Danielle Couto Melchiades

Sinopse: Estudo de Cidade de Deus como evolução de O Cortiço

O presente trabalho tem como propósito relacionar semelhanças e diferenças dentro de um contexto histórico-literário entre O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e Cidade de Deus,de Paulo Lins.

O polêmico livro de Lins faz parte da nova literatura brasileira que enche as prateleiras das livrarias. O tema mais abordado atualmente é a violência urbana, que no Brasil, e notavelmente no Rio de Janeiro, atinge índices alarmantes. O domínio do tráfico de drogas nas favelas da cidade contribui  para a manutenção do caos urbano. E essa evolução do processo de favelização nacional é mais antiga do que se imagina, se repararmos com atenção o livro de Paulo Lins, de 1997, ou até mesmo o filme de Fernando Meirelles lançado em 2002, confirmaremos a teoria evolucionista de Darwin e o determinismo de Taine. Tendo como base para esse desenvolvimento o livro O Cortiço, publicado em 1890.

O chocante filme de Meirelles, que lhe rendeu quatro indicações ao Oscar, nada mais é que o  processo evolutivo já denunciado por Azevedo. Cobiça, inveja, ira e luxúria são temas de ambas as obras e pelos quais personagens intensos são capazes de tudo, inclusive  matar.

O crescimento urbano desordenado é indicado no próprio O Cortiço. Primeiramente, a estalagem, a venda, a travessa até a Avenida São Romão. Cidade de Deus é a evolução de O Cortiço onde existe um número maior de personagens intensos, e estes exoplodem numa violência sem fim. Trazendo medo a todoas as camadas da sociedade.

Segundo a teoria de Charles Darwin (1809-1882) a sobrevivência dos organismos depende de sua adaptação ao meio. Serão selecionados para aquele ambiente, portanto, os organismos que se adaptarem melhor. Outro fator destacado por Darwin é a luta pela sobrevivência enttre os descendentes, pois embora nascam  muitos indivíduos poucos atingem a maturidade. Dentro do contexto do presente trabalho o número de personagens que perdem a vida cedo é ainda maior. Cidade de Deus mostra muito bem este aspecto, jovens iniciam sua vida criminosa cada vez mais cedo, assim devido a constante guerra entre traficantes faz dessas crianças, jovens cadáveres.

Os indivíduos são determinados através da seleção natural mantendo ou melhorando a adaptaçao destes ao meio. Podemos, no entanto, considerar esta teoria da seguinte forma que  Cidade de Deus é descendente de O Cortiço. Fortaleceu-se devido a concentração de caracteres tais como violência e o uso constante de drogas, seja álcool (O Cortiço) seja cocaína (Cidade de Deus). Assim podemos constatar que a seleção natural teorizada por Darwin transformou-se em seleção criminal. Ou seja, os portadores de variações desfavoráveis, ou considerados frágeis, são eliminados pelos portadores de variações favoráveis, ou fortes. Dessa forma, na lei da seleção criminal a força física nem sempre vence  na guerra do crime, o mais forte é o mais esperto, aquele que se impõe sobre os outros, amendrontando a comunidade. O melhor termo para definir este aspecto é falha a fala. Fala a bala [2].

Outra semelhança encontrada nas obras é a filosofia determinista de Taine. Partindo do princípio de que todo evento tem causa e que, ocorrendo esta causa, o evento acontece invariavelmente. Encontramos tanto em O Cortiço quanto em Cidade de Deus muitos personagens corrompidos pelo meio. Outros, porém poucos, levaram-se pelo livre-arbítrio como é o caso de Busca-Pé em Cidade de Deus e Piedade em O Cortiço . Piedade luta bravamente contra as influências do cortiço, inicialmente consegue, mantém-se ilesa aos vícios e prazeres mundanos.

A mulher chamava-se Piedade de Jesus; teria trinta anos, boa estatura, carne ampla e rija, cabelos fortes de um castanho filvo, dentes pouco alvos, mas sólidos e perfeitos, cara cheia, fisionomia aberta; um todo de bonomia toleirona, desabotoando-lhe pelos olhos e pela boca numa simpática expressão de honestidade simples e natural. [3]

Mas Piedade é vencida pela força do meio, e quando Jerônimo vai embora com Rita Baiana tenta driblar a dor da perda do marido e a falta de dinheiro, somado ás más-influências. Assim a  portuguesa  torna-se boa de trago e conhece os prazeres da embriaguez.

