Por meio deste capítulo, tento responder às seguintes questões: como a Terceira Amazônia enxerga o sagrado[1] e vive a religião? Que mudanças ou eventos históricos deram lugar ao sincretismo religioso observado na região? E como Paulo Jacob, sendo de tradição judaica e monoteística, consegue absorver o modo amazônico de ver e viver o sagrado nesta ficção?

Para tentar responder às duas primeiras questões, valho-me do diálogo com áreas do conhecimento humano como a ciência e a história da religião, a sociologia, a história, a geografia, a antropologia etc, bem como recorro ao método histórico, de domínio da antropologia, para investigar eventos e mudanças ocorridas no passado, com o objetivo de tentar reconstruir a cultura e compreender como esse modo de olhar o sagrado se construiu ao longo do tempo. Consoante ao terceiro objetivo, busco nas origens sociais de Paulo Jacob a compreensão para este ponto, a saber, como ele absorveu e divulgou os aspectos religiosos que marcam a realidade social deste espaço.

Da maneira amazônica de viver a religião e o sagrado

Agora chego ao momento em que analiso o aspecto religioso do romance, instante em que eu também estou inclinado a acreditar que a narrativa sobre a vida de Luis Chato muito tem a revelar sobre a identidade amazônica de ser e de viver a religião e o sagrado. Segue-se, eu afirmo, que um dos pontos desse aspecto que o leitor toma conhecimento tão logo entra em contato com a diegese é que reina nesta Amazônia, ao lado das formas conservadoras de catolicismo, um grande catolicismo popular[2]. Afinal, como mostra a feliz expressão de Eduardo Galvão (1955, p. 3), “o caboclo de Itá [comunidade estudada por ele], como da Amazônia em geral, é católico”.

Como iremos, em breve, observar, através de um excerto de Chuva branca, mesmo nas mais longínquas comunidades ribeirinhas, como é o caso daquela aqui retratada, é possível dizer que o catolicismo se faz presente, amalgamado, é claro, a outras crenças, práticas e tradições. Tal é o que podemos conferir, nas palavras abaixo, em monólogo de Luis Chato, pois, de acordo com Geertz (2008, p. 66), os símbolos sagrados de um povo “funcionam para sintetizar o ethos[3], e bem assim a “sua visão de mundo”. Aqui, por exemplo, o catolicismo é visto por meio de duas de suas tradições, isto é, os dias santos e o purgatório[4]:

Depois domingo, data santificada, tinha mau sobrosso caçar neste dia [...]. Deveras quem finda, assim, purga duma vez todos os pecados. Mesmo dessa forma, isto só digo que é conversa, ter de passar por um tal de purgatório. Já se viu isso, não basta o padecer daqui dessa miserável de terra. Acho que aquele foi direitinho lá para o céu, menino (JACOB, 1968, pp. 12, 237).

A “data santificada”, mostrada neste trecho, refere-se ao domingo, como podemos observar, e vem à tona no momento em que Luis Chato já tem saído de casa para caçar. Ele passa a se recordar do motivo pelo qual um de seus compadres, o Juvenal, não o acompanhou na caçada: era “domingo, data santificada” e “tinha mau sobresso caçar neste dia”. Fazer assim, caçar em dia de domingo, havido pelos cristãos como o dia do Senhor, poderia lhe trazer má sorte ou castigo. Em razão desse fato, ao lado da doutrina do purgatório, que é vista aqui, assim como de outros pontos relacionados ao aspecto religioso no romance, considero aceitável afirmar, com Eduardo Galvão (1955, p. 3), que o “o caboclo [...], em geral, é católico”.

Tanto quanto posso perceber, faz coro com este antropólogo brasileiro o amazonólogo Samuel Benchimol, havido por alguns como um dos mais originais pensadores da região. Por aqui, disse ele, “o ateísmo é quase tabu”, e registraou que, até por volta da década de 1970, cerca de “noventa e cinco por cento do povo é católico” (BENCHIMOL, 1977, p. 91). Charles Wagley foi mais abrangente, e assim falou de uma comunidade ribeirinha da Amazônia: “o povo de Itá é católico, como a maioria dos latinos” (WAGLEY, 1988, p. 162). Em verdade, cum grano salis[5], como afirmou Carl Jung (1982, p. 8), “o Ocidente e cristão em todos os sentidos, apesar de tudo”.

Ora, é bem verdade que na Amazônia assim o é por causa da fé que foi trazida e determinada durante a colonização. O cristianismo, a religião do europeu colonizador, acompanhou as caravelas portuguesas e espamholas

adotando o cristianismo como a religião oficial do Império, no Brasil, e bem assim na Amazônia, a fé cristã foi uma imposição. Sobre esse assunto irei abordar com mais vagar no momento em estiver tecendo comentários sobre esse sincretismo religioso que hoje se vê na Amazônia

Como lembra Montesquieu (1996, p.469) “quando uma religião nasce [...] num Estado, ela acompanha normalmente o plano de governo onde foi estabelecida (ver Bçackhan, pois a igreja Anglicana nasce e acompanha, ou nasce junta com a separação da Inglaterra da Igreja romana), pois os homens que a recebem e aqueles que fazem com que seja recebida não têm outras ideias sobre a ordem além daquelas do Estado no qual nasceram”. E essa relação entre Estado e religião aparece de forma ainda mais íntima em Hegel (1997, p. 233) o qual disse ser o Estado “a vontade divina como espírito presente ou atual que se desenvolve na formação e organização de um mundo”.

