CIDADÃO OU CONSUMIDOR?
A EXPLORAÇÃO PELO CONSUMO E A QUESTÃO SOCIAL






Janaina dos Santos Souza


RESUMO
Este artigo tem como objetivo demonstrar a exploração do capital pelo consumo e suas conseqüências na questão social do Brasil. Sob um olhar crítico dialético buscamos relacionar o desejo de consumo segundo a estruturação social e cultural no país. Destacamos a intervenção do profissional de Serviço Social nas relações de consumo como medida de prevenção em programas de transferência de renda. Em especial no tocante ao Programa Estadual Ação Jovem que visa beneficiar adolescentes e jovens na faixa etária de 15 a 24 anos, com ensino fundamental ou ensino médio incompletos, domiciliados nos setores censitários de alta vulnerabilidade social. Programa esse que transfere diretamente aos participantes, apoio financeiro mensal e temporário, como incentivo à permanência ou retorno à escola. Nesse contexto, após realização de diagnóstico junto ao grupo, observamos a necessidade de intervenção direta para modificar o preocupante quadro estatístico. Mais da metade dos beneficiários declarou utilizar a verba recebida no Programa em itens supérfluos, quando deveriam investir em suas potencialidades. Obtemos nesta intervenção a conscientização dos jovens para assim mudar o modo de como os mesmos vêem o consumo, não mais de forma impulsiva, predatória, como incita a mídia para a manutenção do modo de produção capitalista.

Palavras-chave: Consumo. Exploração. Serviço Social.



1. INTRODUÇÃO


O artigo que ora vem a público, constitui em um trabalho de conclusão de curso, elaborado no estágio supervisionado do Curso de Serviço Social da Faculdade Anhanguera Uniderp Pólo de Pindamonhangaba ? SP.
O objetivo é oferecer um contributo ao papel do assistente social enquanto agente transformador na garantia de direitos dos cidadãos, que requer a intervenção no que tange às relações de consumo.
Utilizamos como pesquisa de campo o programa Estadual Ação Jovem, em Moreira César, distrito desta cidade, onde participam 150 jovens. É um programa de transferência de renda que visa beneficiar o jovem como incentivo à permanência e/ou retorno à escola, e tem como critério a participação em reuniões sócio-educativas semanais, onde são abordamos temas pertinentes à realidade dos jovens.
No mês de abril, abordamos o tema consumo, onde na primeira reunião realizada no dia 05, aplicamos um questionário avaliativo para averiguarmos no que está sendo investido o benefício do programa, conforme demonstraremos no decorrer deste artigo.
Após o diagnóstico passamos o mês intervindo nesse contexto com vídeos, palestras e debates, e assim no dia 26 de abril aplicamos um segundo questionário para que eles fizessem um comparativo com o primeiro e relatassem a mudança de visão, após todo conteúdo abordado. E ressaltamos aqui que os resultados foram positivos.
Escolhemos o tema consumo por ser de suma importância a abordagem em programa de transferência de renda, a fim de evitar que os cidadãos, em um círculo vicioso, retroalimentem o plano mercantilista de consumo predatório, persuadindo os mesmos a utilizarem o benefício recebido no programa em produtos supérfluos, impostos pela mídia e ditados por modismos.
Diante do atual quadro de consumo onde o ter sobrepõe ao ser, surge uma nova demanda para os profissionais da área, no que diz respeito à conscientização para a população, constantemente bombardeada por falsas promessas de status a qualquer preço, inclusive levando-os à produção de mais-valia e até a cometerem atos delituosos.
Sem o preenchimento dessa lacuna, a práxis do profissional estará reafirmando o modo de produção capitalista em detrimento aos legítimos direitos das classes menos favorecidas, infringindo o compromisso ético da categoria.
É neste contexto que propomos a intervenção na raiz da questão social: o consumo. Pois é pelo consumo que se aprisiona o trabalhador, se exclui, aliena, segrega e distorce valores. Pois é por meio do consumo que o sistema capitalista emprega toda sua força. E nesse sentido aprofundaremos as intervenções de modo a buscar a transformação, o desenvolvimento de potencialidades e ampliação das ações profissionais com vista à conscientização e à incessante busca por novos paradigmas na construção da cidadania.


