CISÃO EMPRESARIAL COMO ILEGÍTIMO MECANISMO DE PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO NA VISÃO DO CONSELHO ADMINISTRATIVO DE RECURSOS FISCAIS - CARF

 

NÓBREGA, Fábio de Queiroz.

 

SOUZA, Paulo Cezar Ferreira.

 

RESUMO

O presente estudo pretende explicitar, à luz da jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, órgão colegiado integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, que representa a segunda instância administrativa em matéria de julgamentos fiscais, uma situação específica na qual a cisão empresarial, uma das modalidades de reestruturação societária, é tida por abusiva e, portanto, ilegítimo mecanismo de planejamento tributário, bem como enunciar os argumentos utilizados pelos órgãos julgadores para fundamentar tal posição. O objetivo principal deste estudo foi analisar em que circunstância a cisão empresarial é considerada abusiva e, consequentemente, ilegítima ferramenta para a redução da carga tributária. Para tanto, foi utilizado o método dedutivo e a pesquisa bibliográfica. A pesquisa foi dividida em duas etapas. Na primeira, abordou-se diversos aspectos relevantes concernentes à cisão de sociedades e ao planejamento tributário, finalizando-se com o estudo da “norma geral antielisão” elencada no parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional. Na segunda, a partir do exame da jurisprudência do CARF, evidenciou-se que as autoridades fiscais, não obstante a inexistência de regulamentação dos procedimentos previstos na disposição normativa citada e a plena observância da legislação societária, vêm desconsiderando, para fins fiscais, cisões realizadas com intuito de planejamento tributário, sob o argumento de terem sido praticadas sem qualquer propósito negocial e com a finalidade única de obtenção de economia fiscal. Os resultados demonstraram que em vários casos analisados pelo CARF as cisões tiveram como objetivo, exclusivamente, a redução do pagamento de tributos.

Palavras-chave: Planejamento Tributário; Cisão Empresarial; Desconsideração.

 

ABSTRACT

The presente study aims to clarify, in light of the case law of the Board of Tax Appeals - CARF, collegial body member of the Ministry of Finance of the structure, which is the second administrative level on tax judgments, a specific situation in which the business division, one of the form of corporate restructuring, is considered by abusive and therefore illegitimate tax planning mechanism and outline the arguments used by judging bodies to support such a position. The aim of this study was to analyze in which circumstances the business division is considered unfair and therefore illegitimate tool to reduce the tax burden. For this, we used the deductive method and the literature. The study was divided into two stages. At first, addressed to various relevant aspects concerning the division of companies and tax planning, ending with the study of the "general rule antielisão" elencada the sole paragraph of Article 116 of the National Tax Code. In the second, from the examination of CARF's case, it was observed that the tax authorities, despite the lack of regulation of the procedures provided for by this legislative provision and full compliance with corporate law, disregarding come for tax purposes, made decisions with tax planning order on the grounds of having been committed without any business purpose and for the sole purpose of obtaining tax savings. The results showed that in several cases examined by the CARF divisions were intended solely to reduce the payment of taxes.

Keywords: Tax Planning; Fission Company; Disregard.

 

 1.    INTRODUÇÃO

 

O dinamismo característico do mercado globalizado atual e a elevada carga tributária existente no Brasil exigem das empresas nacionais alterações constantes em suas formas de atuação, para que possam manter-se competitivas. Nesse cenário, as reorganizações societárias realizadas com intuito de planejamento tributário têm sido a maneira adotada por muitas sociedades empresárias para reduzir custos tributários e potencializar seus resultados.

Para tanto, tornou-se indispensável o conhecimento acerca das diversas modalidades de reestruturações societárias admitidas pela legislação brasileira, o domínio sobre o tratamento legal aplicável a cada uma delas, assim como a exata compreensão do que seja planejamento tributário, dos critérios que legitimam sua adoção e do entendimento das autoridades fazendárias quanto à legalidade da forma de reorganização escolhida pelo contribuinte como mecanismo de planejamento tributário.

Um dos mecanismos de reestruturação societária comumente adotado no âmbito do planejamento tributário é a cisão, conceituada pela Lei nº. 6.404, de 15.12.1976, como a operação através da qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a cisão (art. 29).