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r que Galvão (1955, pp. 3, 4), quanto à vida religiosa, reconheceu um elemento “local” e “peculiar à Amazônia” que desempenha uma importante função “na estrutura dessa sociedade”, imprimindo-lhe “um caráter regional”. Edgar Morin, metod 6, p. 19

O caboclo é católico ( Wagley 60, 194-95, 197-206, jung 8

Imposição da fe (Benchimol cisne 79, 80), daniel 299

Imposta (Djalma, 2006, p.160), Daniel p. 28, 31, 82, 295, 66, 287-288, 299, Renan: 229, Araujo: 66

Pajelança é católico não conflito: Wagley 230, 232, 233

Com a simbolização surge a eligio Durand 48, 72, 76

Catolicismo popular: Wagley 220-228

Estado e religião (Wagley,53, 54

 

Imposta: Freyre, casa grande e senzala

p.240

Acresce que. fugindo não só à sedentariedade da segregação como

às violências civilizadoras. praticadas nas próprias aldeias de missionários.'*

7 muitos dos indígenas cristianizados deram para ganhar o

mato. "sem se lembrarem", diz Arouche, "das mulheres e filhos que

deixaram l...].""* Situação que mais se aguçou quando, desmontada a

possante máquina de civilização dos jesuítas, os índios se encontraram,

por um lado presos, pela moral que lhes fora imposta, à obrigação

de sustentar mulher e filhos, por outro lado em condições econômicas

de não se poderem manter nem a si próprios. Ao contrário:

pretendeu-se sistematizar de tal modo a exploração do trabalhador

indígena em benefício dos brancos e da Igreja, que de um salário de

100 réis por dia apenas recebia o índio aldeado para se sustentar a si,

mulher e filhos a miserável quantia de 33 réis.1"1' Ocorreu então a

dissolução de muita família cristã de caboclo pela falta de base ou

apoio econômico: aumentando dentro de tais circunstâncias a mortalidade

infantil (dada a miséria a que ficaram reduzidos numerosos

lares cristãos, artificialmente organizados) e diminuindo a natalidade,

não só pela "falta de propagação", como pelos abortos praticados, na

ausência de maridos e pais. por mulheres já eivadas de escrúpulos

cristãos de adultério e de virgindade.1"' Por onde se vê que o sistema

jesuítico de catequese e civilização impondo uma nova moral de família

aos indígenas sem antes lançar uma permanente base econômica,

fez trabalho artificial, incapaz de sobreviver ao ambiente de estufa das

missões; e concorreu poderosamente para a degradação da raça que

pretendeu salvar. Para o despovoamento do Brasil de sua gente

autóctone.

158

Imposta também pelos espanhóis

Dos valores morais e materiais acumulados pelos incas ou pelos

astecas e maias resultaria uma indepressâo de bronze ao contato europeu;

o que levou os espanhóis a despedaçarem esse bronze nativo

que tão duramente lhes resistiu ao domínio para entre os estilhaços

estabelecerem mais a cômodo o seu sistema colonial de exploração e

de cristianização.

Casa grande

Enquanto nas casas de família criavam-se "mistiçamente" portugueses

e índios, predominando nessas relações domésticas a língua dos escravos

ou semi-escravos, nas escolas missionárias a língua dos indígenas

era ensinada e cultivada ao lado da dos brancos e da latina, da Igreja; e

nos púlpitos os pregadores e evangelistas serviam-se do tupi. "Falavam

os padres a língua dos aborígines", informa Teodoro Sampaio, "escreviam-

lhe a gramática e o vocabulário, e ensinavam e pregavam nesse

idioma. Nos seminários para meninos e meninas, curumins e cunhatains,

filhos dos índios, mestiços, ou brancos, ensinavam, de ordinário, o português

e o tupi, preparando deste modo os primeiros catecúmenos, os

mais idôneos, para levar a conversão ao lar paterno".171

Mas o importante, todavia, é destacar, aqui, uma das razões dessa quantidade esmagadora da população se considerar católica: a fé católica foi imposta pelos colonizadores (BATISTA, 2007, p. 55). As ordens religiosas que atuaram na região, franciscanos, carmelitas, jesuítas e mercedários, foram uma “determinação da Coroa portuguesa” (SANTOS, 2010, p. 80). Durkheim pag 4: 4 o catolicismo foi imporsto porque ele é um dogma religioso, um fato social, coercitivo, logo imposto. Não elaborado pelo individuo

Sendo uma fé imposta, praticantes de outros cultos que, a princípio, seriam incompatíveis com o catolicismo herdado dos colonizadores, também seriam católicos. Eles, na verdade, assim se consideram, tal como revelou Maués, ao realizar pesquisa sobre o “catolicismo e o xamanismo”, por exemplo. Segundo o antropólogo, “para os pajés e para os praticantes da pajelança cabocla, de um modo geral, a mesma não é incompatível com o catolicismo. Os pajés e os adeptos desse culto consideram-se católicos” (MAUÉS, 2002, p. 53). Em outra pesquisa o mesmo antropólogo acabou “percebendo que não estavam erradas as pessoas ao se declararem católicos, sem mencionar suas práticas xamânicas, já que estas, na verdade, estão incorporadas às crenças e práticas do catolicismo popular que praticam” (MAUÉS, 2005). Veríssimo (1970, p. 54), (ver o que Marcio Souza fala dele:

Se a Amazônia contasse apenas com a obra de José Veríssimo, já seria suficiente para desmontar o mito perverso de que a região não produziu um pensamento crítico, como os nordestinos, por exemplo. A perpetuação de tal mito só revela a ignorância crassa em relação a Amazônia) por sua vez, emite uma crítica a esse catolicismo ao dizer que “apesar de a grande maioria dos amazônidas se declararem católicos, católicos o são apenas no nome e por se haverem batizado”.

