não passa de ruína da alma."

(Rabelais, Pantagruel)

"A ciência, que devia ter por fim o bem da humanidade,

infelizmente concorre na obra de destruição e inventa constantemente

novos meios de matar o maior número de homens no tempo mais curto."

(Tolstoi, Confissões)

"A ciência tira a sabedoria das pessoas

e costuma convertê-las em fantasmas

carregados de conhecimentos."

(Miguel de Unamuno, Ensaios: Europeização)

"Sentimos que, mesmo que todas as possíveis

questões científicas fossem respondidas,

nossos problemas vitais não teriam sido tocados."

(Wittgenstein, Tratado lógico-filosófico)

"A ciência fez de nós deuses

antes mesmo de merecermos ser homens."

(Jean Rostand, Pensamentos de um biologista)

Introdução ou A ciência enquanto magia

A modernidade nasceu sob o signo de Prometeu. Roubamos dos deuses a exclusividade da atividade criadora, demiúrgica. Nossa mola existencial consiste em inventar, ousar, e gozar - a despeito de nossas próprias angústias, desesperos, erros e crimes- o esforço incessante de levar uma vida mais ampla e intensa. A nossa inquieta modernidade não pode dizer ao instante que passa: "pára, és tão belo!" Pois só há uma palavra de ordem: Avançar, ir para a frente, além das tumbas.

Mas, nessa disparatada aceleração na fuga para o futuro, onde fica a responsabilidade de cada um? Paradigma faustiano: nosso mundo moderno nos parece cada vez mais nosso quando justamente, cada vez menos, conseguimos assegurar nosso domínio e segurança sobre ele. Nossa modernidade se parece, ironicamente, com o aprendiz de feiticeiro que perde o domínio sobre a magia e, atacado por esfregões e baldes, afogado em montes d'água enlouquecida, se desespera. Escancara-se minuto a minuto o buraco na camada de ozônio, os oceanos e rios devolvem nossos dejetos, fauna e flora agonizam. Foi o aprendiz irresponsável, sedento e afogado, que nos deu os dias mais tenebrosos da Segunda Guerra Mundial, não apenas nos campos de extermínio ou nas anti-rosas de Hiroshima, mas também no gume da espada de um juízo final próprio, pendendo sobre nossas cabeças.

A ciência sem consciência é cruel, e sua crueldade vem do distanciamento, da altura em que esta julga estar. Sempre que nos afastamos, que não relacionamos nossos conhecimentos e a nós mesmos, retemos algo que poderia gerar efeitos positivos. Quando o conhecimento é usado para destruir ou humilhar a menor porção de vida que seja, manipulamos uma ciência noir,  gótica, egóica e negativa. Erramos ao pensar que somos muito diferentes de nossos ancestrais primitivos, com o nosso grande conhecimento e nossa surpreendente tecnologia. Mas as origens do que sabemos e criamos está na mente do homem primitivo, em sua linguagem mítica, em seus arquétipos. Foi essa força que impulsionou a sociedade humana, não apenas agora, mas em outros tantos momentos criativos. Basta lembrar dos egípcios, gregos, fenícios, maias ou mesmo, na recente história ocidental, do Renascimento. Eles que inventaram os segredos da língua escrita e mais tarde sua imprensa, que decodificaram a matemática e a engenharia, a astronomia e o direito. Os picassos das cavernas inventavam tintas e técnicas, e Imhotep (800 a.C.) projetou e construiu a primeira grande pirâmide, a do faraó Djoser.

Necessário é portanto compreender não apenas o conceito de ciência, mas o poder e a responsabilidade inerentes a ela. Como um Fausto hodierno, a ciência do século XX, em especial, conheceu o Mal, fez com ele um pacto, e pagamos agora com nossas próprias almas. Médicos e monstros, paradigmas da nossa própria ruína. O aquecimento global é só uma das faces do inferno que antecipamos com nossa modernidade. Mas não era essa a idéia em torno da Ciência no momento em que Descartes sonhou (ops, pensou) seu Método, nem quando Locke lançou as bases da Ação como realidade última do conhecimento. Eles provavelmente não poderiam supor nosso futuro, nem devemos por isso cair no maniqueísmo suicida que não vê o avanço da medicina, das comunicações e mesmo da compreensão da nossa interioridade psíquica.