2. CIDADÃO OU CONSUMIDOR ? O CONCEITO DE CIDADANIA E O CONSUMO NUMA VISÃO MARXISTA


Para melhor explanar o tema Cidadania x Consumo é de suma importância contextualizarmos o conceito de cidadão que, em sua definição coloca o indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um estado livre.
Dentro do contexto capitalista, o direito de cidadão se confunde com a liberdade de consumo.Canclini (1997 apud Maldonado, 2011, p.21 ) ressalta que

[...] as classes sociais substituíram os seus anteriores direitos de cidadania pelo direito ao consumo. Isto ocorre principalmente porque este é um dos elementos de inclusão social na ordem atual, ou seja, o cidadão brasileiro acredita que a liberdade de efetivar sua cidadania está relacionada com o poder de consumo.

O sistema capitalista incuti na mente das pessoas que somos livres e soberanos para exercer nosso direito de escolha no que tange aos bens de consumo. Por diversos motivos prova-se que o desejo de consumo reproduz-se segundo a estruturação social, a mídia consegue persuadir os consumidores para onde quer e entende, e por conseguinte, manipula os desejos e necessidades dos cidadãos pelo efeito demonstração.
No Brasil, a partir de 1960 a televisão foi se impondo como um meio de comunicação hegemônico. Essa hegemonia permitiu que até o mais humilde operário almejasse os mesmos produtos que um médico por exemplo, produtos esses que são vinculados através da mídia para ambos, ou seja, a publicidade e propaganda aproximam os diferentes setores sociais, tornando-os membros do mesmo sistema simbólico. Trata-se então, da "socialização do consumo" (grifo nosso). Somos manipulados e levados a um processo de alienação pela mídia. É por meio dela que vemos propagadas, novelas, filmes e até desenhos infantis ditando o tempo todo o que temos que ter para sermos felizes e bem sucedidos. Isso faz com que se trabalhe, ou mesmo se roube cada vez mais para consumir, e ao chegar cansado em casa, sentado em frente à televisão para novamente ser bombardeado com novos comerciais, inicia-se assim, um círculo vicioso.
A vinculação de valores expostos permeia a ilusão do ter em detrimento do ser, como afirma Gorender, (1999, p.125):


A sociedade capitalista se apresenta como sociedade do espetáculo, tal qual definiu Debord:Importa mais do que tudo a imagem, a aparência, a exibição. A ostentação do consumo vale mais que o próprio consumo. O reino do capital fictício atinge o máximo de amplitude ao exigir que a vida se torne ficção de vida. A alienação do ser toma o lugar do próprio ser. A aparência se impõe por cima da existência. Parecer é mais importante do que ser.


Gramsci (1978, p.52) em seu conceito de hegemonia discorre que


A realização de um aparato hegemônico, enquanto cria um novo terreno ideológico, determina uma reforma das consciências e dos métodos de conhecimento, é um fato de conhecimento, um fato filosófico.


Desta forma a hegemonia do consumo afirmou-se na história como grande norteadora do projeto neoliberal, colocando a lógica do mercado como grande regulador de todos os aspectos da vida em sociedade, ocasionando, segundo Iamamoto (1998, p.35) "por um lado a satanização do Estado, [...] Por outro lado, a exaltação e a santificação do mercado e da iniciativa privada".
Assim, o capitalismo, em sua versão neoliberalista, consegue um feito surpreendente: colocar-se como a única alternativa. Chega-se ao século XXI, com a idéia de que a realidade está imutável, e que, cabe agora tentar melhorar as condições que não podem ser mudadas. Sobre este feito, Lessa (2001, p.75) ressalta que:

Desde a Revolução Francesa, não houve nenhum outro período no qual o capital se tornou tão hegemônico e tão plasmado à vida cotidiana como nos últimos trinta anos. Nunca antes a humanidade se comportou tão hegemonicamente como se não houvesse alternativa.


