Ao propormos o tema que compreende o cinema como auxiliar na prática do ensino de história, faz-se necessária primeiramente, analisarmos como se dão as relações entre cinema e história e quais as contribuições destas relações para o ensino de história.

Mesmo o cinema sendo datado desde o século XIX, como produção cinematográfica, apenas com a Escola dos Annales, na França, a partir da década de 70 do século XX, o cinema sob o olhar da nova história cultural, passa a ser entendido como representação do real, que é apropriado pelo(a) historiador(a) como documento histórico que ajuda os mesmos em seus ofícios de tentar compreender os indivíduos e suas sociedades através de, costumes, ideologias, mentalidades coletivas, idéia de gênero, sexualidade, religiosidade, política, cultura e etc.

Sendo assim, há uma aproximação da história com o cinema que o toma como parte condicionante de registro histórico polissêmico e como representação do real, ou seja, o cinema passa a servir de ponte para o historiador(a), que vai até o passado, partindo das interrogações e problemáticas de seu tempo e lugar social. O cinema nesta perspectiva torna-se uma ferramenta a mais para as possíveis respostas de tais questionamentos. É por isto que o cerne de nossa pesquisa parte dos nossos questionamentos atuais, que são, problematizar o cinema e o ensino de história a partir da segunda metade do século XX, e principalmente no início do século XXI, contexto de atual explosão da mídia televisiva que muitas vezes banaliza o cinema só com o olhar do consumo capitalista. Nos contrapomos a esta utilização do cinema para com o ensino de história de forma ilustrativa e determinista sobre o passado. Entendemos que a construção cinematográfica ao ser utilizada no ensino de história deve passar por uma ampla análise crítica do historiador(a), evitando o perigo de possíveis anacronismos edistorções históricas na exposição e didática do cinema no ensino de história.

A parti de agora, esclarecida a aproximação da relação entre cinema e história, onde este primeiro passa a ser compreendido como representação do real, problematizaremos o filme "Tempos Modernos" com esta mesma postura, o entendendo como representação do real. Fizemos o recorte temporal de nossa pesquisa orientados nos dois pólos do próprio filme. O primeiro pólo compreende o século XVIII, contexto da representação filmica. O segundo representa o início do século XX, contexto e lugar social do produtor, ator e diretor, Charles Chaplin, que envolve também o contexto da publicação de "Tempos Modernos", 1936.

Com este olhar da nova história cultural, o cinema também passou a ser visto como "documento histórico", um dos pioneiros a fazer esta observação foi o historiador francês "Marc Ferro", que caracteriza os documentos históricos em primários e secundários, o primeiro trata-se dos documentos produzidos à época dos acontecimentos, e o segundo refere-se a documentos de uma produção que se volta para o passado. Portanto, "Tempos Modernos" é um documento secundário. Tomamos como referencial teórico "Marc Ferro", também pelo seu método de fazer a leitura cinematográfica sob duas vias, a primeira é a leitura histórica do filme (crítica externa), como ele foi feito? Quem o fez? Por que o fez? Quando ele foi feito? Qual é o lugar social dos diretores, atores e quem o patrocinou? etc. A outra via é, entender o filme interrogando-o, como os cineastas constroem representações sobre os acontecimentos históricos ilustrados nos conteúdos das películas?(crítica interna).

Dando seqüência a este referencial metodológico começaremos com a interpretação da história do filme(crítica externa). Nascido em East Lone,bairro periférico da cidade de Londres, na Inglaterra, em 16 de Abril de 1889, Charles Chaplin é filho de pais artistas, Charles Chaplin e Hannah Chaplin. Desde seus primeiros anos de vida, o jovem Chaplin convive com a dependência alcoólica do pai que morre em 1901, e com os agravantes de saúde de sua mãe Hannah, que é levada para um hospital psiquiátrico em 1896, ano em que vão para um orfanato, Chaplin e seu irmão Sydney, onde ficam dois anos. Por toda esta breve contextualização dos primeiros anos da vida de Chaplin, além de sua desestruturação familiar, ele convive de perto com a fome, doenças, desemprego, miséria e uma enorme desigualdade social na Inglaterra no início do século XX, mais em meio a tantas coisas ruins, Chaplin sofre a influência direta do meio artístico em que viviam seus pais. Sobe ao palco pela primeira vez em 1894, com 5 anos de idade, durante uma das crises nervosas de suas mãe, em 1911 entra para o teatro de Fred Karnu, chamado London Comedians, de onde vai em turnê neste mesmo ano para EUA.