Piedade de Jesus , sem se conformar com a ausência do marido, chorava o seu abandono e ia também agora se transformando de dia para dia, vencida por um desmazelo de chumbo, uma dura desesperança, a quem nem as lágrimas bastavam para adoçar as agruras. (...) Um dia, Piedade levantou-se queixando-se de dores de cabeça, zoada nos ouvidos e o estômago embrulhado; aconselharam-lhe que tomasse um trago de parati. Ela aceitou o conselho e passou melhor. No dia seguinte repetiu a dose; deu-se bem com a perturbação em que a punha o álcool, esquecia-se um pouco durante algum tempo   das amofinações da sua vida; e, gole a gole, habituara-se a beber todos os dias o seu meio martelo de aguardente, para enganar os pesares. [4]

Ao contrário, o aspirante a fotógrafo Busca-Pé escapa do círculo vicioso da contravenção, mostrando uma alternativa virtuosa à guerra que o cerca desde criança.É o garoto vitorioso que não foi corrompido pelo meio, escapando do determinismo e da perspectiva do desalento. Por isso sua vitória parece tão gloriosa, tão digna de admiração.

Buscapé segue regras ditadas por sua mãe, desde criança, para manté-lo longe do mundo do crime. Mas também impõe-se quando o assunto é seu futuro.

Um dia ganharia um prêmio. A voz de sua mãe chicoteou em sua mente:

-  Esse negócio de fotografia é pra quem já tem dinheiro! Você tem é que entrar pra Aeronáutica....Marinha, até mesmo pro Exército, pra ter um futuro garantido. Militar é que tá com dinheiro! Não sei o que você tem na cabeça, não! [5]

O menino sonhador trabalhou duro em supermecado na tentiva de conseguir dinheiro para comprar uma câmera fotográfica. Consegue juntar dinheiro, mas não a manutenção de seu emprego, quando moleques de sua comunidade assaltam o mercado Busca-Pé é demitido.

Outra semelhança entre Busca-Pé e Piedade é o gosto por se entorpecer. O garoto não se rende ao vício como a mulher, embora gostasse de fumar um baseado com seus amigos e sempre dizia aos careta que a maconha era a luz de sua vida: dava sede, fome e sono! [6] As obras como um todo também são parecidas, pois a personagem principal é o próprio conjunto habitacional, seja o cortiço seja a favela ambos são dotados de vida própria. Esse processo faz com que o meio pobre e promíscuo exerça sobre seus habitantes grande poder determinista. É formado um painel social em que são apresentados os personagens típicos de uma dada realidade urbana, valendo o coletivismo sobre o individual. Este aspecto levanto por Affonso Romano de Sant´Ana não se encaixa na personagem de João Romão, pois este é um ambicioso nato capaz de tudo para atingir seu objetivo de enriquecer; não leva em conta o outro e tira proveita até de sua companheira e cúmplice Bertoleza.

Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às quatro da madrugada estava já na faina de todos os dias, aviando o café para os fregueses e depois preparando o almoço para os trabalhadores de um pedreira que havia para além de um grande capinzal aos fundos da venda. Varria a casa, cozinhava, vendia ao balcão na taverna, quando o amigo andava ocupado lá por fora; fazia a sua quintanda durante o dia no intervalo de outros serviços, e à noite passava-se para a porta da venda, e, defronte de um fogareiro de barro, fritava fígado e frigia sardinhas, que Romão ia pela manhã, em mangas de camisa, de tamancos e sem meias, comprar à praia do Peixe. [7]

João Romão é possuidor de um desejo irracional de enriquecer. Em seu projeto de vida apenas uma palavra faz parte: dinheiro. Dinheiro para aumentar a estalagem, comprar a pedreira,   aumentar o cortiço para com isso ganhar mais dinheiro e comprar títulos de nobreza num duelo doentio com seu vizinho Miranda. Inescrupuloso não hesita em adulterar mercadorias ou até mesmo a carta de alforria de Bertoleza,e ainda, apoderar-se de coisas alheias. É um explorador implacável com todos que o cercam, frequentadores da estalagem, moradores do cortiço e funcionários. Enquanto moradores do cortiço enfrentam com dificuldade a rigidez das barreiras, tentando viver com dignidade, João Romão mantém-se soberano, superando o esquema determinista. Ao invés da degeneração há ascenção social e financeira.

João Romão conseguira meter o sobrado do vizinho no chinelo; o seu era mais alto e mais nobre, e então com as cortinas e com a mobília nova impunha respeito. Foi abaixo aquele grosso e velho muro da frente com o seu largo portão de cocheira, e a entrada da estalagem era  agora dez braças mais para dentro, tendo entre ela e a rua um pequeno jardim com bancos e um modesto repuxo ao meio, de cimento, imitando pedra. Fora-se a pitoresca lanterna de vidros vermelhos; foram-se as iscas de fígado e as sardinhas preparadas ali mesmo à porta da venda sobre as brasas; e na tabuleta nova, muito maior que a primitiva, em vez de 'Estalagem de São Romão' lia-se em letras caprichosas: 'Avenida São Romão? [8]