Utilizo-me do excerto abaixo, o qual dialoga com o que foi dito acima por Veríssimo, para realizar uma discussão sobre a religiosidade do homem amazônico e a forma como ele encara o sagrado. De acordo com o que disse Araújo (2003, p. 463), na Amazônia “a religião se desenvolveu ao modo da largueza do meio geográfico”. É esta “largueza” religiosa que passará a ser analisada a seguir.

O quarto aquela alegria, um gasto danado. Tem gente desabusada que até reclama. Diz ai ao parente do morto que está faltando cachaça [grifos meus]. A que tinha acabou. O defunto, muito bem deitadão, não quer saber do prejuízo que deu. No baralho, dominó, ai velação inteira. Arengam, gargalhada não falta. Uma pouca vergonha até no terreiro, com as cunhatãs. Naquela animação de sereno de festa. Correu noticia de morte, começa a avacalhação. Tem velação na casa desse ou daquele, parece que vai ser animada. Aquela zinha furada de pouco, do causo que acabou na policia, me disse que vai sozinha. Xiri solto, sem pai por perto. Solta o que é dela, mulher beneficiada não tem perigo (JACOB, 1968, p. 31).

Neste particular, após observar pelo excerto acima a forma com que os membros pertencentes à comunidade de Luis Chato se comportam em um velório, é bom destacar o que disse Sérgio Buarque de Holanda sobre os brasileiros e os ritos: “nós nos comportamos de modo perfeitamente contrário à atitude já assinalada entre japoneses, onde o ritualismo invade o terreno da conduta social para dar-lhe mais rigor. No Brasil é precisamente o rigorismo do rito que se afrouxa e se humaniza” (HOLANDA, 1995, p. 149). Dito de outra maneira, ao contrário do povo oriental em questão, o brasileiro, em geral, não é dado a seguir ritos ou cerimônias. Tudo, ou quase tudo, para ele, passa por essa frouxidão.

Sincretismo: casa grande e senzala

No caso do Brasil verificou-se primeiro o colapso da moral católica;

a da reduzida minoria colonizadora, intoxicada a princípio pelo

ambiente amoral de contato com a raça indígena. Mas sob a influência

dos padres da S. J. a colonização tomou rumo puritano - ainda

que menos rigidamente seguido nesta parte da América pelos cristãos

portugueses que na outra, na do Norte, pelos verdadeiros puritanos:

os ingleses. Deu, entretanto, para sufocar muito da espontaneidade

nativa-, os cantos indígenas, de um tão agreste sabor, substituíram-nos

os jesuítas por outros, compostos por eles, secos e mecânicos; cantos

devotos, sem falar em amor, apenas em Nossa Senhora e nos santos.

À naturalidade das diferentes línguas regionais superimpuseram uma

só, a "geral". Entre os caboclos ao alcance da sua catequese acabaram

com as danças e os festivais mais impregnados dos instintos, dos

interesses e da energia animal da raça conquistada, só conservando

uma ou outra dança, apenas graciosa, de culumins.

O narrador de Chuva branca recorda, aqui, o episódio de um funeral ocorrido em sua comunidade. E, como é possível perceber, mais do que a consternação que poderiam sentir com relação ao morto ou com a família deste, os participantes do velório estão mais preocupados com a “cachaça” que está faltando. Vê-se que o que eles demonstram é menos um comportamento de profunda seriedade diante do féretro ou de apoio à família órfã do que uma oportunidade para regalarem-se e se entregarem aos prazeres humanos, como a bebida, neste caso. O sagrado, aqui, em seu aspecto de mysterium[i], no sentido de “estranho” e de “não-compreendido” (OTTO, 2007, p. 58), e que se materializa pela presença da morte diante de seus olhos, não chega a exercer neles nenhum poder coercitivo. O que disse Geertz (2008, p. 92), a saber, que “o sagrado contém em si mesmo um sentido de obrigação intrínseca: ele não apenas encoraja a devoção como a exige”, não encontra, aqui, qualquer resposta ou reação. Ou, ainda, para citar Platão, não há coadunação entre o ser humano e o sagrado que se faz presente, pois como disse este, “estando o filósofo em contato com o que é sagrado e sujeito à ordem, ele mesmo torna-se ordenado e sagrado, dentro do limite permitido pela natureza humana” (PLATÃO, 1997, p. 249). Há o medo, há a sede...

Conexa à bebida, percebe-se a presença de jogos, como o “dominó” e o “baralho”, de “gargalhadas” e até de “pouca vergonha”. Como revela o narrador, a “notícia de morte” que corre pelos terreiros avisando sobre a “velação”, é motivo para que entre em cena a “avacalhação”. O velório é animado com a presença de “cunhantãs” e de “mulher beneficiada” com as quais os veladores esperam ter alguma aventura sexual. Ao invés de suscitar o pesar profundo, afloram-se, no velório, as sexualidades (vero que Freud e Marcuse falaram sobre o eros incontrolado do homem0.