Deste modo, o capitalista consegue distorcer o conceito de cidadania, e pensamento coletivo, ou visão de mundo, propiciando cada vez mais a individualização. Individualização esta, que retira a verdadeira identidade dos cidadãos e agrava as expressões da questão social, limitando as relações sociais em relações de consumo, reforçando a hegemonia consumista que é utilizada como instrumento de dominação. Criam-se imagens distorcidas da realidade, limitando a sociedade a meros consumidores de seus produtos que, na maioria das vezes, não servem para absolutamente nada, a não ser para reforçar o ego daqueles que estão engendrados nessa teia ilusória. Os que mais sofrem com essa supremacia maquiavélica são os mais frágeis nesta cadeia alimentar do consumo: os trabalhadores, que outrora produziam seus próprios meios de subsistência, e hoje são apenas mais uma peça dentro desse sistema, que "produz felicidade em massa" (grifo nosso).
Nos primórdios da sociedade civilizada o trabalho nas cidades organizava-se em torno do artesanato e do comércio. Nesse início o trabalhador possuía total conhecimento do seu ofício, ou seja, o artesão tinha total domínio de sua mercadoria, desde á extração do material até seu valor de troca. Á medida que o comércio se expandia o capitalista passou a intermediar a produção, comprando o produto do artesão e vendendo-o por um preço maior obtendo, dessa forma, o lucro. A partir desse momento o trabalho saiu do controle do artesão, os trabalhadores passaram a realizar tarefas parceladas e o trabalho dividiu-se. Nesse modelo econômico o monopólio introduz novas tecnologias objetivando economizar trabalho humano, substituindo o mesmo pelas máquinas.
O Capitalismo Monopolista segundo Alves (2001, p.189)


Teve início quando as grandes empresas começaram a abarcar as pequenas e as medias no último terço do século XIX. Essa divisão acentuou-se com a Revolução Industrial que intensificou e fragmentou a produção do processo de trabalho.


Essa técnica de produção em massa fez com que o proletariado não tivesse domínio de sua mercadoria. O desenvolvimento do trabalho passou a ser rotineiro, com movimentos repetitivos, alienando-os, como afirma Marx: (1844, p.59)


A alienação do operário em seu objeto exprime-se, segundo as leis da Economia, do seguinte modo: quanto mais o operário produz, menos tem para consumir; quanto mais cria valores, mais se deprecia [...] o trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz a privação para o operário [...]


O trabalhador, então, passa a vender sua força de trabalho, para o capital, em troca de remuneração. Inicia-se então a era do consumo alienado. Para adquirir bens essenciais para sua sobrevivência, o trabalhador que até então os buscava com seus próprios meios, agora se submete as leis do mercado para garantir sua qualidade de vida, que também teve seu conceito distorcido a partir desta época.
A contradição originada nos moldes do monopólio é constituinte do sistema capitalista que explora a força de trabalho, a riqueza socialmente produzida pelo conjunto da classe operária. Neto (1992, p.19) afirma que


O capitalismo monopolista recoloca, em patamar mais alto, o sistema totalizante de contradições que confere à ordem burguesa os seus traços basilares de exploração, alienação e transitoriedade histórica [...]


Na década de 50, a economia brasileira registrava alta concentração monopolística. O governo de Juscelino Kubitschek de Oliveira massacrou o empresariado nacional e instituiu um regime de privilégios para capitalistas americanos, exemplo disso foi a quase total extinção das ferrovias brasileiras para a expansão da indústria automobilística da Ford no país.
A classe burguesa nacional entrou em crise sob pressão das empresas transnacionais de capital monopolista com interesse no Brasil. Essa crise foi contornada com o regime militar que apoiou a concentração do capital, proibiu o sindicalismo, suprimiu os focos de resistência, agravou a exploração do trabalhador e instituiu a ditadura. A partir daí o Estado foi colocado a serviço da iniciativa privada e foram intensificados os programas assistenciais para neutralizar os conflitos.
Marx (1967, p.171) em seu método crítico dialético afirma que, "a mais ? valia é a expressão exata do grau de exploração do trabalho pelo capital ou do trabalhador pelo capitalista". O sistema recorre ao exército de reserva, que corresponde à mão de obra barata, os desempregados, para substituir com menores salários aqueles que reivindicam seus direitos.
Mão de obra barata significa preço baixo em produtos na vitrine. Isso faz com que o consumidor sem consciência alguma, pague por um produto achando que está no lucro, enquanto o provedor de sua família paga com a força de trabalho advinda da exploração na indústria, os filhos pagam com a saúde, com o aumento da poluição e o desmonte de nossos recursos naturais. Enfim todos são prejudicados, e o que fazemos para mudar tudo isso? Consumimos.
O consumo é o coração do sistema vigente. O proletário passa a trabalhar mais para saciar o ego, e consumir. Nossa principal identidade passou a ser de consumidores, nosso valor é medido e demonstrado pelo quanto temos e consumimos. Garaudy (1967 p.141) ressalta que a forma mais específica de apropriação da mais-valia no regime capitalista


