CIDADANIA – Faz parte do discurso, não da prática.


“Queremos ser os poetas de nossa própria vida,e, primeiro nas menores coisas.”
NIETZCHE

Quando a palavra é cidadania, o discurso fica belo e o povo se sente cidadão, principalmente quando comparece, obrigatoriamente, às urnas para votar, depois muito cai no esquecimento, bem como qualquer projeto político, ou a vãs promessas. Isso faz parte do dia a dia do brasileiro.
Mas como nada melhor para conhecer um povo que saber da sua história e suas origens, vamos tentar falar um pouco de cidadania e contar um pouco de nossa história.
O conceito de cidadania tem conotação civil, política e social. É necessário esclarecer para que o contexto de seu exercício fique bem definido.
Cidadania é um exercício de direitos que implica em obrigações. Viver em sociedade garante uma relação obrigacional intrínseca ao próprio convívio.
A cidadania civil garante na lei os direitos básicos do cidadão, direito à vida, liberdade, propriedade, expressão e outros. A cidadania política prevê a participação do povo no governo, garante ao cidadão o uso de suas prerrogativas de votar e ser votado, participação em partidos e outras formas de expressão política. Já a cidadania social garante ao cidadão os seus direitos de vida em sociedade e tudo o que uma sociedade proporciona como o direito à educação, alimentação, segurança e ao trabalho, entre outros.
Para qualquer vivência de cidadania, seja ela civil, política ou social entende-se que existe reciprocidade, as garantias legais compreendem o exercício do cumprimento das leis, a política as obrigações implícitas nas relações do poder que, pelo menos em tese, emana do povo e a cidadania social implica em participação.
Dessa forma, por exemplo, a Escola Cidadã carrega em seu bojo uma carga especial de cidadania social seguida da política e apoiada na cidadania civil. Essa seria a escola ideal, a verdadeira, a educação vivenciada em todos os seus aspectos, não apenas de binômio incompleto: educação-conhecimento.
Os direitos do cidadão no Brasil sempre esbarraram em obstáculos desde o seu descobrimento.
Remetendo-nos ao Brasil Colônia, é possível observar que o fato de nosso país haver sido colônia de Portugal não favoreceu nem um pouco o seu desenvolvimento, imprimindo marcas que começam pela própria educação e formação de uma cultura.
Os colonizadores que para aqui vieram não possuíam a intenção de estender o reino de Portugal, mas sim de extrair as riquezas que aqui encontrassem. A própria colonização nada mais tinha que o objetivo de constituir mão de obra que concretizasse a extração sem nenhuma raiz que lembrasse patriotismo.
Nas palavras de José Murilo de Carvalho (2008,pg.22) observa-se que a educação, que seria um instrumento de conhecimento e garantia dos direitos humanos básicos, já se evidenciava com o descaso pelo ensino primário, este inicialmente estava a cargo dos jesuítas, ficou a cargo do governo, após a expulsão desses em 1759, que o administrou de forma inadequada e casual, pois em 1872, meio século após a independência, apenas 16% dos brasileiros eram alfabetizados. Não era do interesse da administração colonial difundir essa arma cívica. Situação essa que perdurou por décadas, pois o domínio é mais cabal sobre o povo ignorante.
Esse descaso salta aos olhos quando se vê que em contraste com a Espanha, Portugal nunca permitiu a criação de Universidades em sua colônia. Ao final do período colonial havia pelo menos 23 universidades na parte espanhola da América do Sul, quando no Brasil só foram instaladas escolas superiores após a chegada da família imperial em 1808. Nessa época, os filhos da elite dominante se deslocavam à Europa para concluir sua formação. Somente no período de 1772 a 1872, e lá se vão 100 anos..., passaram pela Universidade de Coimbra 1.242 estudantes brasileiros, comparado com os 150.000 que se formavam na América nas universidades da colônia espanhola, sendo três delas no México ( Carvalho, 2008, pg.23).