Destaco, especificamente, a forma como se referem ao defunto: “o defunto, muito bem deitadão, não quer saber do prejuízo que deu”. Esse discurso, além de evidenciar uma certa ausência de consideração para com o féretro, traz à luz uma importante tônica da realidade social dessa Amazônia: a miséria. Um velório, momento em que se recepcionam aqueles que vêm ajudar a família órfã a dividir a dor sentida, acaba economicamente pesado para esta.

Ainda nessa linha, não poderia deixar de mencionar, pela sua importância na religiosidade desse homem amazônico, o que poderia ser chamada de mistura entre sagrado e profano, visualizada na maneira como Luis Chato menciona o nome de Deus no mesmo contexto em que chama o que é conhecido como palavrões[ii]. Como no caso em que topa, na mata, com uma cobra surucucu: “Égua! Minha Nossa Senhora, não saltasse ligeiro [...], palmo em cima da focinheira da surucucu” (JACOB, 1968, p. 109). Ou mesmo neste outro, quando dá uma topada:

Puta merda! Deus te salve. Falam que é lembrança de alma, quer missa, salvação, quando se leva topada. Com essa história, o dedão arrombado, a gente tem que chamar é nome [grifos meus], se esquece de Deus te salva. Sei lá se morreu pagão, quem mandou não se batizar. E eu é que vá pagar pelos pecados dos outros. Ainda por cima perder a inambu (JACOB, 1968, p. 33).

O que é observado, nestas palavras do ribeirinho, é a maneira como ele justapõe, ou mesmo combina, o que é dito palavrão, “égua” e “puta merda”, ao nome de “Deus” (tentar não parecer moralista, explicar com o relativismo)e de “Nossa Senhora”, principalmente levando-se em consideração o que reza o segundo mandamento da doutrina católica: “não tomar o seu santo nome em vão”. Aqui não estou interessado em tecer considerações de cunho especificamente doutrinário ou moral que identificam e fazem parte do catecismo católico. Mas apontar, por outro lado, a presença, no mesmo contexto, da atitude religiosa de lembrar ou clamar pela divindade em situações de necessidades e a “paixão” do fiel que CABE INSERIR FEUERBACH OU NIETZSCHE, segundo Maués (2013, p. 124), “é o elemento essencial do catolicismo popular brasileiro”.

À luz da tradição judaico-cristã — pois, cum grano salis, assim de pode considerar a sociedade e a cultura existentes na Amazônia —, é certo dizer que o nome de uma divindade é um de seus aspectos mais sagrados, pois o nome, como lembra Ratzinger (1970, p. 56), atinge “a própria coisa”. Os judeus, por exemplo, tinham o nome de Deus, Yahweh, por tão sagrado para ser pronunciado que o “substituem pela palavra Adonai, ‘meu Senhor’” (LIVINGSTONE et al, 2005, p. 433). Não é à toa que a verdadeira pronuncia, acredita-se, teria sido perdida ao longo do tempo.

Na tradição islâmica, por sua vez, o só mencionar o nome de Deus é motivo de estremecimento, como registra o versículo 2 da 8ª surata do Alcorão: “só são fiéis aqueles cujos corações, quando lhes é mencionado o nome de Deus estremecem” (ALCORÃO, 1995). Em Linguagem e mito, Cassirer (1992, p. 36) ressalta que o nome de um deus está tão estreitamente ligado à sua essência, nas suas palavras, para o “domínio para o qual foi, na sua origem, criado”, que uma alteração que faça esse nome perder “sua conexão com o tesouro vivo da linguagem” também pode causar alteração na consciência de sagrado que ele seria capaz de despertar. Segundo, ainda, Ratzinger, a declaração de Cristo “manifestei o teu nome aos homens do mundo que deste”, que está no evangelho de João, deve ser interpretada como sendo o próprio Cristo: “a ideia do nome entra agora em uma fase nova e decisiva. Aqui ‘nome’ não é mais somente uma palavra, mas uma pessoa: o próprio Cristo” (RATZINGER, 1970, p. 55).

Em sua pesquisa intitulada Nomes secretos e riqueza visível: nominação no noroeste amazônico, Hugh-Jones descobriu existir, entre os Tukano, “etnônimos” de cunho “sagrado” e “semi-sagrados”, demonstrando que a língua pode funcionar como “uma manifestação da essência, do espírito e da potência do grupo” (HUGH-JONES, 2002, p. 4). Todavia, o que parece realmente sobressair, aqui, é o caráter sagrado que pode estar atrelado a um nome.