Aos 14 anos em 1913, vai pela segunda vez aos EUA, onde se destaca, e com o término do seu contrato com "Fred Karnu", assina um contrato com a Keytone Comedy film, em 1914, ano em que cria também o seu mais conhecido personagem, Carlitos, que rapidamente ganha a aceitação no meio artístico. E é também a partir da Keytone Comedy film, que Chaplin passa do teatro ao cinema sem deixar de lado sua brilhante performance teatral diante das câmaras. Em 1915, entra para Ersanay, onde passa a ganhar 1250 dólares por semana, além do direito de produzir os seus próprios filmes. Em 1918, assina mais um contrato, desta vez com a produtora norte-americana, First National, onde inaugura o seu próprio estúdio em Hollywood, na avenida La Brea, em Los Angeles. É a partir deste contexto de 1918, que Chaplin passa a escolher as abordagens históricas de seus filmes, produzidos todos eles dentro de seu próprio estúdio. Outro ponto interessante é o direcionamento de Chaplin quanto a distribuição de seus próprios filmes, que passam a ser distribuídas através de sua própria produtora, United Artists Film Corporation, em 1919.

Percebemos até agora, a trajetória artística de Chaplin, mas, estás, encontram-se diretamente interligadas com as inquietações de seu tempo e lugar social no decorrer de todo o século XX, pois todo artista que questiona o seu tempo como nos propõe "Michel de Certeau", não parte de um não lugar temporal, sem influências diretas de seu próprio tempo. Nesta perspectiva, "Tempos Modernos" trata-se do último filme mudo de Charles Chaplin. Já sabemos que desde o século XIX, o cinema existe como produção cinematográfica, mas neste contexto não existiam ainda recursos tecnológicos disponíveis para o condicionamento da narrativa ao audiovisual como elemento da produção do cinema. Só no início do século XX, com a introdução de modernas tecnologias haverá uma revolução na produção cinematográfica, onde o audiovisual passará a compor a produção filmica. Chaplin, desde os seus primeiros anos, aprendeu com a mãe a arte da expressão facial e da mímica, além de sua apurada sensibilidade de interpretação.

Por toda esta influência dos gestos, sua célebre frase, "um gesto vale mais do que mil palavras". Daí, "Tempos Modernos" ironicamente ser um filme mudo que se contrapõem também as novas tecnologias audiovisuais já existentes na maioria dos filmes deste contexto. Percebemos também que a crítica de "Tempos Modernos" vai além da crítica á introdução do audiovisual na indústria do cinema, ele é uma crítica principalmente ao modelo de indústria capitalista, onde o operário é engolido pelo capitalismo, com sua produção mecanizada, hierarquizada e disciplinada, que age com o auxílio das novas linhas de produção, como o fordismo e o taylorismo que surgem a partir da crise capitalista de 1929, com resposta da política do New Deal do presidente "Franklin Delano Roosevelt". As características do fordismo por exemplo, ainda estão presentes no mundo atual. O sociólogo "Huw Beynon", especialista do mundo do trabalho, ao reiterar Ritzer ressalta que tal concepção, não só de trabalhador, mas também de consumidor ainda estariam em voga:

Muitas características do fordismo também são encontradas no estilo de McDonald's: a homogeneidade dos produtos, a rigidez das tecnologias, as rotinas padronizadas de trabalho, a desqualificação, a homogeneização da mão-de-obra (e do freguês), o trabalhador em massa e a homogeneização do consumo (...) nestes e em outros aspectos, o fordismo continua vivo e forte no mundo moderno. (RITZER apud BEYNON, 1995, p.12)

Mas a política de New Deal não fica só no protecionismo às fábricas, para refortalecer a economia americana, a estratégia de Franklin Delano Roosevelt, passa a ser a de intervir contra as manifestações operárias, greves, as diversas organizações sindicais e partidárias de tendências comunistas, como o PC (Partido Comunista) por exemplo. O auge de repressão é atingido como o movimento Macarthista, que trava uma verdadeira caça as bruxas nos EUA na década de 50, em 1952, o próprio Charles Chaplin, após o seu filme "Luzes da Ribalta", passa a ser perseguido pelo Macathismo e deixa os EUA, onde, apesar de amar a Inglaterra, vai para a Suíça, e só volta aos EUA em 1972, para receber o Oscar de cinematografia, e falece em 25 de Dezembro de 1977 aos 88 anos na Suíça.