Os direitos civis beneficiavam a poucos que se reservavam o seu conhecimento, os direitos políticos a muitos menos e dos direitos sociais ainda nem se falava, estando a assistência social a cargo da Igreja e dos particulares, que despontavam aqui e ali, por idealismo ou empreendimento rentável.
A questão dos direitos no Brasil parece nunca ter sido tão atual. Quanto mais se avança em direção ao aprimoramento das instituições democráticas, menos fica evidente o usufruto do tripé dos direitos que lhe dão sustentação. É visível que a educação é absoluta na consolidação dos direitos sociais. A histérica falta de segurança faz-nos lembrar que o direito civil de ir e vir está ameaçado a cada vez que nos aventuramos em sair de casa. Os direitos políticos parecem mais fortemente consolidados, embora tratemos de um país onde a prática endógena do exercício democrático é coisa nova.
No Brasil República, foi mantido o fardo cívico de negação do voto aos analfabetos, o que implicava em ficar as decisões políticas nas mãos de um percentual reduzido da população, esses seriam os mais abastados e letrados. Também eram excluídos do direito de votar as mulheres, os mendigos, os soldados e os membros de ordens religiosas, ou seja, aqueles que sentiam a necessidade na pele ou dela sabiam; os que participavam ou viviam as paixões do cotidiano. Justamente esses não tinham voz nem vez.
Os movimentos das massas não foram excepcionais no Brasil, é possível identificar desde a independência pacífica, em termos, e negociada, (CARVALHO,2008.pg 25) e depois disso alguns movimentos mais em virtude do exagero de tributos, do que de consciência cívica, temos nesse período: Farrapos, Contestado, Canudos e outros movimentos debelados pelas guardas imperiais e forças do governo.
Mesmo após a independência, não podia ser cidadão um povo que tolerava a escravidão, coisa que trazia em si uma grande limitação aos exercícios dos direitos civis. Interessa também lembrar que os próprios escravos alforriados podiam e possuíam escravos.
Do ponto de vista do avanço da cidadania, naquilo que concerne aos direitos sociais, o mais significativo foi o movimento que pôs fim à Primeira República, em 1930. Desde a independência até 1930, a única alteração importante que houve quanto ao avanço da cidadania foi exatamente a abolição da escravidão, em 1888 – ignorada pela Constituição Liberal de 1824.
Apostando na tese de que somente o exercício pleno de um direito pode redundar na aquisição de outros direitos, Murilo de Carvalho argumenta que o que obstaculizou a conquista dos direitos sociais no período pós-libertação dos escravos foi exatamente a extremada limitação dos direitos civis, que perduraria até 1930.
Ainda que o direito (civil) à liberdade, à não-escravidão, estivesse garantido desde 1888, os parcos outros direitos civis e políticos, supostamente garantidos, eram muitíssimo precários, o que teria retardado, efetivamente, a conquista de direitos sociais.
De acordo com o autor, a participação na política nacional, incluindo aí os grandes acontecimentos, se resumia a pequenos grupos sem a presença das massas. Havia no período colonial e mesmo após um sentimento que não se identificava com a nacionalidade, menos com patriotismo e nem cogitava cidadania ou direitos sociais. Isso começa a despontar depois da década de 30. O Brasil era uma República que ainda se reconhecia com modos de Império.
As primeiras conquistas sociais aconteceram após 1930, e foram importantes na área trabalhista, mas mesmo assim não foram exatamente conquistas da classe, mas outorgadas por Getúlio Vargas, que em seguida se torna ditador, e a classe trabalhadora fica à mercê dos favores do governo, e suas lideranças pertencendo às elites abastadas que pouco tinham a ver, verdadeiramente, com as causas dos trabalhadores. Continuava o exercício da cidadania com baixo impacto nas classes trabalhadoras. O povo vivia ou em antagonismo com o governo face ao arbítrio das autoridades, ou numa relação de distância, sendo preterido por longo tempo o exercício da cidadania política.
Por um lado as leis proibiam o voto do analfabeto e por outro o governo não se esforçava por alfabetizar ou educar ninguém, a massa era manobrada pela dependência que a liderança, não oriunda dessa, exercia.