Mas, em diversas situações, as cisões realizadas vêm sendo desconsideradas pelas autoridades fiscais, sob o argumento de terem sido praticadas de forma abusiva, posição corroborada pelos órgãos julgadores no âmbito administrativo, tanto em primeira quanto em segunda instância.

O objetivo do presente pesquisa foi analisar em que circunstância a cisão empresarial é considerada abusiva e, consequentemente, ilegítima ferramenta para a redução da carga tributária.

A metodologia adotada foi a dedutiva, com o uso da pesquisa bibliográfica exploratória, desenvolvida através da leitura de livros, artigos científicos e das leis pertinentes ao tema. Também foi utilizada a análise documental, com o exame de decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF relativas ao objeto do estudo. Desta forma, teve-se a oportunidade de conciliar o conhecimento teórico e prático em torno da temática abordada.

 

2. CISÃO EMPRESARIAL          

 

            Apesar de o Novo Código Civil brasileiro, instituído pela Lei nº. 10.406, de 10.01.2002, referir-se à cisão no Capítulo X, do Subtítulo II, do Título II, do Livro II, juntamente com as demais formas de reestruturação societária (transformação, incorporação e fusão), não definiu ou disciplinou o instituto.

            Em razão da omissão legislativa, a cisão de sociedades continua disciplinada na Lei nº. 6.404, de 15.12.1976, que dispõe sobre as sociedades por ações, aplicável a todos as espécies de sociedades.

            A lei societária, em seu artigo 229, define a cisão nos seguintes termos:

 

Art. 229. A cisão é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão.

 

            O enunciado normativo transcrito é autoexplicativo e de clareza inegável. Tanto é verdade que parte da doutrina especializada, ao tratar do conceito do instituto da cisão, o faz simplesmente correlacionando-o à disposição contida no mencionado artigo. É o caso de Marcelo Cavalcanti Almeida (2012, p. 271), Hugo de Brito Machado e Schubert de Farias Machado (2011, p. 37/38), Fran Martins (2013, p. 329) e Luís Martins de Oliveira (2013, p. 325).

            Peixoto (2012), ao analisar a definição positivada, assevera que o elemento central do conceito da cisão é, basicamente, a divisão do patrimônio social. Diz, no entanto, que pode haver variantes no tocante à extinção ou não da sociedade cindida, ao número de sociedades que recebem parcelas patrimoniais desta sociedade e à preexistência ou não das sociedades que receberão as parcelas patrimoniais, isto é, se essas sociedades já existiam de modo independente ao processo de cisão ou se foram constituídas especialmente para este fim.

            Ainda, segundo o autor, sempre que houver a extinção da sociedade cindida, diz-se que haverá cisão total, em razão da completa transferência do patrimônio provocada pela sucessão em caráter universal. Se, de outra forma, a sociedade cindida permanece existindo, pelo fato de ser transferida apenas uma parte de seu patrimônio, será a hipótese de cisão parcial.

            Martins (2013), ao tratar do instituto em debate, assevera que haverá, na cisão empresarial, uma transferência, total ou parcial, do patrimônio de uma sociedade para outra ou outras. Sendo todo o patrimônio transferido para duas ou mais sociedades, ocorrerá a extinção da sociedade cindida, sucedendo à extinta as sociedades que absorverem o seu patrimônio, na proporção dos patrimônios líquidos transferidos. Se a cisão for apenas parcial, a sociedade que absorver parte do patrimônio da cindida passa a sucedê-la nos direitos e obrigações relacionados no ato da cisão.

            Observa-se, pois, a existência de duas espécies de cisão, quais sejam: a total, com a versão de todo o patrimônio da sociedade cindida, situação na qual esta se extingue; e a parcial, com a versão de parcela do patrimônio da sociedade cindida, subsistindo esta, com redução do seu capital.

            Mas Peixoto (2012) vislumbra ainda outras duas modalidades de cisão, a cisão-absorção, que ocorre quando há transferência de parcela patrimonial para sociedades preexistentes, e a cisão-constituição, que se verifica quando a sociedade for constituída especialmente para receber determinado patrimônio.