Em uma comunidade de trabalho dominada pela troca de mercadorias, em que o homem não produz para suas necessidades ou para as da coletividade à qual pertence, mas para o mercado, o trabalho de cada homem não produz mais valores de uso, mas valores de troca. O produto do homem, tornando-se mercadorias, tem cortada sua relação com o homem. Isto em duplo sentido: ele está separado da necessidade porque é destinado a um mercado impessoal; ele está separado do trabalho porquanto o trabalho produtor de mercadoria é igualmente impessoal, homogêneo e não se distingue pela quantidade.


Os cidadãos perdem sua identidade, sua essência para entrar nessa corrida desenfreada pelo ter. Grande parte das coisas que compramos e consumimos tornam-se lixo em média de seis meses. Hoje os paises mais desenvolvidos consomem o dobro do que á cinqüenta anos atrás. Isso foi planejado pouco depois da segunda guerra mundial quando o Estado americano estudava a forma de impulsionar a economia. O analista de vendas Victor Lebaw articulou a norma que seria a solução de todo sistema, afirmando que a enorme economia produtiva americana exigia que fizessem do consumo a forma de vida que torne a compra e o uso de bens em rituais, que procure a satisfação espiritual a satisfação do ego em consumir, e ressaltou ainda a necessidade de que as coisas sejam consumidas, destruídas, substituídas e descartadas a um ritmo casa vez maior, fazendo dos cidadãos, "marionetes" que dançam conforme o regimento da música capitalista. Música esta, de compasso desordenado e ritmo acelerado (grifo nosso).


2.1 O consumo e os programas de transferência de renda


O Brasil tem sua história marcada, de um lado pela concentração de riqueza por parte de uma minoria elitista e de outro pela pobreza e exclusão social. Silva e Silva (2006, p.3) concebe a pobreza no sentido de sua multidimensionalidade. Nesse sentido, a autora afirma que a mesma


Não pode ser vista como mera insuficiência de renda, pois é também desigualdade na distribuição da riqueza socialmente produzida; é não acesso a serviços básicos; à informação; ao trabalho e a uma renda digna; é não participação social e política.


Partindo desse referencial, os Programas de Transferência de Renda são considerados como mera moeda de troca eleitoreira e mediação com sindicatos pelegos para que se evite uma revolta geral e o povo parta para uma revolução à exemplo de outros países; Di Fiori, (2008, p.10)


[...] Na busca pelas explicações sobre sua emergência, tendo em vista sua redução e regulação, necessárias para permitir a manutenção do sistema de produção capitalista, quando então as políticas públicas surgem tencionadas pelos modelos neoliberais de desenvolvimento econômico na lógica de mercado com reflexos nas políticas sociais, forjadas pelo cunho compensatório e focalizado, na versão moderna de programas de transferência de renda.