O povo concordava e enaltecia o punho forte do Executivo em detrimento dos outros Poderes. O avanço social trabalhista pouco influenciou as outras conquistas sociais, ou no mínimo as retardou. Se por um lado, a expansão dos direitos trabalhistas (sociais) significou efetivamente um avanço da cidadania na medida em que trazia as massas para a política, em contrapartida, criava uma massa de reféns da União e de seus tentáculos regionais. A “doação dos direitos sociais” ao invés da sua conquista fazia com que os direitos fossem percebidos pela população como um favor, colocando os cidadãos em posição de dependência perante os líderes.
Na opinião de Murilo de Carvalho, quando os Poderes Executivo e Judiciário vivem interligados, o que é mais do que a harmonia preconizada, a convicção democrática fica prejudicada, não há garantia do exercício da liberdade, o que dificulta sensivelmente a conquista dos direitos políticos plenos.
Na segunda metade dos anos 1940, esses foram implantados por um militar do exército, General Eurico Gaspar Dutra, que logo colocaria o Partido Comunista Brasileiro na ilegalidade, mas ainda assim o período democrático entre 1945 e 1964 caracterizou-se pelo oposto ao governo de Getúlio Vargas, houve nessa época uma ampliação dos direitos políticos em detrimento de um avanço lento dos direitos sociais. Nesse período existe um ensaio de construção de cidadania, porém sem a participação do povo que legitima e firma essa conquista. Aquilo que é imposto tende a não se perpetuar, não é a expressão da vontade de um povo organizado.
Em seguida, com o golpe militar de 1964, dá-se o mesmo fenômeno do Estado Novo de Getúlio Vargas, um cerceamento dos direitos civis e políticos e ênfase nos direitos sociais.
Entende Murilo de Carvalho que no momento do golpe as representações estudantis e sindicais não estavam verdadeiramente consolidadas, constituindo verdadeiros “castelos de areia” que facilmente ruíram, mesmo havendo luta e idealismo por uma boa parte das pessoas na época, as instituições não haviam nascido da verdadeira vontade do povo, o que legitimaria a democracia, que não era, como já se disse, sólida. Foram então os direitos civis e políticos novamente sufocados por medidas de repressão, facilitada pela apatia de grande parte da população. Faltou convicção democrática das elites tanto de esquerda como de direita, não contava o Brasil com organizações civis fortes e representativas que pudesse conter a radicalização que se seguiu.
Após 1985, quando da queda do regime militar, os direitos civis estabelecidos antes desse, tais como a liberdade de expressão, de imprensa e de organização, foram recuperados, embora muitos deles ainda sejam inacessíveis à população. Os direitos que dão sustentação à idéia de cidadania, na forma como foram introduzidos ou suprimidos no Brasil ao longo de sua história, prejudicaram sua consolidação. Muito embora a partir de 1988 os direitos políticos tenham atingido patamares nunca vistos anteriormente, não resolveram os problemas de desigualdade e desemprego. Insistem os problemas na área social e um agravamento dos direitos civis no que se refere à segurança individual. Se não bastasse, no momento em que o ciclo dos direitos parece tomar forma no Brasil, as rápidas transformações da economia internacional ameaçam essa condição, pois exigem a redução do tamanho do Estado – promotor dos direitos do cidadão.
A conclusão a que se chega é de que o direito a esse ou àquele direito tais como à liberdade de pensamento e ao voto, não é garantia de direito a outros direitos sejam esses segurança e emprego , o que tem gerado historicamente, no caso do Brasil, uma cidadania inconclusa. Fica evidente que a garantia de direitos civis ou políticos ao longo de nossa história estiveram e ainda estão longe de representar uma cidadania no Brasil.

Por: Julia I. Koster
Advogada e doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais
Consultas: Pobreza Política / Demo, Pedro. 6ª ed. Campinas,SP: Autores Associados,2001.
Cidadania no Brasil: o longo caminho. Carvalho, José Murilo de. 11ª.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.