A recente morte trágica da personal trainer Renata Muggiati, cujo principal suspeito é seu namorado, tem repercutido na capital paranaense. A possível vítima de violência de gênero (machista), é motivo evidente de consternação e repúdio na sociedade.  Mas, e a quase indiferença sobre a violenta realidade cotidiana das mulheres das camadas populares, vítimas quase diárias da ideologia machista típica de uma sociedade patriarcal em que ainda se vive? Traço inegável de barbarismo em nossa dita “civilização”.

 Falamos em barbárie na civilização, uma dicotomia usual entre pesquisadores (as) que denunciam as consequências anticivilizatórias do modo de produção capitalista em sua etapa imperialista neoliberal. Eric Hobsbawm, em “Sobre História”, interpretou que, ao longo do século XX, a barbárie cresceu, não havendo indícios de que este crescimento esteja no fim, ao contrário. Para o autor, a barbárie significa duas coisas: (1)Ruptura e colapso dos sistemas de regras e comportamento moral pelos quais todas as sociedades controlam as relações entre seus membros e, entre seus membros e membros de outras sociedades; (2)Reversão do projeto histórico que tem suas raízes no Iluminismo com suas tradicionais bandeiras “Vida, Liberdade, Busca da Felicidade”, ou “Igualdade, Liberdade, Fraternidade”. Frente à impossibilidade de materializar tais consignas, para todos os membros da sociedade, no modo de produção da vida subsumido pela lógica do capital e sua correspondente cultura, consolida-se o colapso geral da civilização formada por exploradores e explorados. As forças destrutivas crescem mais que as forças produtivas.

 Esta referência genérica à barbárie engendrada pelo desenvolvimento tremendamente desigual da sociedade capitalista ajuda a compreender uma de suas piores facetas: a triste realidade das meninas e mulheres que sofrem violência seja em suas casas, seja nos ônibus pelo assédio sexual, seja nas propagandas onde a mulher é objetificada, ou mesmo pelo Estado, quando é culpabilizada pela violência sofrida ou quando recebe atendimento desumano.

 No promissor século XXI, que exibe tantos avanços científicos e tecnológicos fabulosos, continua-se convivendo com igualmente espantosas desigualdades e injustiças, como a das mulheres que vivem situações de violência. 

 Renata Muggiati bem pode ter sido vítima disso. Como foram Raquel Genofre, Tayná, inúmeras Marias anônimas que, cotidianamente aparecem fugazmente nos programas policiais de TV – contas de um rosário de mazelas de uma sociedade que tropeça na pretendida marcha para uma civilização de igualdade e justiça.  Estes sofrimentos encontram paralelo na selvageria dos insultos despolitizados, com fortes traços de machismo, misoginia e autoritarismo, como, por exemplo, os lançados pelo deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) contra a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), que teve por desfecho jurídico uma pífia multa de dez mil reais contra o truculento parlamentar fluminense.

 Estaremos retrocedendo a trevas medievais? Pesquisadoras e representantes dos movimentos feministas e de mulheres analisam que as atitudes de mulheres e meninas diante das violências sofridas devem ser compreendidas a partir dos discursos que as engendram (tais violências), situados dentro de um contexto histórico-social marcado por complexas articulações de relações de poder e de dominação de classe, gênero, raça, etnia, geração e orientação sexual. A luta contra a violência doméstica e familiar integra a agenda teórica e política feminista do Brasil desde os anos 1970.  A violência de gênero atinge mulheres de todas as idades, graus de escolaridade, classes e grupos raciais/étnicos. A efetivação plena dos dispositivos de uma lei avançada como a 11.340/06 (Lei “Maria da Penha”) só será realidade sobre todo o território nacional com a implementação de políticas públicas, com a possibilidade de acesso universal a escolas gratuitas de qualidade, com a disseminação das casas-abrigo e centros de referência, para a mulher vítima de violência.

 A violência de gênero é aguda no Brasil: só na última década 43.700 mulheres foram assassinadas. Muitas destas vítimas do machismo são violentadas e mortas pelo simples fato de serem mulheres. O Paraná, situado no mapa da violência na 3ª posição, revela-se um estado machista e extremamente violento. A lei do feminicídio, sancionada recentemente pela Presidenta Dilma, resulta da luta de uma Comissão Parlamentar de Inquérito realizada há dois anos. A CPMI visitou o Paraná por evidenciar dados acima da média nacional de casos de feminicídios (mortes de mulheres causadas pelo fato de serem mulheres). O Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) revela que são 6,49 feminicídios para cada 100 mil mulheres, contra 5,82 mortes da média nacional. Esta realidade requer que, no Estado, se apliquem recursos das políticas públicas para casas-abrigo, exige que nas delegacias haja equipes especializadas e preparadas para receber com respeito as mulheres, que se realize um amplo programa de educação de gênero para toda sociedade e para as equipes de segurança pública, e que se crie a Secretaria Estadual de Políticas para Mulheres.

 Há mais de 30 anos o movimento feminista criou o lema "O silêncio é cúmplice da violência”, parte estruturante da história feminista no combate à violência doméstica no Brasil. Outro, "A impunidade é cúmplice da violência", evidencia que a maioria dos crimes cometidos contra as mulheres continua impune.  Incorporou-se a noção de que "A violência contra a mulher é também um problema de saúde pública e uma questão de direitos humanos” na Convenção de Belém do Pará, na Lei Maria da Penha 1.340/06 e recentemente na Lei do Feminicidio.  Trata-se de heróicos contrapontos colocados pelos movimentos sociais para refrear a marcha fúnebre da barbárie em nossa convulsa sociedade.

 Elza Maria Campos – Assistente Social, Professora do UniBrasil Centro Universitário, Coordenadora do Grupo de Estudos, Pesquisa, Trabalho, Gênero e Violência Doméstica e Familiar - GETRAVI