Outro dia fiz um exame de consciência e confesso que economizei um pouco desta última vez, eu sempre me perco muito examinando as coisas e no final não dá em nada. Mas dessa vez em particular me ocorreu uma lembrança, uma falta daquelas enormes mesmo. Ao mesmo tempo uma certa culpa. Fiquei com ela na cabeça por dias, pois que era pra lembrar sempre  e eu esquecia. Marquei na agenda e foi o mesmo que não marcar, sinceramente acho que deveria haver uma agenda para lembrar que precisamos olhar a agenda. Mas isso daria trabalho e haveria sempre a agenda da agenda da outra agenda e um emaranhado delas serviria tão somente para entulhar a vida com mais coisas que deveriam ser lembradas e no entanto, seguem esquecidas.

Era terça-feira e eu estava decidido daquele dia não passaria, marquei na agenda, no post-it, no lembrete do celular e desta vez eu não fugiria. O celular tocou, eu abri a agenda e vi o post-it, não era para esquecer mesmo. Procurei o número e liguei, marquei um horário para o final da tarde, pois naquele dia em especial eu tinha o fim de tarde só pra mim e ia ocupá-lo sentado numa cadeira de dentista. Há mais de três anos sem frequentar um lugar desses eu estava quase virgem disso já. Era como se fosse minha primeira vez. Disseram-me que seria atendido por um Dr.Miguel, mas que iria ser substituído pela Dr.Zeli, ora essa, então porque nãome falaram que seria atendido por ela duma vez, ligações custam caro. Fiquei meio descontente e sem entender o porquê de me darem tanta explicação, bastava dizer que eu teria consulta com a Zeli e não com o Miguel, eu não conhecia nenhum, diferença nenhuma me faria isso.

Durante todo o dia tentei criar a face primeiro do Dr.Miguel e quando estava quase lá me lembrei de que ele seria substituído pela Dr.Zeli. A ideia da substituição me soou mal, bem mal. Criei meus preconceitos. “Ela não deve ser boa” “Se fosse boa não ficaram cheios de dedos”. Não que eu me considere alguém livre de preconceitos, tenho-os aos montes, o que me falta é deixar de falar certas coisas e expor outras tantas. Sou de uma sinceridade comovente, quem vê se comove e pensa “Tadinho dele, tão ingênuo” Sim pois sinceridade de mais soa como ingenuidade, agente fica igual criança, o que se realidade fosse não seria má ideia. As crianças sabem coisas sobre outros mundos enquanto nós, “adultos” não sabemos quase nada sobre um mundo só, que nem sabemos se é mundo mesmo.

Lá estava e inquieto como de costume, achei um porre o futebol na TV, podia ser um programa de entrevistas, sei lá, ou nem ter TV, podia haver livros, muitos para a distração da espera. Foi de súbito que a vi chegar, devagar... Entrou, saiu, ouvi dizer a uma auxiliar que estava a precisar de uma caneta, que estava sem. Pensei até em emprestar a minha, mas só pensei. Se fizesse um terço de tudo que penso o mundo seria outro, um caos total na certa. Ela volta e chama todos para ver quem ali está, eu estou e o resto não me interessa como sempre, um parece que não veio, achei muito bom, assim a espera seria menor. Depois de quinze minutos de chamado e atendido o primeiro paciente, depois de muito ver auxiliar para cá e para lá num samba que qualquer escola ficaria entontecida, eis que assim, chama por meu nome em alto e belo tom.

Entrei cheio de delongas e demoras e dos preconceitos embutidos, queria ver o rosto dela. Era uma senhora dos seus quase cinquenta anos, feição conservadora, pouco vaidosa e com ar de certeza nos olhos. Pediu que sentasse, se bem que sentar não era a palavra, eu deitei na cadeira desconfortável, aliás, bem que se poderia melhorá-las para o bem estar do paciente. Muito calma me perguntou o motivo de minha visita, depois, é claro de explicar que o Dr.Miguel estava doente e ela estava em seu lugar, e se chamava Zeli. Respondi que era algo de rotina, mentira das grandes, eu não iria dizer que estava a três anos sem visitar um dentista. Pedi uma limpeza e avaliação, era só isso, isso e só. Mas ela me deu mais, mais do que eu temia. É engraçado como às vezes é preciso estar deitado com a boca aberta e sem poder falar para aprender um pouco sobre a vida. Avaliou-me, elogiou-me e disse para não me preocupar com as manchas nos meus dentes, pois se tratavam do processo de envelhecimento. Perguntei então o que ela, a dentista achava sobre fazer clareamento. Anunciou-se então um discurso sem freios de alguém que eu não conhecia, e que me incluía e muito. Começou dizendo que apesar de ser do ramo e não ser contra clareamentos, não indicava, pois isso era para quando eu estivesse bem mais velho e que eu precisava me acostumar com meus dentes envelhecendo junto a mim, manchando, escurecendo, isso era normal, ação do tempo. Aquilo foi um choque para mim. Eu estava envelhecendo com meus dentes e eles junto a mim.

Conduziu sua fala para o lado das pessoas que querem ser como atores de novela, dentes brancos, carro do ano, roupa de marca, perfeitos em tudo. Falou dos exageros a que somos submetidos e sobre a ditadura da moda e da felicidade, sobre família, relacionamentos e qualidade de tempo. Falou de deus. Que ele nos havia criado diferentes e era para ser assim, mas nós sempre inconformados, queremos ser iguais uns aos outros em tudo. Isso enjoa e faz doer na alma. É uma dicotomia, lutamos para ser iguais e somos diferentes, ou lutamos para parecer diferentes e somos iguais no fundo. Iguais na insatisfação. Nada é suficiente. Diferentes em nossa forma de ver o mundo, de ser no mundo. Foi um bombardeio.

Ela falou e falou e estava contente por eu nada ter nos dentes a não ser um bom estado de conservação. Ela não visava lucros comigo, ela visava era muito mais, era uma visionária, mal sabia eu, suas intenções eram as mais inimagináveis. Queria ela promover revoluções, plantas a semente da reflexão social, fazer nascer uma ideia daquelas que geram angústia e são tão boas professoras. Foi ali, deitado, que descobri que a caneta que ela precisava era um suporte para a broca, vulgarmente chamado de caneta, não falei nada, mas ri disso depois. Ela não tratava só de ser dentista, usava também sua caneta, fazia sua literatura, deixava sua marca. E era engraçado o fato de eu ter ido ao dentista e não ao analista. Até porque parecia eu o analista ali, ela fava eu ouvia. E descobri que as pessoas não precisam de clareamento, elas precisam é de falar. Falar clareia a alma porque os dentes não são eternos. Como quase tudo, ali eu nada sabia e o assunto principal não eram os dentes. Aquela consulta não era sobre saúde bucal, era sobre a vida.