O que notamos, entretanto, no comportamento do protagonista de Chuva branca é o que, em sua pesquisa intitulada A Mãe e o Filho como peregrinos, Maués (2013, p. 124) denominou de “aspecto lúdico do catolicismo popular brasileiro”. Que não exclui, por certo, a devoção, mas também se recusa a se entregar à ascese. E nesse “aspecto lúdico”, para o qual chama atenção o antropólogo paraense, os xingamentos figuram de maneira importante, como revelam as palavras de Luis Chato: “a gente tem que chamar é nome”. Maués observou comportamento semelhante ao do ribeirinho ao acompanhar, em sua pesquisa, o peregrino Chico em uma romaria:

Além disso, a maneira como Chico carregava a cruz, muitas vezes, não indicava maior devoção. Em momentos de dificuldades, chegava mesmo a xingá-la com palavrões [grifos meus]. Uma “pinga” (cachaça) podia ser bem-vinda, a despeito de nosso trato de evitar bebidas alcoólicas. Nenhuma mulher, que eu saiba, “abriu as pernas” para Chico durante a romaria, mas ele não deixou de dirigir galanteios a algumas, mesmo estando com a cruz nos ombros [...] Atenção para o aspecto lúdico do catolicismo popular brasileiro, que não deixa de lado seu jeitinho, sua malandragem (em oposição ao “caxias”), como nos diz DaMatta (1983), mas também não exclui o sofrimento e a devoção. Essa é uma característica que não se perdeu nesse catolicismo tradicional de fontes ibéricas medievais, que vem desde a Colônia, a despeito das tentativas disciplinadoras dos agentes da “romanização”, os quais , desde o final do XIX, tentaram dar caráter mais europeu a suas práticas no Brasil (MAUÉS, 2013, p. 124).

O mesmo tipo de “comportamento folgazão” (MAUÉS, 2011, 2013) é visto por Maués, ao participar de uma festa de santo no interior do município de Vigia:

‘Viva Santo Antônio!’, ‘Viva o pau do santo!’ (referindo-se ao mastro). O povo que acompanhava o cortejo conversava animadamente, rindo muito das brincadeiras que eram feitas pelos que carregavam o mastro. As únicas pessoas sérias, em todo o percurso, eram o juiz e a juíza da festa. Num dado momento, a música deixou de tocar e o cortejo foi momentaneamente interrompido, porque os músicos pararam para comer fruta de cedro que havia pelo caminho. A música só voltou depois de muitos impropérios dirigidos aos músicos pelos carregadores do mastro (MAUÉS, 2011, p. 5).

Em outras palavras, o comportamento mostrado por Luis Chato, ao misturar sagrado e profano por meio de seus xingamentos, se entrosa exatamente com o que Maués chamou de “aspecto lúdico”, o qual se revela como um dos traços mais típicos do assim chamado catolicismo popular brasileiro.

Passo agora a fazer, por meio dos excertos colocados abaixo, algumas considerações a respeito das promessas perpetradas por Luis Chato aos santos e aos padroeiros dos quais ele se vale na tentativa de encontrar o caminho de volta para casa. Destaco especificamente a superficialidade das promessas de consagração efetuadas por ele comprovadas diante da maneira instantânea com que ele se desfaz delas e termina em xingamentos aos seus mediadores. Por fim, concluo o tópico desenvolvendo uma discussão sobre a temática do sacrifício, tal como o ribeirinho promete aos santos, para cuja discussão eu trago as contribuições realizadas por Mauss e Hubert (2005) sobre o assunto E POSTERIORMENTE DE FEUERBACH.

Saindo, pago promessa a São Francisco, acompanho procissão segurando a Pomba-do-Divino [...]. Acompanhar procissão com um toro de itaúba na cabeça, dos grandes que tenha peso. Sacrifício que dou aos santos, milagre de encontrar o caminho de casa [...].  Que merda, santo coisa nenhuma, só azar, desgraça chamando desgraça, padecimento. Desvalido de tudo, da devoção no padroeiro coisa alguma valer. Dor miserável, num desproposito desse de homem gemer dessa forma [...]. Dessa desgraceira, proteção de santo nenhum, até o padroeiro, milagroso lá das nossas bandas, desesquecido do tão devoto dele. De nunca não faltar aos festejos lá das alegrias dele. Galinha sabe querer para o leilão, botar arrematação maior. Dinheiro pra capela, vela pra alumiação do altar, ajoelhado de fazer é horas no terço, dar o pago dessa forma. Vá pro inferno tamanho dos sacrifícios, só ver ingratidão, santo desconhecido (JACOB, 1968, pp. 89, 175, 250).

Começo destacando a promessa realizada por Luis Chato “a São Francisco”, no intuito de “encontrar o caminho de casa”, fato que traz a lume um importante aspecto do catolicismo popular brasileiro na Amazônia. A sincretização da pajelança com os batuques e bem assim com as superstições formam, ao lado dos santos de devoção, “o sistema de religião da Amazônia” (ARAÚJO, 2003, p. 463). Em Chuva branca, o santo católico que surge nomeado é São Francisco de Assis, considerado o padroeiro das pessoas carentes, dos animais e da ecologia. Aparecem, igualmente, “São Bento [...], bom santo de acertar da primeira” (JACOB, 1968, p. 211), invocado pelo ribeirinho durante os tiros nas caçadas, e também “São Brás” (Op. cit., p. 224), clamado em caso de engasgo por espinha. Note-se que, em relação a São Francisco, as causas que são objeto de proteção por parte do santo se entrosam perfeitamente com uma das tônicas sociais que marcam essa Amazônia — a miséria — e com aquilo pelo qual ela é geralmente conhecida e evocada em outras partes do Brasil e no exterior: a natureza.