Situando-se no âmbito das transformações econômicas e societárias que vêm marcando o assistencialismo ao invés de política emancipatórias, levando a reestruturação do capitalismo mundial na sua fase mais recente, identificada a partir dos anos 1970, com maior aprofundamento nos anos 1980 e no Brasil, nos anos 1990, realçando as políticas de intervenção social, ou meramente arregimentação de mão de obra barata.
A construção da cidadania em nosso país teve sempre no poder executivo, um multiplicador de ações paternalistas e práticas nepotistas, criando pseudos quadros de liberdade civil e uma falsa concepção de democracia.
Somente com as grandes movimentações populares em prol da democracia ocorridas a partir de 1980 e a promulgação da Constituição Federal de 1988 assegurou a todos os brasileiros uma série de direitos sociais enquanto direitos de cidadania. Contudo, na década de 1990, a implementação do projeto neoliberal, globalizou seu programa de ajuste fiscal, um verdadeiro "desmonte social" por toda a América Latina.
O período de 1990 a 1992, foi governado pelo presidente Fernando Collor de Melo, cuja eleição foi conseguida através da manipulação da mídia na figura imbatível do Caçador de Marajás, sendo esta responsável também pelo seu impeachment; utilizando as manifestações dos caras pintadas. Neste curto mandato o presidente Collor implementou o projeto neoliberal no país, dando início as privatizações, com o argumento de que contra o gigantismo do Estado, somente o chamado Estado mínimo e a abertura do mercado nos tiraria da condição de subdesenvolvimento, nada citando sobre a praga da corrupção, esta sim um verdadeiro gargalo de desvio do dinheiro público. Com essas medidas, o tripé Saúde, Previdência e Assistência Social, ficou apenas no papel, além do lançamento do pacote da reforma previdenciária que retirou direitos legítimos dos trabalhadores, culminando com o veto à Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), praticando mais um ato inconstitucional, uma vez que a Carta Magna inseria esta lei no conjunto do sistema da Seguridade Social.
Quando o então vice-presidente Itamar Franco, assumiu a chefia do poder executivo federal a LOAS foi sancionada, mas com o avanço do neoliberalismo, a mesma ficou só no papel e assim permaneceu durante o governo de presidente Fernando Henrique Cardoso, o qual aceitou as imposições do Fundo Monetário Internacional, (FMI) tais como arrocho salarial e pagamento das parcelas da dívida externa, sem nenhuma forma de renegociação dos juros exorbitantes cobrados pela política imperialista dos norte-americanos.
Somente em 2003 no governo Lula, aprovou-se a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), dando origem ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS). O SUAS tem como característica fundamental a territorialização do sistema, descentralizando o poder político administrativo e padronizando os serviços da assistência social. O que possibilitou a efetivação da LOAS e a partir dela a implantação dos Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) que atende a modalidade de proteção básica e o Centro de Referência Especializada em Assistência Social (CREAS), que oferece proteção em situações de alta complexidade. Dentro desta rede de serviços estão também o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e outros benefícios eventuais sócio-educativos e projetos de inserção produtiva.
Dentro do sistema de proteção social básica atuamos como estagiárias no CRAS Moreira César, no município de Pindamonhangaba-SP, coordenando o Programa Ação Jovem, do Governo do Estado de São Paulo, que visa beneficiar jovens na faixa etária de 15 a 24 anos, com ensino fundamental e/ou médio incompletos, domiciliados nos setores censitários de alta vulnerabilidade social. Este programa transfere diretamente apoio financeiro aos jovens durante um período de doze meses, podendo ser prorrogado por igual período. Esse programa foi lançado em 1° de junho de 2004.
Atentas ao complexo tema que desenvolvemos, buscamos nessa experiência, organizar e embasar nossa práxis e então buscar efetividade nas relações de consumo em programas de transferência de renda.
Após diagnóstico realizado com 37 jovens do grupo, por meio da aplicação de um questionário, verificamos a predominância da ideologia consumista e como esta hegemonia afeta suas escolhas em todos os aspectos da vida dos mesmos.
A aplicação do questionário foi realizada com todos os jovens que compareceram à reunião sócio-educativa no dia 05 de abril de 2011. Ao solicitar aos mesmos a assinatura do termo de compromisso, lhes foi explicado estarem os mesmos sendo público alvo da pesquisa que culminou com o presente artigo.
Constatamos após a aplicação do questionário, a necessidade de intervenção direta sobre o tema, pois os dados abaixo apresentados mostram-se preocupantes. Grande parte dos jovens utilizam seu benefício com gastos particulares, demonstrando assim, a eficiência dos programas de transferência de renda em aquecer a economia capitalista, e dar ao cidadão de baixa renda a oportunidade de participar desse mundo de consumo predatório:


Tabela 1 ? Utilização do benefício


NÚMERO %
Gastos Particulares 25 67,6
Cursos 6 16,2
Necessidades da casa 6 16,2
Total 37 100


Desta forma o sistema vigente tem total controle sobre o cidadão, (entenda-se aqui consumidor), garantindo, assim, o caráter compensatório e regulador de suas ações, enquanto permeia e busca manter a hegemonia do desenvolvimento capitalista (grifo nosso).
Para tanto o capital utiliza a mídia como principal ferramenta de distorção de valores que promete a todo o tempo uma nova e inexplorada oportunidade de felicidade. Verificamos a eficácia dessas ações quando por exemplo perguntamos aos jovens sobre os comerciais de TV de sua preferência, objetivando realizar uma vinculação entre os desejos de consumo dos jovens com a exposição (e imposição) da mídia.