            Conjugando os critérios adotados nas classificações acima enumeradas, o autor sugere as seguintes denominações para os tipos de cisão:

 

a) cisão-total-constituição: é o tipo de cisão na qual ocorre a divisão patrimonial para a constituição de duas ou mais sociedades novas, havendo extinção da sociedade originária;

b) cisão-total-absorção: é a modalidade de cisão na qual ocorre a divisão do patrimônio de uma determinada sociedade, que será transferido para duas ou mais sociedades já existentes, havendo a extinção da sociedade originária;

c) cisão-parcial-constituição: é o tipo de cisão na qual ocorre a segregação de determinada parcela patrimonial de dada sociedade, seguida de sua transmissão para uma nova, especialmente constituída para esse fim, sem extinção da sociedade originária;

d) cisão-parcial-absorção: é a modalidade de cisão na qual ocorre a segregação de determinada parcela patrimonial de uma sociedade, seguida de transmissão para outra já existente, sem haver extinção da sociedade originária.

 

 

 

3. PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO: DEFINIÇÃO, CARACTERÍSTICAS E OBJETIVOS

 

            Segundo Machado (2014, p. 78), “a expressão ‘planejamento tributário’ tem sido utilizada para designar a organização dos negócios de uma empresa tendo em vista a redução do ônus tributário, com o objetivo de reduzir tanto quanto possível esse ônus”.

            Para Vasconcelos et al (2012, p. 201), “Em linhas gerais, o planejamento tributário consiste na utilização de estruturas jurídicas (societárias e contratuais) que legalmente permitam a redução da carga tributária antes da ocorrência do fato gerador [...]”.

            Já Rodrigues (2013, p. 41) define o planejamento tributário como uma:

 

[...] atividade empresarial estritamente preventiva, que visa analisar os atos e fatos tributáveis e seus efeitos, comparando-se os resultados prováveis, para os diversos procedimentos possíveis, escolhendo assim a alternativa menos onerosa, sem extrapolar o campo da licitude.

 

            Analisando as definições apresentadas, pode-se perceber que os autores apontam como características do planejamento tributário a busca da economia de tributos, a atuação dentro do campo da licitude e o caráter preventivo, na medida em que deve ser implementado antes da ocorrência do fato gerador.

            Quando se adota o planejamento tributário, tem-se em vista os seguintes propósitos: impedir a incidência do tributo, obstando a ocorrência do fato gerador; diminuir a carga tributária, com a redução da base de cálculo ou da alíquota do tributo; ou postergar o pagamento do tributo, de forma legal, sem que haja a incidência de multa (RODRIGUES, 2013).

            Mas, para que se possa compreender, de forma razoável e segura, as definições de planejamento tributário acima transcritas, necessário se faz o conhecimento, ainda que de modo conciso, de alguns conceitos que lhe são correlatos, como os de elisão e evasão fiscais, abordados no item seguinte.

 

3.1. ELISÃO E EVASÃO FISCAIS

           

            Preleciona Machado (2014, p. 66/67) que:

 

A maior dificuldade na compreensão da doutrina que trata do planejamento tributário deve-se precipuamente à imprecisão dos conceitos utilizados e à diversidade de significados com que os doutrinadores empregam a mesma palavra [...].

 

            Representativa dessa problemática terminológica e semântica é a distinção entre os termos elisão e evasão fiscais, ambos relacionados ao comportamento do contribuinte no sentido de diminuir ou eliminar o ônus do tributo.

            Machado e Machado (2011, p. 72), reconhecendo a divergência apontada, enunciam que:

[...] Não há uniformidade terminológica na doutrina. Alguns preferem a palavra evasão para designar a forma ilícita de fugir ao tributo, e a palavra elisão para designar a forma lícita de praticar essa mesma fuga. Na verdade, porém, tanto a palavra evasão, como a palavra elisão, podem ser utilizadas em sentido amplo, e em sentido estrito. Em sentido amplo, significam qualquer forma de fuga do tributo, lícita ou ilícita, e em sentido restrito, significam a fuga ao dever jurídico de pagar o tributo e constituem, pois, comportamento ilícito [...].

 

            E continua o autor (2011, p. 73):

 

[...] Se tivermos, porém, de estabelecer uma diferença de significado entre esses dois termos, talvez seja preferível, contrariando a preferência de muitos, utilizarmos evasão para designar a conduta lícita, e elisão para designar a conduta ilícita [...].

 

            Torres (2013), ao definir evasão como a economia do imposto obtida ao se evitar a pratica do ato ou o surgimento do fato jurídico ou da situação de direito suficientes à ocorrência do fato gerador, enuncia ser esta sempre lícita, tendo em vista que o contribuinte atua em uma área não sujeita à incidência da norma impositiva. Mas acrescenta que, quando tomada no sentido da expressão inglesa tax evasion, da preferência de alguns autores brasileiros, é ilícita.