Tomando algumas das ideias de Galvão (1955, p. 4), em Santos e visagens, deve-se ressaltar que a “devoção aos santos padroeiros da localidade e a um pequeno número de ‘santos de devoção’” constituem o “catolicismo do caboclo amazônico”. Segundo Holanda, em Raízes do Brasil, essa forma de culto tem antecedentes na península Ibérica e na Europa medieval, se expressando na vontade em que “cada casa quer ter sua capela própria, onde os moradores se ajoelham ante o padroeiro e protetor [...]. Todos, fidalgos e plebeus, querem estar em intimidade com as sagradas criaturas e o próprio Deus é um amigo familiar, doméstico e próximo” (HOLANDA, 1995, p. 149). Parafraseando o pensamento de Holanda, o traço mais específico do espírito brasileiro, o “homem cordial”, espraia-se também, ou até mais ainda, para o domínio religioso.

Organizadas com base no pequeno grupo local, essas devoções encontram sua “expressão de maneira mais enfática no momento da festa” (MAUÉS, 2011, p. 8). Essas festas geralmente se organizam sob a forma de folias, de folguedos, de festejos, de romarias, de procissões, assim como sob outros tipos de rituais. Elas são o momento sublime de congraçamento e de celebração ou, para citar Durkheim (2003), uma espécie de corrobori[iii] do homem amazônico, resultando num “sentimento de pertencimento”, pois “a festa é a própria sociedade que está sendo comemorada e refeita” (MENEZES, 2009, p. 183).

Em Chuva branca, vemos o seu narrador mencionar os “festejos”, o “padroeiro”, o “leilão” das prendas doadas ao santo para o sustento do santuário, assim como o costume de “botar arrematação”, práticas comumente observadas nestas festas populares. Geralmente cada local possui seu santo padroeiro e os festejos são as festas “mais importantes”, realizadas “em honra dos santos locais, padroeiros ou de devoção” (GALVÃO, 1955, pp. 68, 69).

Destaco, a partir do comportamento de Luis Chato em falar mal do santo de devoção que não o socorre, o que chamo, aqui, de caráter superficial de suas promessas outrora feitas. Em um momento, ele está a dizer “saindo, pago promessa a São Francisco” ou “acompanho procissão segurando a Pomba-do-Divino”. No outro, porém, a vociferar “que merda, santo coisa nenhuma, só azar [...]. FEUERBACH E O EGOISMOVá pro inferno tamanho dos sacrifícios, só ver ingratidão, santo desconhecido” (JACOB, 1968, p. 250). Como observam Louro e Souza (2014, p. 144), em trabalho que fizeram sobre Chuva branca, “com a mesma facilidade com que se apega às suas crenças, o homem amazônico também as lança para trás. Se Luis Chato está perdido na floresta e clama por tudo o que lhe vem à memória, mas estes não vêm em seu socorro, ele os insulta sem nenhum tipo de ressentimento”. Esse caráter de superficialidade, ou “religiosidade de superfície” (HOLANDA, 1995, p. 150), como será discutido abaixo, é um dos traços da devoção do caboclo amazônico, cujas raízes podem ser encontradas em uma maneira de ser mais geral: a brasileira.

De acordo com Holanda o nosso culto se caracteriza por ser “sem obrigações e sem rigor, intimista e familiar, a que se poderia chamar, com alguma impropriedade, ‘democrático’. Um culto que dispensava no fiel todo esforço, toda diligência, toda tirania sobre si mesmo, o que corrompeu, pela base, o nosso sentimento religioso” (HOLANDA, 1995, p. 150). Como foi citado acima no texto, as raízes desse sistema religioso podem ser encontradas, cum grano salis, na península Ibérica, mas possuem, igualmente, DNA indígena, tomando-se em consideração que o brasileiro é o resultado da mistura das três raças. Pois, como constatou Eliade (1992, p. 98), mesmo o “homem arreligioso descende do homo religiosus e, queira ou não, é também obra deste, constituiu-se a partir das situações assumidas por seus antepassados”.

Em Informação do Brasil e de suas capitanias, o padre Anchieta (1584 apud BOSI, 1992, p. 67) diz, sobre os indígenas, que “nenhuma criatura adoram por Deus, somente os trovões cuidam que são Deus, mas nem por isso lhes fazem honra alguma”. Semelhantemente, Veríssimo registrou, na obra Estudos amazônicos, que

O índio e o selvagem lembravam-se da divindade unicamente por um sentimento interesseiro, sem que depois, quando já se julgava servido, lhe agradasse qualquer sentimento de culto, respeito ou gratidão [grifos meus]. O mesmo se dá hoje com o tapuio e o mameluco, e aqueles mestiços em quem vieram a influir. O tajapurá, que ao partir para a pesca, levam plantado em um cestinho, amarrado à proa, acreditando seguramente que dele depende a boa pescaria, desde que voltam para a casa, com a canoa vazia ou cheia de peixe, é posto de parte, atirado sem nenhum, não direi respeito, mas cuidado (VERÍSSIMO, 1970, p. 61).

O homem amazônico, elemento resultante dessa matriz cultural (índio, europeu, em especial), manifesta o mesmo traço de religiosidade, conforme pode se verificar, aqui, pelo comportamento demonstrado por Luis Chato.