De sua estréia no cinema em 1914, com o filme "Para ganhar a vida, a até o seu último longa, de 1966, "A Condessa de Hong Kong", Charles Chaplin se mostrou engajado com as questões sociais do seu tempo, nunca incorporou o espírito americano do "american of Life", pelo contrário, buscou debater através de suas produções cinematográficas, discussões que giram em torno da fome, desemprego, exclusão e desigualdades sociais, exploração da mão de obra trabalhadora na sociedade no consumo capitalista, além de defender o direito de greve, moradia, educação, trabalho e liberdade de expressão na sociedade democrática. Sob tais características do próprio Chaplin em interrogar o seu tempo com as questões citadas acima, nossa pesquisa não trata-se de historicizar o artista "Charles Chaplin" como marxista nem tão pouco comunista.

Entendemos que engajado com as questões históricas de seu tempo, Chaplin se apropria de alguns conceitos marxista como o embate da luta de classe, apropriação dos bens de consumo sob o poder da burguesia, e a exploração do trabalho com a mais valia. E também, não é coincidência que no contexto de 1936, ano de sua publicação, "Tempos Modernos" tenha sido considerado um filme comunista pela crítica cinematográfica americana, chegando a ser proibido na Itália e na Alemanha, e pelo contrário muito bem aceito na União Soviética, França e Inglaterra, países com grande influência socialista, pois o eixo norteador do filme é justamente a crítica do capitalismo que passa pelo processo de modernização fabril.

Agora passaremos a segunda parte da leitura cinematográfica proposta por "Marc Ferro". Como os cineastas constroem as representações históricas a partir de seus lugares sociais(crítica interna). Lembrando que nossa proposta é fazer uma leitura do filme "Tempos Modernos", entendido como um arquivo imagético passivo de várias outras leituras e interpretações, por tanto não trata-se de condicioná-lo como "verdade" sob as conjuras do século XIX. Tal observação serve não só para o uso do cinema como recurso didático no ensino de história, mais no emprego de qualquer outro recurso. Segundo "Cirne Maria Fernandes Bittencourt": Um aspecto fundamental a ser considerado em análises sobre materiais didáticos é seu papel de instrumento de controle do ensino por parte dos diversos agentes de poder.(p. 298).

Esta citação de "Bittencourt" ratifica o que foi dito acima, o historiador(a) deve fazer uma análise crítica sob qualquer material didático a ser utilizado no ensino de história, onde o mesmo tenha conhecimento de que qualquer instrumento ou recurso de didático é um agente de poder que reflete as inquietações de seu próprio contexto, além de lhe exigir uma boa qualificação e preparo para instrumentalizar os recursos didáticos no ensino da melhor maneira possível.

Após este breve comentário, iniciaremos a nossa crítica interna do filme "Tempos Modernos". O primeiro momento do filme começa com a questão do tempo, onde um imenso relógio na fábrica, representado na trama, o controle na produção industrial organizada, disciplinada e voltada para a produção intensa, junto também as divisões da linha de produção causadas pelo Fordismo e Taylorismo, que agem diretamente no psicológico dos trabalhadores. Participam na primeira cena, o diretor da fábrica, interpretado por Allan Garcia, Stanley Sanford e Hank Mann, operários que junto com Carlitos trabalham exaustivamente no manuseio de suas funções dentro da indústria United Corporation.

O segundo momento do filme caracteriza o cenário da fome representada no cais do porto, onde a jovem interpretada por Paullete Goddard, distribui frutas para as crianças que passam fome. O desemprego, pelo qual o próprio pai da jovem é vítima, e vários protestos sociais, que inclusive mostra a cena da jovem chorando após a morte de seu pai em um destes protestos. Aparecem também no segundo momento do filme, mecanismos de repreensão estatal a estas manifestações, como a polícia, que prende por três vezes o próprio Carlitos, confundido como líder grevista. A delegacia, que apresenta-se como espaço de coibição a desordem social, além do combate das drogas como a cocaína, que cresce assustadoramente na sociedade americana na década de 30. A questão do emprego garantido só através de cartas de recomendação como meio de controlar os contingentes das fábricas, o próprio Carlitos busca emprego através de uma carta de recomendação conseguida pela indicação do diretor da prisão, interpretado por Lloyd Ingraham.

A terceira parte do filme mostra as angústias sociais dos homens e mulheres com o novo modelo de economia capitalista baseado no consumo e no aumento da propriedade privada. É nesta terceira parte que entendemos o posicionamento de Charles Chaplin em relação a classe burguesa, não trata-se de ser contrária a ela, o foco da crítica de Chaplin é a desigualdade e injustiça social. Isto ficou bem claro na cena em que Carlitos ao conseguir um emprego em uma loja de conveniência, com a ajuda de sua carta de referência, leva a Jovem para a loja, após o seu fechamento do expediente durante a noite, e juntos desejam ter os bens materiais e o conforto de um lar com todos os seus condicionantes apropriado pela classe burguesa. Ainda na terceira parte, Carlitos durante a sua vigília na loja de conveniência, depara-se com três assaltantes, que na verdade tratam-se de seu ex-amigos de fábrica, que o falam que não roubam porque que gostam, mais roubam por necessidade.