            Ao tratar da elisão, afirma que esta pode ser lícita ou ilícita. Na primeira hipótese, corresponde à economia de imposto alcançada por interpretação razoável da lei tributária e representa o planejamento fiscal consistente. Na segunda, diz respeito à economia do imposto obtida pela prática de um ato revestido de forma jurídica que não se subsume na descrição abstrata da lei ou no seu espírito, configurando o planejamento fiscal abusivo.

            Sem olvidar da divergência doutrinária estabelecida em torno de tais expressões, é induvidoso que há certo consenso no sentido de que elisão fiscal corresponde à economia lícita de tributos e evasão fiscal à realização de práticas ilícitas pelo contribuinte para escapar ao pagamento de tributos.

            Acompanhando o entendimento dominante, Rodrigues (2013, p. 42) enuncia que:

 

A elisão fiscal representa a execução de procedimentos, antes da ocorrência do fato gerador, legítimos, éticos, para reduzir, eliminar ou postergar a tipificação da obrigação tributária, caracterizando, assim, a legitimidade do planejamento tributário [...].

 

A evasão fiscal, por sua vez, consiste em toda ação consciente, espontânea, dolosa ou intencional do contribuinte por meios ilícitos, para evitar, eliminar, reduzir ou retardar o pagamento do tributo devido, não se configurando em hipótese alguma com o planejamento tributário lícito [...].

 

E acrescenta, por fim, que a evasão fiscal pode evidenciar-se pela simulação, sonegação fiscal ou fraude.

           

3.2. NORMA GERAL ANTIELISÃO

           

            Com a publicação da Lei Complementar nº 104, em 10.01.2001, foi introduzido ao artigo 116 do Código Tributário Nacional (Lei nº. 5.172, de 25.10.1966) um parágrafo único, com a seguinte redação:

 

Art. 116 [...]

Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.

 

            Trata-se, como asseverou Machado (2014), da denominada “norma geral antielisão”, que atribuiu à autoridade da Administração Tributária competência para desconsiderar, sempre de forma motivada, atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, e exigir as exações fiscais a eles correspondentes.

            Mas, pela redação do dispositivo, pode-se verificar que a intenção da norma não foi propriamente a de combater a elisão fiscal, mas sim a evasão fiscal, nas hipóteses em que os contribuintes se utilizam da dissimulação (simulação relativa) para evitar o cumprimento da obrigação tributária.

Corrobora esse entendimento Vasconcelos et al (2012), ao afirmar que regra da espécie visa conferir maiores poderes às Administrações Tributárias para, na medida em que se depararem com operações fraudulentas ou abusivas não especificamente tipificadas, possam desconsiderar, para efeitos fiscais, os atos e negócios jurídicos formalmente adotados.

Entretanto, apesar de não se estar diante de uma norma antielisiva, a Medida Provisória nº. 66, de 29.08.2002, ao regulamentar o dispositivo sob exame, tratou-o como se assim o fosse, na medida em que autorizou a desconsideração de atos lícitos praticados pelos contribuintes que visassem, unicamente, à obtenção de vantagem fiscal.

            Pretendeu-se, na verdade, com a MP nº 66/2002, ampliar o campo de aplicação da denominada “norma geral antielisão”, introduzindo no ordenamento jurídico brasileiro, em claro descompasso com a Constituição Federal de 5.10.1988 e o Código Tributário Nacional, a possibilidade de tributação dos atos e negócios jurídicos pelos efeitos econômicos que produzem, independentemente da forma negocial adotada na sua realização.

            Todavia, quando da conversão da MP nº 66/2002 na Lei nº 10.637, de 30.12.2002, as disposições relativas à “norma geral antielisão” foram suprimidas. E inexiste até hoje lei ordinária a estabelecer os procedimentos nesta previstos.

Dessa forma, o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional não foi capaz de eliminar a possibilidade de realização do planejamento tributário, que continua constituindo um direito dos contribuintes de ordenarem seus negócios e atividades, pautados pelos princípios da autonomia da vontade e da livre iniciativa, dentro dos limites da legalidade, com a finalidade de economizar tributos.

