para seus aposentos fingindo muito sono. Os de idade mediana argumentavam ter que ir preparar-se para a labuta do outro dia, e, aos poucos, também, iam se afastando. Entretanto, os mais jovens se aglomeravam perto desta contadora de histórias para ouvirem "causos fantásticos" e curtir a adrenalina de acelerar os corações com as artimanhas de "encostos" e espíritos maus ,além das famosas coisas de "almas penadas".
E eu não hesitei. Passei a inventar umas histórias malucas, misturando tudo que já tinha ouvido contar, desde a infância: fábulas lidas, "causos" que eu gostaria de ser a autora e casos que poderiam ter acontecido comigo ou com qualquer um dos que estavam ali. Revesti-me de coragem e ousadia e assumi o papel de personagem de uma história absurda que, por ser pura invenção não tinha jeito de acabar.
Comecei contando sobre o nascimento de um diabinho que peguei para criar, segui todos os passos do personagem comum a toda a criança peralta, acrescentando as rebeldias das que estavam presentes mais as características e comportamentos de meninas e meninos conhecidos. E todos aceitaram meu personagem como um diabo normal que até contribuíram sugerindo outras malandragens para incrementar minha história. Nosso garoto foi à escola e bagunçou muito. Foi ao sítio e detonou tudo que os adultos organizaram. Passeou por várias cidades, aprendeu várias línguas e se especializou em Internet. Passou por todas as etapas de um diabinho em crescimento. Porém, para não ficar um demo igualzinho aos outros, todos me ajudaram no sentido de alterar o tamanho do personagem e tudo que se parecesse com outras pessoas.
O capetinha cresceu, ficou grande demais, bonito demais, inteligente demais e safado demais! Como já era muito tarde no sítio, não contei tudo que acho que um diabo muito grande seja capaz de fazer dado o avançado da hora. Afinal suas aventuras eram impróprias para crianças. Deixei que elas mesmas dissessem o que tal moço aprontava que ninguém deveria imitar. Acabei fazendo o que não queria, o que condeno nos contos infantis: a tal da lição de moral! No final ele ficou homem. Casou. Descasou. Teve mulheres e filhos. Abandonou-os e depois ficou procurando onde ao tinha deixado. Sofreu muito, mas não morreu, porque, segundo as crianças um diabo que se preze não pode morrer! Dizem que ele recebeu uma ordem não sei de quem nem de onde e sumiu. Ele foi, mas sempre volta. Ninguém mais o viu de dia. Passou a aparecer somente à noite, na sexta-feira, na porta do cemitério, a partir da meia noite, de terno preto, chapéu panamá, acompanhado de uma coruja e de um gato preto. Uns dizem que ele é mágico. Outros dizem que é ilusão. Ainda outros dizem que ele é um político em campanha. Mas há crianças que afirmam ser "coisas de almas penadas". Depois dessa maratona de inventar não tem quem agüente ficar contando lorotas em alpendre de colônia! Afinal, a gente não crê em fantasmas nem almas do outro mundo, mas, na dúvida , é melhor que elas existam senão como é que vou me livrar das exigências e travessuras das crianças? Ufa! Que sono! Agora, chega! Vamos dormir!. Por favor, leitor! Gostou? Agora conte outra, para mais outro!

Vocabulário:

Alpendre: área coberta em volta d casa principal do sítio ou fazenda onde as pessoas se reúnem para conversar.
Histórias de Trancoso: histórias de pescadores beiradeiros da Aldeia de Trancoso, da região Beira Alta de Portugal, cujo autor tinha esse apelido em função da sua origem.
Histórias da Carochinha: fábulas adaptadas ou recontadas, geralmente consideradas "mentirinhas" porque mesclam ficção e fatos.