Ainda na ordem do que foi dito acima, Holanda (1995, p. 149) fala de um costume característico de “nosso velho catolicismo” que se resume em permitir “tratar os santos com uma intimidade quase desrespeitosa e que deve parecer estranho às almas verdadeiramente religiosas”. Na pesquisa em que relata um ritual a Santo Antônio, e do qual também participou, Maués observou o “comportamento folgazão” das pessoas que carregavam o mastro do santo. À medida que ia seguindo o cortejo, os que carregavam o mastro (um símbolo fálico) iam “bebendo cachaça, soltando impropérios e dando vivas ao santo, ao mesmo tempo em que realizam uma espécie de dança que simula, nos movimentos executados com o mastro (“pau” do santo), um ato sexual” (MAUÉS, 2011, p. 7). Nessa linha se encontra, ainda, a forma como a religiosidade brasileira, de modo geral, costuma tratar “nosso Menino Jesus, companheiro de brinquedo das crianças e que faz pensar menos no Jesus dos evangelhos canônicos do que no de certos apócrifos, principalmente as diversas redações do Evangelho da Infância” (HOLANDA, 1995, p. 149).

Uma última reflexão deve ser feita, aqui, antes de encerrar esse ponto e passar a abordar sobre o sacrifício. É sobre o que Bataille (1993) chama de “sentimento do sagrado” e Otto (2007), de “sentimento de criatura”, este último conceito sendo um aspecto do sagrado. O que esse conceito quer dizer é que

o homem, no sentimento do sagrado, experimenta uma espécie de horror impotente. Esse horror é ambíguo. Sem dúvida alguma, o que é sagrado atrai e possui um valor incomparável, mas no mesmo instante isso parece vertiginosamente perigoso para esse mundo claro e profano onde a humanidade situa seu domínio privilegiado (BATAILLE, 1993, pp. 18, 19).

Ou, nas palavras de Otto (2007, p. 41), isso seria “o sentimento da criatura que afunda e desvanece em sua nulidade perante o que está acima de toda criatura”. Em outras palavras, estar diante do sagrado — “numinoso” nas palavras de Otto — provoca, na psique do homem, um reflexo que o leva à autopercepção da sua “própria condição peculiar”, da sua dependência. INSERIR FEUERBACH

A mesma ideia aparece em David Hume, em seus Diálogos sobre a religião natural, embora não sob o conceito apresentado por Otto, como podemos observar:

Os mais religiosos e devotos de todos os filósofos pagãos foram, como você sabe, os antigos platônicos; não obstante, muitos deles, em particular Plotino, declararam expressamente que não se deve atribuir intelecto ou entendimento à Divindade, e que a maneira mais perfeita que temos de adorá-la consiste nãos em atos de veneração, reverência, gratidão ou amor, mas em uma espécie misteriosa de autoaniquilação ou extinção total de toDas as nossas faculdades. São ideias algo exageradas, talvez; mas é forçoso reconhecer que, ao representarmos a Divindade como sendo tão inteligível e compreensível, e tão similar à mente humana, nos tornamos culpados da mais grosseira e tacanha parcialidade e nos arvoramos em modelo de todo o Universo (HUME, 1992, p. 53).

Pra concluir meu pensamento, devo dizer que a forma com que estes conceitos, tanto o de Bataille quanto o de Otto, se relacionam com este trabalho fica clara à luz do que Maués (2011, 2013) chamou de “comportamento folgazão” e “aspecto lúdico do catolicismo popular brasileiro”. Aqui não estou interessado, é claro, em elencar distinções entre catolicismo e protestantismo ou mesmo tecer considerações de cunho moral. Todavia, é certo que as manifestações que marcam o catolicismo popular brasileiro são “esperadas como parte dos festejos do santo, assim como as rezas, as ladainhas, as missas, as procissões, o arraial, a festa dançante, as brigas, os namoros e tudo o mais que compõe uma verdadeira festa de santo” (MAUÉS, 2011, p. 7). “Para o devoto popular”, na verdade, “é difícil ver de forma separada as missas, rezas, ladainhas e procissões, das festas de barracões, dos arraiais e dos festejos que acontecem em torno dos mastros do santo que se festeja” (PANTOJA, 2011, p. 115). Fica claro, portanto, que resta a questão se existiria, nesta religiosidade, espaço para o sentimento de “horror impotente”, de desvanecimento, de pavor e de “nulidade” de que falam esses autores que foram trazidos para o diálogo (?). Ou, ainda, para o “saber filosófico sobre o sentido do mundo e da vida” ou o “poder ético ou mágico sobre si próprio ou sobre os outros” que, segundo Weber (2003, p. 143), marcam algumas das religiões e soteriologias da Ásia, em especial, da China.

Sobre o sacrifício a São Francisco, Luis Chato promete fazê-lo seguindo em “procissão segurando a Pomba-do-Divino”, mas principalmente com um “toro de itaúba na cabeça, dos grandes que tenha peso, sacrifício que dou aos santos” (JACOB, 1968, p. 89). Esse excerto traz a lume a importante contribuição de Mauss e Hubert (2005) a respeito do caráter do sacrifício.

A partir do pensamento de Mauss e Hubert (2005) o sacrifício pode ser entendido como uma espécie de troca ou uma forma de “contrato”. Neste particular, um contrato entre agentes humanos e sobrenaturais. FEUERBACH E OUTROS BLACKHAN E NIETZSCHENessa linha do pensamento de Mauss e Hubert, Galvão (1955, p. 42) também observou que “a relação entre o indivíduo e o santo baseia-se num contrato mútuo, a promessa. Cumprindo aquele sua parte do contrato, o santo fará o mesmo. Promessas ‘são pagas’ adiantadamente para se obrigar o santo a retribuir sob a forma do benefício pedido”.