 

4. ANÁLISE JURISPRUDENCIAL

Não obstante a ausência de lei ordinária a regulamentar os procedimentos exigidos na parte final do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, o Fisco vem autuando os contribuintes que realizam planejamentos tributários considerados abusivos.

            Tais autuações vêm sendo, inclusive, confirmadas pelos órgãos julgadores no âmbito administrativo, em especial pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF, órgão colegiado integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, que representa a segunda instância administrativa.

O que se propõe neste item da pesquisa é explicitar uma situação na qual a conduta realizada pelo contribuinte, quando se vale da cisão empresarial, é tida, em julgamentos administrativos fiscais, como ilegítima ferramenta para a redução da carga tributária, por ser considerada abusiva, ante a falta de propósito negocial. E, ainda, apontar os argumentos utilizados para sustentar tal posição.

Relativamente à situação a ser evidenciada, foram observados diversos julgados. Dentre os pesquisados[1], foi selecionado um, o qual passa, a seguir, a ser examinado.

Trata-se da decisão proferida em 18.12.2008, pela então Oitava Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, sucedido pelo CARF, nos autos do processo nº. 16175.000489/2005-71, consubstanciada no Acórdão nº. 108.09.793, em que a empresa 1770 Participações S/A foi autuada, relativamente ao Imposto Sobre a Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), em razão da falta de contabilização de ganho de capital apurado na alienação de investimento avaliado pelo valor do Patrimônio Líquido, o que gerou, em consequência, a redução indevida do lucro sujeito à tributação.

Para a perfeita compreensão do julgado, torna-se necessário o conhecimento das diversas operações realizadas pela empresa autuada. Foram elas:

 

- a empresa 1770 Participações S/A foi constituída em 14.01.2000, tendo como sócios duas pessoas físicas, com capital social estipulado em R$ 1.000,00, dividido em 1.000 ações ordinárias nominativas sem valor nominal;

- em 15.03.2000, os sócios originais foram substituídos pelas Companhias União dos Refinadores Açúcar e Café e COPERSUCAR Armazéns Gerais;

- em 13.06.2000, a empresa Café-Pilão Caboclo Ltda. (que tinha em seu quadro societário os mesmos acionistas da 1770 Participações S/A) teve seu capital social aumentado de R$ 45.000.000,00 para R$ 71.260.000,00; a integralização do capital se deu mediante aproveitamento de crédito mantido em conta corrente pela sócia quotista Companhia União dos Refinadores Açúcar e Café, com concordância da outra sócia, a COPERSUCAR S/A, que expressamente renunciou ao seu direito de subscrição;

- em 26.06.2000, a 1770 Participações S/A aumentou seu capital social, emitindo 70.007.546 novas ações ordinárias nominativas, sem valor nominal, que foram integralizadas em sua totalidade pela sócia Companhia União dos Refinadores Açúcar e Café, com expressa anuência e concordância da outra sócia, a COPERSUCAR S/A; a integralização do capital foi feita com a entrega de 71.259.00 quotas da empresa Café-Pilão Caboclo Ltda.; com a operação, a 1770 Participações S/A passou a ser proprietária da Café-Pilão Caboclo Ltda.;

- em 03.07.2000, foram realizadas as seguintes operações: - aporte financeiro da empresa MERRILD KAFFE A/S, da Dinamarca, na empresa Café do Ponto Brasil Ltda., no valor de R$ 399.087.838,00; - novo aumento de capital social da 1770 Participações S/A, no valor de R$ 70.001.546,00, mediante a emissão de 70.001.546 ações nominativas, sem valor nominal, a serem subscritas e integralizadas em moeda corrente pelo valor total de R$ 392.460.750,00, com ágio de R$ 322.459.204,00, pela Café do Ponto Brasil, com expressa anuência da COPERSUCAR S/A e da Companhia União dos Refinadores Açúcar e Café, que expressamente renunciaram ao seu direito de preferência (a justificativa econômica para o ágio foi baseada no critério econômico financeiro - projeção de rentabilidade futura -, que levou em conta a situação e os negócios da sociedade controlada Café-Pilão Caboclo Ltda.). Dessa forma, o capital social da 1770 Participações S/A, totalmente subscrito e integralizado, passou a ser de 140.010.092. A importância de R$ 322.459.204,00 foi creditada como reserva de ágio;