A última parte do filme mostra Carlitos e a Jovem seguindo em frente, num horizonte de esperança apesar da jovem está sendo perseguida como fugitiva e Carlitos desempregado, mais os dois buscam em um futuro próximo melhores condições de vida.

Feita a crítica interna e externa de "Tempos Modernos", percebemos que o seu conteúdo fílmico, que vai representar o século XVIII, fala muito mais como podemos ler acima, das interrogações do tempo do diretor Chaplin, início do século XX, pois como já comentamos, qualquer manifestação que tente representar o passado, parte de um lugar e de um tempo fixos na história, que vão interferir diretamente na representação do passado.

Alem disso, entendemos que no processo de transformar o cinema em documento histórico para serem utilizado no ensino de história, é importantíssimo após feita a crítica interna e externa, também realizarmos uma "comparação" do conteúdo apreendido, com os conhecimentos históricos e sociológicos do contexto em que a película foi produzida, ou seja, como a própria historiografia interpreta tais sociedades, além de termos quecomparar também o filme que usarmos no ensino como outros tipos de filme, que abordam os mesmos conceitos históricos, potencializando com esta comparação, a possibilidade de identificarmos elementos novos de um filme para o outro, durante sua leitura, além de detectarmos possíveis ocultações, rupturas, generalizações, anacronismos, forma variadas de protestos e resistências sociais na música, cultura, política, ideologias e etc. Diante disto, "Cristiane Nova" afirma o seguinte, após feita a crítica interna e externa:

Após a realização de tais etapas, o "analista" deve partir para uma última que consiste na comparação do conteúdo apreendido do filme com os conhecimentos histórico – sociológicos acerca da sociedade que produziu o filme e com outros tipos de filme, para então sintetizar os pontos em que o filme reproduz esses conhecimentos e, por outro lado, os elementos novos que ele apresenta para a compreensão histórica da mesma. Só então o filme transformar-se-á em documento historiográfico utilizável.(p. 6)

Analisando esta citação acima, fica bem claro a proposta de compararmos fontes históricas ao trabalharmos o cinema e o ensino de história, pois é neste processo de comparação que exercemos o nosso ofício de historiador(a), tentarmos interpretar as sociedades e os indivíduos através de suas interpretações. Entendemos tomando como referencial teórico também Cristiane Nova, que o filme "Tempos Modernos", trata-se de uma ficção, pois os seus personagens não existiram na história, mas o que nos interessa é o seu conteúdo, entendido como representação do real.

Portanto, assim com este exemplo, podemos ver que o cinema, uma invenção que aconteceu em plena expansão da Revolução Industrial, tornou-se meio não só do ator Charles Chaplin, aqui representado com o filme "Tempos Modernos", mais também de muitos outros atores e diretores, mostrarem através de suas representações cinematográficas, as problemáticas de seus contextos, que nos historiador(a) lhes apropriamos como documento histórico.

Para concluirmos o nosso propósito de fazer uma leitura do cinema que se aproxima do ensino de história, como vimos no início da exposição de nossa pesquisa, ocorrido na década de 70 do século XX, faremos menção das palavras "Rosa Maria Godoy Silveira", que o "Nosso tempo está sendo tempo de resgate da complexidade da vida, jogada para debaixo do tapete pela simplificação cientificista, progressista e linear da modernidade. Pegando a deixa desta citação de "Rosa Godoy", fica nítida a nossa proposta de ler o cinema como representação do real que traz à tona muito do que foi esquecido e silenciado historicamente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEYNON, Huw. A destruição da classe operária inglesa? In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. No. 27, Ano 10, Fevereiro 1995. p.5-17).

CHAPLIN, Charles. Tempos Modernos. Título original: Modern Times. Preto & Branco. Legendado. Duração: 87 min. Warner, 1936.

NOVA, Cristiane Carvalho. O cinema e o conhecimento da história. O Olho da História, Salvador, v. 2, n. 3, p. 1 - 14, 1996.

SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. XI encontro Estadual dos Professores de História(Associação Nacional de História/ Núcleo Regional da Paraíba): A formação do Profissional de História para o século XXI. 14 de Julho de 2004. (Participações em eventos/Seminário).