Tabela 2 ? Comerciais preferidos entre os jovens do programa
NÚMERO %
Outros 11 29,72
Skol 8 21,67
Chamadas de Novela 5 13,51
Infantis 3 8,10
Carros 3 8,10
Coca-Cola 2 5,40
Pepsi 2 5,40
Brahma 1 2,70
Tang 1 2,70
Rexona 1 2,70
Total 37 100


Entre os principais comerciais citados, nos constatamos que 21,62% dos jovens apontaram um comercial de cerveja como um de seus preferidos. Dado preocupante, visto que os mesmos ainda não atingiram a maioridade.
Outro dado alarmante foi à resposta dos jovens quando pedimos para que os mesmos citassem um exemplo de pessoa bem sucedida, que na visão deles, é entendida e vinculada ao alto poder aquisitivo.


Tabela 3 - Exemplo de pessoa bem sucedida


NÚMERO %
Silvio Santos 18 48,63
Jogadores de Futebol 8 21,67
Familiares 3 8,10
Não informou 3 8,10
Lula 2 5,40
Dilma Rousseff 1 2,70
Steve Jobs 1 2,70
Lady Gaga 1 2,70
Total 37 100


Os participantes do Programa Ação Jovem justificam essas escolhas com o discurso de que os jogadores de futebol têm muito dinheiro e mulheres bonitas, e o apresentador de TV era um camelô e agora é um multimilionário.
Em suas respostas os jovens demonstraram seus valores arraigados em uma cultura que valoriza a independência e o acúmulo de capital.


2.2 O Serviço Social no contexto capitalista e a intervenção do Assistente Social


Conforme visto anteriormente o processo de urbanização e industrialização originou o crescimento da pobreza entre a classe trabalhadora e, conseqüentemente, diante de tanta exploração implicou na luta por melhores condições de vida e trabalho.
Na sociedade capitalista brasileira nos anos 30 do século XX, devido ao modelo repressivo vigente na época, às vésperas da revolução de 1932, o Serviço Social surge para mediar as contradições do capital x trabalho. Desta forma podemos vincular o agravamento das expressões da questão social com o surgimento das classes trabalhadoras, conforme Iamamoto (1998, p.27)

O conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade.


No início da profissão a orientação para o exercício profissional era o referencial do Serviço Social europeu, com fundamentos no movimento positivista, que tem Auguste Comte como um de seus principais representantes. A partir de 1940, o Brasil, seguindo a linha imperialista dos Estados Unidos, passa a seguir os referenciais teórico-metodológicos do serviço social americano, tais como os estudos de caso, grupo e comunidade.
Após essas experiências, com o Movimento de Reconceituação iniciado na década de 70, ocorre uma ruptura com a visão de mundo positivista/conservadora, a qual culminou com a mudança de paradigma, objetivando a construção de uma visão crítica, que levasse a profissão a ter um embasamento ideológico distinto daquele que até então se praticava, redimensionando a práxis do serviço social.
Dentro deste contexto, a dialética marxista passa a substituir o então modelo americano pela articulação da teoria, história e metodologia de Karl Marx, entendendo a realidade dinâmica e contextualizando toda contradição capital-trabalho presente na sociedade capitalista. Buscando novas bases para legitimar o agir profissional. De acordo com a nova visão da profissão, o Código de Ética profissional dos Assistentes Sociais, em seus princípios fundamentais, dispõe sobre a opção da categoria pelo proletariado e prevê a ampliação e consolidação da cidadania, assim como a opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, onde não haja exclusão, por gênero, classe, credo ou etnia. Segundo Iamamoto (1998, p.78)


Os princípios constantes no Código de Ética são focos que vão iluminando os caminhos a serem trilhados, a partir de alguns compromissos fundamentais acordados e assumidos coletivamente pela categoria. Então ele não pode ser um documento "que se guarda na gaveta": é necessário dar-lhe vida por meio dos sujeitos que, internalizando o seu conteúdo, expressam-no por ações que vão tecendo o novo projeto profissional no espaço ocupacional cotidiano.