- em 04.07.2000, houve uma redução no capital social da 1770 Participações S/A, no montante de R$ 70.001.546,00, mediante o cancelamento de 70.001.546 ações de propriedade da acionista Café do Ponto Brasil Ltda.; em pagamento ao valor correspondente ao cancelamento das ações, foi efetuada a dação em pagamento, pela 1770 Participações S/A à Café do Ponto Brasil Ltda., de 71.259.900 quotas representativas do capital social da Café-Pilão Caboclo Ltda., ou seja, a transferência do controle acionário da Café-Pilão Caboclo Ltda. para a Café do Ponto Brasil Ltda.; com a operação, o capital social da 1770 Participações S/A passou a ser de R$ 70.008.546,00, totalmente subscrito e integralizado;

- finalmente, em 04.07.2000, foi firmado um contrato de mútuo, no valor de R$ 318.240.819,30, entre a 1770 Participações S/A (mutuante) e a COPESRUCAR S/A (mutuária).

 

Após o exame das operações acima descritas, entendeu o órgão julgador que o aumento de capital social da autuada, com pagamento de ágio na subscrição de ações no valor de R$ 322.459.204,00, com o imediato cancelamento das ações integralizadas e a retirada da sócia Café do Ponto Brasil Ltda., com a consequente redução do capital da empresa e restituição do seu investimento com a totalidade das quotas de sua controlada Café-Pilão Caboclo Ltda., representou, na verdade, a alienação de participação societária de sua controlada para a empresa cindenda, sobre a qual haveria de incidir o IRPJ e a CSLL, relativamente ao ganho de capital auferido.

Sustentou a relatora, ao destacar o exíguo espaço de tempo existente entre as operações realizadas, restar configurado um negócio jurídico dissimulado, através do qual o contribuinte, valendo-se da legislação fiscal vigente, praticou os atos apontados com observância da legislação societária, inclusive com a divulgação e registro nos órgãos competentes, sem, no entanto, demonstrar qualquer propósito negocial subjacente, a não ser evitar a tributação incidente sobre o ganho de capital auferido na venda da participação societária.

Em vista de tais argumentos, a modalidade de reestruturação societária utilizada pela autuada – cisão empresarial – foi, para efeitos fiscais, desconsiderada, passando a incidir o tratamento tributário relativo ao ato verdadeiramente praticado – alienação de participação societária.

Consignou-se, todavia, ao final do julgado, que a observância da legislação societária vigente pela 1770 Participações S/A, com a adoção e o registro dos procedimentos nela enunciados, foi suficiente para descaracterizar a má-fé da autuada, e, em consequência, afastar o intuito de fraude e o correspondente agravamento da penalidade aplicada.

 A ementa do julgado segue assim redigida:

 

Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ. Exercício: 2001. OPERAÇÃO ÁGIO - SUBSCRIÇÃO DE PARTICIPAÇÃO COM ÁGIO E SUBSEQUENTE CISÃO - VERDADEIRA ALIENÇÃO DE PARTICIPAÇÃO - Se os atos formalmente praticados, analisados pelo seu todo, demonstram não terem as partes outro objetivo que não se livrar de uma tributação específica, e seus substratos estão alheios às finalidades dos institutos utilizados ou não correspondem a uma verdadeira vivência dos riscos envolvidos no negócio escolhido, tais atos não são oponíveis ao fisco, devendo merecer o tratamento tributário que o verdadeiro ato produz. Subscrição de participação com ágio, seguida de imediata cisão e entrega dos valores monetários referentes ao ágio, traduz verdadeira alienação de participação societária. PENALIDADE QUALIFICADA - EVIDENTE INTUITO DE FRAUDE - INOCORRÊNCIA - SIMULAÇÃO RELATIVA - A evidência da intenção dolosa, exigida na lei para agravamento da penalidade aplicada, há que aflorar na instrução processual, devendo ser inconteste e demonstrada de forma cabal. O atendimento a todas as solicitações do Fisco e observância da legislação societária, com a divulgação e registro nos órgãos públicos competentes, inclusive com o cumprimento das formalidades devidas junto à Receita Federal, ensejam a intenção de obter economia de impostos, por meios supostamente elisivos, mas não evidenciam má-fé, inerente à prática de atos fraudulentos. Recurso Voluntário Negado.