A mais complexa personagem de Azevedo é Jerônimo. Português de hábitos simples, saudoso de sua pátria-mãe, trabalhador que sofre nitidamente a influência do meio degenerativo em que vive. Sua perdição dá-se pela paixão arrebatadora que nutre por Rita Baiana. Seu sucessor no processo histórico é Mané Galinha. Também como o português é trabalhador, trocador de ônibus,e avesso às seduções proporcionadas pelo mundo do tráfico. Isso até a entrada de sua noiva em cena, mais um vez o homem é levado a perdição por causa da mulher. Mas dessa vez a mulher é passiva, não participa ativamente na contravenção do noivo. Ela é estuprada por Zé Pequeno que após consumar o ato pensou em matá-lo, mas se o matasse ele iria sofrer pouco, e sofrimento pouco é bobagem. [9]

Pode-se, então comparar Jerônimo com Mané Galinha. Ambos tornam-se agressivos, sedentos por vingança, envoltos em  guerras  particulares com objetivo único de limar os opositores. Jerônimo concentra sua raiva e com ajuda de amigos arma uma cilada para Firmo, remetendo-nos ao duelo entre Zé Pequeno e Mané Galinha. Galinha recebe ajuda do traficante Sandro Cenoura, a guerra particular de um é a guerra pela manutenção da freguesia do pó do outro. O vencedor será aquele que conseguir a boca-de-fumo do outro, aumentando,assim, sua clientela. Jerônimo e Firmo lutam pelo amor de Rita Baiana; por amor e  por sede de vingança Galinha alia-se a Cenoura. E assume a responsabilidade de eliminar Zé Pequeno. Temos então um painel complexo e inter-relacionado no qual personagens se reencontram e se refazem num meio comum, em atitudes e objetivos comuns.

Zé Pequeno luta com armas e cocaína para atingir seus objetivos, o principal é conseguir  a boca-de-fumo de Cenoura, pois as outras já havia dominado. Nesse delírio de ser o único traficante da Cidade de Deus, Pequeno mostra-nos uma incrível semelhança com João Romão. Falta de escrúpulos somado à ganância e, à uma arma na mão, faz de Pequeno, o maior traficante da Cidade de Deus, respeitado pelos outros e temido por inocentes como Busca-Pé. Tal qual Romão adultera a mercadoria e  explora pequenos criminosos, como assaltantes e aviõezinhos. Desde de criança mostra-se sangue-frio, principalmente, após a chacina no motel. Devido aos crimes adquire uma visibilidade no meio em que vive digna de um pop star.

A luta por espaço no crime organizado reflete na guerra constante que o Rio de Janeiro assiste entre suas favelas guerra essa semelhante a Cabeças-de-Gato versus Carapicus. Cidade de Deus não mostra este lado, mas é uma constante nos noticiários.

Ao término da leitura dos dois livros nota-se que são secas e diretas as imagens que  conduzem o leitor através das ações rápidas e diálogos curtos por pocesso histórico evolutivo e degradante. É a confirmação do descaso público, da construção da pobreza por parte dos governantes, de organização de um modo de vida à margem da sociedade; predominando o crime, como se fosse o mais lógico caminho da vida. Neste mundo do cada um por si, da luta pela sobrevivência não tem espaço para o lirismo. Também não há auto-estima, julgamentos morais e nem sequer heróis. Não existem escolhas, nem dicotomias bem/mal, trabalho/crime, mocinhos/bandidos.

Em uma das epígrafes de O Cortiço, João Francisco Lisboa diz que é necessário exigir censura para os vícios e crimes dentro da sociedade. Como não houve censura, os crimes e os vícios potencializaram atingindo índices caóticos. A sociedade da época de Cidade de Deus  é o resultado da política ineficiente da época de O Cortiço.  Ambas as obras são relatos que passam da pureza ao desvituamento. Cidade de Deus segue a linha do Realismo relatando as mazelas sociais, carregados de tensão sexual condizntes com o sentido de violência circundante.

Da fecundação do Cortiço nasceu Cidade de Deus.

E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. [10]

Referências bibliográficas

AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. Porto Alegre: L&pm, 1998.

BRAYNER. Sônia. A Metáfora do corpo no ramance naturalista Estudo sobre O Cortiço. Livraria São José.

LEAL, Hermes. Revista de Cinema. 15 mar. 1999.

LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

LOPES, Sônia. Bio. Volume único. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

PAIVA, Marcelo Rubens. Cidade de Deus, o livro, dá voz a quem não tem mais nada. Folha de São Paulo, São Paulo, 16 de ago. 1997.

            . Paulo Lins é um autor e tanto. Folha de São Paulo, São Paulo, 16 ago. 1997.

SANT'ANA. Affonso Romano. Análise Estrutural de Romances Brasileiros. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1975.

Filmografia

CIDADE de Deus. Direção Fernando Meirelles. Brasil: O2 produções: Dist.Miramax, 2002. 1 filme (130 min): son., cor., 16 mm.


 

[2] LINS:2003, p.21

[3] AZEVEDO:1998, p.66

[4] AZEVEDO:1998, p.261/262

[5] LINS:2003, p.12

[6] LINS:2003, p 13

[7] AZEVEDO:1998, p 12/13

[8] AZEVEDO:1998, p273/274

[9] LINS:2003, p 308.

[10] AZEVEDO:1998, p. 27