Sob este prisma, buscamos enquanto profissionais, além de honrar o projeto ético político da profissão, construir novos caminhos na intervenção do assistente social e destacar uma questão pouco discutida até então.


2.3 Análise comparativa


Visto que o Estado em seu modelo neoliberal se retira das obrigações com os cidadãos, geralmente os profissionais de Serviço Social dispõem de poucos recursos para a realização de intervenções que efetivem seu projeto ético-político e se encontram em desvantagem com os meios de comunicação em massa que impõem seus valores o tempo todo. Precisamos dar ênfase a este tema sempre, elencando todo o processo que construiu essa hegemonia, para, desta forma provocar as mudanças necessárias na visão dos cidadãos com vista à socialização do conhecimento.
Na intervenção sobre o tema consumo utilizamos vídeos e palestras como ferramentas de informação na busca pela conscientização. Promovemos debates sobre consumo e a desigualdade social, temas que para os jovens, assim como para a maioria da sociedade ainda são pouco discutidos, pois nenhum deles possuía conhecimento sobre as causas e conseqüências do consumo desenfreado em nossa sociedade. Debatemos o tema sob diversos prismas, como a questão ambiental, a questão do individualismo e a exclusão social que consumo gera.
Ressaltamos em todos os debates e palestras realizados sobre o tema consumo, que este repasse de verba deve ser destinado a desenvolver as potencialidades dos jovens, bem como, cursos ou materiais escolares, e o uso inconsciente do mesmo só funcionaria como mais um repasse que objetiva aquecer a economia capitalista.
Observamos após alguns dias de trabalho com o tema, uma mudança significativa no modelo mental dos jovens, que compreenderam todo o processo de hegemonia consumista e exploradora e apreenderam para si, noções que permitirão o desenvolvimento de suas potencialidades, desenvolvimento este, essencial para o verdadeiro sucesso. Exemplo desta significativa mudança é a resposta dos jovens sobre como pretendem utilizar o benefício, após a intervenção:


Tabela 4 ? Utilização do benefício após a intervenção


NÚMERO %
Cursos 23 62,16
Necessidades da casa 9 24,32
Gastos Particulares 5 13,52
Total 37 100


Em aplicação de instrumental avaliativo após os debates e palestras, encontramos nos relatos dos jovens, afirmações que demonstram como a intervenção do assistente social é de suma importância para a conscientização dos usuários em programas de transferência de renda:


Através dessas reuniões percebi realmente que consumimos o que não precisamos. Deixamos de suprir necessidades básicas para estar na moda[...] De nada disso precisamos. Devemos ser realistas e não seguir o sistema capitalista[...] Ganhamos esse dinheiro para consumirmos mais, mas através das Assistentes Sociais, podemos investir em nosso potencial.


Relatos de K, 15 anos. E ainda a jovem D, 17 anos escreve-nos que:


As reuniões mudaram meu modo de ver o consumo, mostrou como o consumismo manipula as pessoas para comprar as coisas que eles querem vender e mostrou como devemos impedir que o consumismo domine nossas vidas.

Em comparação ao modelo de pensamento inicial, os jovens demonstraram uma mudança de visão e interesse pelo assunto, que acarretará na multiplicação desse pensamento sobre o consumo e suas conseqüências. Houve portanto, grande impacto social sobre os jovens e por consequência, sobre a comunidade.