Racionalismo e Empirismo são o começo dessa epopéia que, para não findar como tragédia, precisa ser compreendida em seus detalhes e redimensionada a cada descoberta. Afinal, neste mundo louco, abaixo e acima do sol, tudo é sempre novo a cada novo dia.

A Caixa de Pandora

"Mais bela que Pandora a quem os deuses

Cumularam de todos os seus bens

E, ah! Bem semelhante na desgraça,

Quando ao insensato filho de Jafete

Por Hermes conduzido, a humanidade

Tomou, com sua esplêndida beleza,

E caiu a vingança sobre aquele

Que de Jove furtou o sacro fogo."

                                                                                  (Milton, Paraíso Perdido, Livro IV)

Prometeu era da gigantesca raça dos titãs, que viveram na Terra antes dos homens. Ele e seu irmão, Epimeteu, foram incumbidos de criar o homem e os outros animais, garantindo todo o necessário para sua sobrevivência e crescimento. Epimeteu distribuiu todas as qualidades aos animais – força, coragem, esperteza – mas quando chegou a vez do homem, nada mais restava. Então Prometeu, com a ajuda de Minerva, subiu até o carro do sol, no céu, e, tocando-o, acendeu sua tocha, e trouxe o fogo até os homens. O fogo deu ao homem superioridade sobre as outras espécies, permitiu-o aquecer sua morada, cunhar moedas e, inevitavelmente, criar armas. Por seu ato de altruísmo e coragem, Prometeu foi castigado pelos deuses.

A ciência, enquanto conjunto organizado de conhecimentos, pode ser representada pelo fogo, pelas "luzes", roubadas à divindade. Toda ciência, para definir-se como tal, deve necessariamente recortar, no real, seu objeto próprio, assim como definir uma metodologia específica. Essa visão de ciência passou a ser formatada a partir do pensamento de René Descartes (1596-1650), filósofo, matemático e físico francês que lançou as bases do Racionalismo. Sua maior contribuição científica baseia-se no emprego de um método e de uma metafísica que marcam uma definitiva mudança no modo de pensar, já que lhe permitiu desligar-se das confusões da escolástica (filosofia tradicional escrita e contada durante séculos segundo os interesses ideológicos do cristianismo). Descartes define uma precisa lógica da idéia baseada na dedução, que parte do simples para o complexo. Constrói sua metafísica segundo o mesmo modelo, que parte de uma dúvida metódica , levando-o a negar qualquer conhecimento sem base. Só subsiste, então, a certeza do pensamento que duvida. Daí deduz a própria existência daquele que pensa: Cogito Ergo Sum. As idéias, então, não procedem da experiência, mas da própria Razão. Seguem a linha de Descartes pensadores como Spinoza e Leibniz.

Considerando, então, que todos os mesmos pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões dos meus sonhos. Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo, existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia que procurava (DESCARTES, 1987, pág. 67).

Já o Empirismo pensa um método baseado unicamente na experiência. O conhecimento, a ciência em seu todo e suas partes, repousaria na experiência do real. Essa passagem do pensamento para a ação já se havia podido perceber no Renascimento, mas é com Hobbes, Hume e, em especial, Locke, que ganha forma. Diferente da metafísica, para os empiristas não há verdade absoluta ou universal, tudo passando então a ser relativo. Segundo Locke, "não há nada no intelecto que não tenha passado, antes, pelos sentidos". É a fase do sinto, logo, existo.

John Locke (1632-1704) acreditava que não havia, portanto, idéias inatas, e que, sendo a experiência a mãe do conhecimento, a sensação seria apenas ajudada, complementada, pela reflexão. Daí sua concepção do homem como uma tábula rasa ao nascer, tela em branco na qual os signos da vida fossem escritos no decorrer da própria existência.

Todo o nosso conhecimento está fundado na experiência, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. Empregada tanto nos objetos sensíveis externos quanto nas operações internas da nossa mente, que são por nós mesmos percebidas e refletidas, nossa observação supre nossos entendimentos com todos os materiais do pensamento. Dessas duas fontes do conhecimento jorram todas as nossas idéias, ou as que possivelmente teremos (LOCKE, Ensino acerca do conhecimento humano. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 148).