 

5. RESULTADOS

Em vista do exposto, pode-se concluir que o CARF – Conselho Administrativo de Recursos Fiscais vem adotando uma postura de considerar que alguns casos de cisão empresarial ocorrem apenas com a finalidade de fugir da tributação, motivo pelo qual tem desconsiderado tais operações para fazer incidir IRPJ e CSLL sobre o ganho de capital auferido.

E, ainda, que a desconsideração das cisões realizadas, fundamentada, como já se frisou, na ausência de propósito negocial e na finalidade única de obtenção de economia fiscal, são concretizadas mesmo diante da observância das disposições normativas pertinentes pelos contribuintes.

 

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

            No bojo do presente artigo, buscou-se demonstrar que a cisão empresarial, uma das modalidades de reestruturação societária admitidas pela legislação brasileira, vem sendo realizada por diversas sociedades empresárias nacionais como meio de obtenção de condições mais competitivas e economia de tributos.

            Destacou-se, ainda, que para a utilização do instituto, necessário se fazia o conhecimento da legislação a ele aplicável, assim como a exata compreensão do que seja planejamento tributário, dos critérios que legitimam sua adoção e do entendimento das autoridades fazendárias quanto à legitimidade da espécie de cisão a ser realizada.

            Isso em razão de o Fisco e os órgãos julgadores fiscais, mesmo diante da inexistência de regulamentação dos procedimentos previstos na “norma geral antielisão” para tanto, virem desconsiderando, para efeitos fiscais, cisões realizadas com intuito de planejamento tributário, sob o argumento de terem sido praticadas de forma dissimulada, e, portanto, abusiva, para fazer prevalecer o tratamento tributário relativo ao ato verdadeiramente praticado.

            Demonstrou-se, então, na parte final da pesquisa, a partir do exame do Acórdão nº. 108.09.793, representativo da jurisprudência do CARF, que tais autoridades vêm entendendo que a situação na qual se têm um aumento de capital social, com pagamento de ágio na subscrição de ações, seguido de imediata cisão e entrega dos valores monetários referentes ao ágio, representa, na verdade, uma operação dissimulada, através da qual se objetiva tão somente encobrir uma alienação de participação societária, razão pela qual deve ser, para efeitos fiscais, desconsiderada, passando a incidir o IRPJ e a CSLL, relativamente ao ganho de capital auferido.

            A posição encampada pelos órgãos e julgadores fiscais, todavia, fundamentada na ausência de propósito negocial e na finalidade única de obtenção de economia fiscal, mesmo diante da observância das disposições legais pertinentes às cisões realizadas, vem causando insegurança aos contribuintes, tolhendo-lhes o direito à plena utilização do planejamento tributário, mormente por inexistir um parâmetro preciso de distinção quanto aos procedimentos considerados legítimos ou ilegítimos.

            Diante de tal situação, imprescindível se torna a elaboração de estudos mais aprofundados acerca do tema, para que se consiga estabelecer, em um futuro próximo, bases mais seguras no que tange aos limites de utilização da cisão empresarial como legítimo mecanismo de planejamento tributário.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

ALMEIDA, Marcelo Cavalcanti. Manual prático de interpretação contábil da lei societária. Ed 2. São Paulo: Atlas, 2012.

 

BRASIL, Ministério da Fazenda, Primeiro Conselho de Contribuintes. Processo nº. 16175.000489/2005-71, Acórdão nº. 108.09.793, p. 1-17, Relatora Valéria Cabral Géo Verçoza. Seção de 18 de dezembro de 2008. Disponível em:< http://carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudência/listaJurisprudenciaCarf.jsf>. Acesso em: 04.10.2014.

 

MACHADO, Hugo de Brito. Introdução ao planejamento tributário. São Paulo, MALHEIROS EDITORES LTDA. 2014.

 

MACHADO, Hugo de Brito; Machado, Schubert de Farias Machado Dicionário de direito tributário. São Paulo. Atlas. 2011.

 

MARTINS, Fran. Curso de direito comercial / Atual. Carlos Henrique Abrão. Ed. Revi, Atual. e Ampl. Rio de Janeiro. Forense. 2013.

 

OLIVEIRA, Luís Martins et al. Manual de contabilidade tributária: textos e testes com as respostas. Ed. 12.  São Paulo. Atlas. 2013.