3. CONSIDERAÇÕES FINAIS


O sucesso a qualquer preço e a independência sócio-econômica são os objetivos primordiais de um sistema que favorece a individualidade em detrimento do bem comum. A sociedade contemporânea enxerga essa independência e o poder aquisitivo como fatores determinantes no sucesso do individuo, características de uma sociedade que se mostra alienada.
Vivemos em uma sociedade que passa por um período de transição, onde as coisas não funcionam mais como antes, mas também estão longe de um ideal. Faz-se necessária então, a busca pela reflexão deste tema que é a base de todo o sistema capitalista e a busca pela ruptura com os padrões de qualidade de vida que costumávamos ter como referência.
O papel do assistente social enquanto agente transformador na garantia de direitos dos cidadãos requer a intervenção no que tange às relações de consumo para a efetivação do projeto ético-político profissional que prevê a transformação da realidade e a construção de novos paradigmas.
Visto que o princípio organizativo da Assistência Social é baseado num modelo sistêmico que aponta para a ruptura do assistencialismo e afirma a Assistência Social como uma política pública, dever do Estado e direito de todos os cidadãos. É de extrema importância que os profissionais de Serviço Social busquem compreender o processo de hegemonia capitalista que leva ao consumo predatório, para melhor intervir de forma a desconstruir valores que estão enraizados na sociedade.
Devemos, enquanto profissionais comprometidos com uma nova ordem societária sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero, trabalhar no sentido de desenvolver a maturidade da sociedade. Esta maturidade só será construída com uma nova visão que valoriza a interdependência nas relações sociais. Uma sociedade em rede, diferente do modelo linear e mecanicista em que vivemos.
A realização de uma nova ordem societária só se dará efetivamente quando reconstruirmos nossos valores e padrões de vida, trabalhando o conceito de sustentabilidade e pensamento sistêmico, e juntamente com a população usuária da assistência, seguirmos em um rumo diferente deste que estamos presenciando e que é a grande causa da questão social.
Em programas de transferência de renda, a questão do consumo deve ser tratada de modo a conscientizar os usuários a uma visão critica sobre o modo em que este repasse de verba será utilizado, de modo a diminuir o consumo com exigência do prazer, ou seja, quanto mais conscientes do processo em que estão situados e das conseqüências desse consumo exorbitante, a tendência é de se buscar novas alternativas para a obtenção da realização dos mesmos enquanto cidadãos, ou pelo menos a diminuição do sofrimento que esta hegemonia causa nas camadas menos favorecidas da sociedade.
Desenvolver potencialidades e incitar nos cidadãos a visão crítica sobre seus atos e conseqüências, são atribuições que o Assistente Social deve sempre ter como primordiais. Precisamos ter em mente que só em um modelo de pensamento sistêmico onde os cidadãos valorizem a interdependência, poderemos viver em uma sociedade plena e igualitária, pois sem esta conscientização estaremos apenas agindo como agentes controladores do sistema capitalista.




























REFERÊNCIAS


ALVES, Gilberto Luiz. A escola pública desde meados do século XIX. In: A produção da escola pública comtemporanea. Campo Grande, MS: ed. UFMS; Campinas, SP: Autores associados, 2001, p. 189

DI FIORI, Gecira.A pobreza necessária:Os programas de transferência de renda do Brasil e do Uruguai e as organizações internacionais, 2008 p.10

IAMAMOTO, Marilda Vilela. O Serviço Social na contemporaneidade:trabalho e formação profissional,2 ed.São Paulo :Cortez,1998, p.27,35,78.
GARAUDY, Roger. em Karl Marx, 1967 p. 171, 141.ed. Zahar

GORENDER, Jacob. Marxismo sem utopias. São Paulo: Ática, 1999, p. 125.

LESSA, Sérgio. Contra-revolução,trabalho ,classes sociais.In Temporalis, Brasília ABEPSS,ano 2,n.4,p.75,2001

GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 52

MALDONADO, Renata. Consumo, Comunicação e Cidadania, 2011,p.21.Disponível em: <http://www.uff.br/mestcii/renata2.htm>.Acesso em:23. jan.2011

MARX, Karl. Manuscrits de 1844, p. 59. Editions Sociales.

_______,Karl. O Capital, 1967, p. 171. ed. Melso Soc. Anônima.

NETTO, José Paulo. Capitalismo Monopolista e Serviço Social, 1992, p.19.

_______José Paulo. Ditadura e Serviço Social na contemporaneidade: uma análise do Serviço Social no Brasil pós -64.10°ed. São Paulo :Cortez,200, p.157.

SILVA E SILVA,Maria Ozanira.Os programas de transferência de renda e a pobreza no Brasil:Superação ou regulação?,2006,p.3.Disponível em: <www.repositorio.ufma.br:8080/jspui/handle/1/165>. Acesso em 24 de abr.2011.