Pode-se perceber, então, diferenças fundamentais entre a visão racionalista e a empirista. A primeira, ainda marcada pela filosofia medieval, centra o conceito de ciência no próprio sujeito, acreditando-o como portador inato de uma razão universal. O segundo aponta para um naturalismo científico, em que a razão e o conhecimento são construções sociais, culturais, históricas, assim como o próprio sujeito. Mais tarde Kant (1724-1804), tentaria superar o dualismo racionalismo-empirismo, por acreditar que um conhecimento baseado apenas na razão ou apenas na experiência estaria, de um modo ou de outro, incompleto. Mas isso já é outra história.

De onde quer que tenha vindo o fogo, a luz da razão, tão cara ao turbulento século XVIII, o que de fato interessa é como este foi utilizado pelos homens, quer o tenham recebido ou já nascido com ele. A caixa de Pandora estava aberta, culpa e glória da imensa curiosidade, esta, também, um presente de grego (leia-se, dos deuses gregos). Por toda a humanidade uma multidão de pragas: gota, reumatismo, cólera, lepra, inveja, tuberculose, vingança. Mas algo ficara no fundo, quando a mulher finalmente conseguiu fechar o baú: uma pequena porção de esperança.

Do fundo do baú

A Idade de Ouro terminou, derretida que foi pelo fogo das guerras, em especial na fornalha do século XX. Prometeu já cumpriu sua pena, mas nós ainda cumprimos as nossas, cada vez maiores e graves, pelo mau uso do poder. O século em que nascemos pode, de fato, ser chamado de o século de Fausto.

Nenhum mito moderno se encaixa tão bem na essência da história contemporânea. A imagem do sábio carcomido, solitário, idoso e dolorido, profundamente decepcionado pelas ciências que estudara exaustivamente, no fundo de seu estúdio como no fundo de uma caverna, afastado de toda a vida, não nos soa estranha. Na câmara gótica, velhos manuscritos e retortas. Decidido a forçar seu destino, o velho cientista convoca Mefisto, um espírito da terra, diabo de menor envergadura, mas esperto e cheio de talentos. Fausto vende sua alma por juventude, poder e prazer, mas paga com sua própria vida e liberdade, perdendo inclusive a lucidez e o desejado amor de Margarida. O mito é antigo, oriundo da Idade Média, e ganhou forma ideal na peça de Goethe. Mas já no século XX, logo depois da Segunda Guerra, Thomas Mann, também alemão, soube redimensionar o mito em seu Doktor Faustus, de 1947. Agora Fausto é Adriano Leverkun, teólogo frio, músico genial e sifilítico, verdadeiro emblema de uma pátria cujos impulsos conduzem à loucura, ao pacto com a destruição e com a própria condenação. É o lado sombra do mago, o conhecimento de mãos dadas com o mal.

Mas ainda resta algo de luz no horizonte. No fundo do baú de Pandora, um pouco de esperança ficou guardada, por mais desgraças que enfrentemos. Se, para Rostand,  "a ciência fez de nós deuses antes mesmo de merecermos ser homens", há que se pensar em corrigir esse paradigma. Para Nietzsche, "o homem é uma corda atada entre o animal e o além do homem: uma corda sobre um abismo". Preciso é então que se busque o equilíbrio, que não se rompa essa cadeia, que não se impeça a vinda desse além nada metafísico, e que tantas vezes já se apresentou na forma de poetas, cientistas éticos, professores compromissados com o humano, líderes políticos de grande alma (mahatma, em sânscrito) e numa infinidade de formas possíveis de unir conhecimento e respeito à vida. Seja pela razão ou pelo empirismo, pela consciência ou pela percepção.

O pensador de qualquer área não pode prescindir de sua função de Prometeu, nem ceder à curiosidade extrema de Pandora, nem decair nos delírios de Fausto. Estamos mais do que nunca sobre um abismo que nós mesmos cavamos, e dessa vez não podemos culpar o universo. Dinossauros estranhos, criamos nosso próprio meteoro, seduzidos pelo poder que o conhecimento traz. Usamos o tempo todo nosso argumentum ad verecundiam, o discurso da autoridade, que Michel Foucalt apropriadamente analisou em seu texto "A Ordem do Discurso". Do professor primário ao cientista atômico, passando pelo advo-rato e pelo industrial inescrupuloso, usamos nosso conhecimento em benefício próprio, e assim esquecemos a verdadeira função da Ciência: iluminar. Seja pela razão ou pela sensação.

Afinal, como diz Shakespeare, antecipando Kant em trezentos anos, "o coração precisa ser inteligente". Pois que seja.

Referências Bibliográficas

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