 

PEIXOTO, Daniel Moteiro. Responsabilidade tributária e os atos de formação, administração, reorganização e dissolução de sociedades. São Paulo. Saraiva. (Coleção direito em contexto: problemas dogmáticos). 2012.

 

RODRIGUES, Aldemir Ortiz et al. Aspectos jurídicos do planejamento tributário. Ed 2. São Paulo: IOB Folhamatic. (Coleção IOB de planejamento tributário; 1). 2013.

 

TORRES, Ricardo Lobo, 1935. Planejamento tributário: elisão abusiva e evasão fiscal. Ed 2. Rio de Janeiro. Elsevier. 2013.

 

Vade Mecum Saraiva / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia, Lívia Céspedes e Juliana Nicoletti. Ed 15 atual. e ampl. São Paulo. Saraiva. 2013.

 

VASCONCELOS, Roberto et al.  Estudos avançados de direito tributário. Tributação internacional: normas antielisivas e operações internacionais. Rio de Janeiro. Elsevier. 2012.



[1] “[...] OPERAÇÃO ÁGIO. SUBSCRIÇÃO DE PARTICIPAÇÃO COM ÁGIO E SUBSEQÜENTE CISÃO. VERDADEIRA ALIENÇÃO DE PARTICIPAÇÃO. Se os atos formalmente praticados, analisados pelo seu todo, demonstram não terem as partes outro objetivo que não se livrar de uma tributação específica, e seus substratos estão alheios às finalidades dos institutos utilizados ou não correspondem a uma verdadeira vivência dos riscos envolvidos no negócio escolhido, tais atos não são oponíveis ao fisco, devendo merecer o tratamento tributário que o verdadeiro ato dissimulado produz. Subscrição de participação com ágio, seguida de imediata cisão e entrega dos valores monetários referentes ao ágio, traduz verdadeira alienação de participação societária. [...]” (Excerto de Voto – BRASIL, Ministério da Fazenda, Primeiro Conselho de Contribuintes, Oitava Câmara, Processo nº. 10680.002871/2005-22, Acórdão nº. 108-09.037, p. 1, Relatora Designada Karem Jureidini Dias, Seção de 18 de outubro de 2006. Disponível em: <http:/ /carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudência/listaJurisprudenciaCarf.jsf>. Acesso em: 01.10.2014).

“[...] SUBSCRIÇÃO DE AÇÕES COM ÁGIO E SUBSEQUENTE CISÃO. ALIENAÇÃO DE PARTICIPAÇÃO SOCIETÁRIA. SIMULAÇÃO. Os negócios jurídicos envolvendo as reorganizações societárias de que tratam os fatos, com subscrição de ações com ágio, seguida de imediata cisão e entrega dos valores monetários referentes ao aumento de capital, precedida de pacto simulatório, e sem vivência dos riscos do negócio jurídico, revelam uma verdadeira alienação de participação societária e caracterizam a simulação, nos termos do art. 102, e seu inciso II, do Código Civil de 1916, uma vez que os atos formais são apenas aparentes e diferem do negócio efetivamente praticado. Tais atos não são oponíveis ao fisco, e nessa situação é devido o tributo incidente sobre o ganho de capital obtido com a alienação do investimento [...]” (Excerto de Voto – BRASIL, Ministério da Fazenda, Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, Câmara Superior de Recursos Fiscais, Processo nº. 11080.008088/2001-71, Acórdão nº. 9101-00.483, p. 1, Relator Antônio José Praga de Souza, Seção de 25 de janeiro de 2010. Disponível em: <http: //carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudência/listaJurisprudenciaCarf.jsf>. Acesso em: 01.10.2014).

“[...] SIMULAÇÃO - A subscrição de novas ações de uma sociedade anônima, com a sua integralização em dinheiro e registro de ágio, para subsequente retirada da sociedade da sócia originária, com resgate das ações para guarda e posterior cancelamento caracteriza simulação de venda da participação societária. [...]” (Excerto de Voto – BRASIL, Ministério da Fazenda, Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, Primeira Seção de Julgamento, Processo nº. 19515.001895/2007-11, Acórdão nº. 1401-00.155, p. 1, Relator Alexandre Antônio Alkmim Teixeira, Seção de 28 de janeiro de 2010. Disponível em:< http:/ /carf.fazenda.gov.br/sincon/public/pages/ConsultarJurisprudência/listaJurisprudenciaCarf.jsf>. Acesso em: 03.10.2014).