Em Chuva branca, de um lado temos a parte humana, Luis Chato, e de outro, a sobrenatural, São Francisco. O contrato: o socorro dado ao ribeirinho da busca por encontrar o caminho de casa o levaria a participar de uma procissão por meio do sofrimento. De um lado está a dádiva, de outro, a obrigação. “Sacrificar é doar”, como diz Bataille (1993, p. 24).

É precisamente em direção a esse duplo aspecto do sacrifício que chamam atenção Mauss e Hubert, citados por Rigoni:

Se o sacrificante dá algo de si, ele não se dá: reserva-se prudentemente. Se ele dá, é em parte para receber. O sacrifício se apresenta sob um duplo aspecto. É um ato útil e uma obrigação. O desprendimento mistura-se ao interesse. Eis porque ele foi frequentemente concebido sob forma de um contrato (MAUSS e HUBERT, 2005 apud RIGONI, 2008, p. 91).

À guisa de uma última reflexão sobre esse tópico, compartilho com Maués (2013) o pensamento de que o sacrifício nem sempre implica no sofrimento. Mas, neste caso, o de Luis Chato, o sofrimento está presente. Seguir a procissão, carregar “um toro de itaúba cabeça” ou, como afirma em outro ponto, “carregar um eguaço toro de pau na procissão” (JACOB, 1968, p. 228), tal como promete o ribeirinho, implica em um enorme esforço físico. Ocorre, aqui, a doação do corpo à divindade, geralmente sob à custa de muito sofrimento, como costuma ocorrer nessas peregrinações. É comum se ouvir falar nas “manhas, mazelas e triunfos de um sacerdote particular” (MAUÉS, 2013, p. 123).

Ordens religiosas, Daniel 111-113

Wagley 192-216 (santo, festejo, pomba-do-divino)

Crenças indígenas animismo (Wagley 269, Martius 33

Sincretismo (neri 113, 114, 183, Wagley 57, 60, 61, 63, 95 (curupira é indígena), 208, 214, 220, 226, 230, 231, Daniel 323, 327

Sacrifício e promessa: Wagley 221-224, Daniel 322

Voz melíflua sincretismo (neri 184, Walgey 225, 226

Santos (Wagley 52, Daniel 329, 54

Sagrado: JUNG 2, 5 ver Proudhon

Tem mae: durand 104

Animismo (neri 179, 181, 183, Daniel 321, 322

Totemismo (Djalma 68

Couto de magalhaes p141

Todos nós brasileiros, criados nas fazendas do interior das províncias, sobretudo nas vizinhanças dos pequenos arraiais compostos de populações mestiças de índios, fomos, desde a infância, embalados no meio das tradições da religião dos selvagens.

Couto de magalhaes p142, palavra melíflua, a influencia foi mutua

Tempo houve, na vida de todos nós, em que o Deus dos cristãos foi tão venerado e tão temido quanto os deuses selvagens. Se nossas mães nos adormeciam muitas vezes com cânticos que recordavam a infância da Virgem Maria, ou o nascimento de Cristo, nossas amas-de-leite nos contavam as histórias do Saci Pererê, narravam-nos como um certo menino havia sido desencaminhado nos bosques pelo Curupira; como um velho tal, que caçava nos domingos, sem ouvir missa, fora impelido pelo Anhanga a precipitar-se em um abismo; como uma lavadeira de roupa tinha avistado no fundo dos poços o Unutara, e tantas outras histórias, que não são mais do que os fragmentos da teogonia aborígine, que desde pequenos, nos foi ensinada, e na qual, como disse, tempo houve em que todos nós acreditamos.

p.142

Ainda hoje, não há talvez um só caipira de São Paulo, ou um bruaqueiro de Minas, a quem se possa dizer que é um ente imaginário o Saci Pererê, que ele julgou encontrar por desoras junto a alguma porteira, que lhe saltou na garupa, ou que lhe faz alguma outra tropelia.

As crenças e superstições indígenas passaram todas para o nosso povo, e os deuses dos Tupis vivem ainda em nossos campos vida tão real como a que lhes davam os aborígines, no tempo em que seus pajés (e não piagas) os adoravam: escrever, pois, a teogonia tupi, é quase que escrever até um certo ponto as crenças de nosso povo, aquilo em que cada um de nós acreditou até aos 10 ou 11 anos.

143 couto de magalhaes

Começou com o politeísmo

Examinando esta questão de religião como naturalista, isto é, sem sair nunca do fato observado e natural, o que a história nos apresenta é o politeísmo precedendo o monoteísmo.

Se os índios da Ásia conceberam o seu Brama e os hebreus o seu Jeová, Deus, único em substância, se bem que trino em suas manifestações, os progressos hoje do sânscrito e do estudo das antiguidades do Oriente já tem feito recuar muito para traz a época da civilização humana; de modo que nada hoje autoriza a pensar que o Brama dos Vedas ou o Jeová da Bíblia tivessem sido a primeira concepção que esses povos fizeram de Deus; é muito natural que essas idéias elevadas, e que já revelam tanta força de abstração tenham sido precedidas de idéias toscas e grosseiras, como foram aquelas pelas quais todos os outros povos marcharam, lenta e sucessivamente, até à posse dessas concepções já tão fortes e tão elevadas.

Como quer que seja, a idéia de um Deus todo-poderoso e único não foi possuída pelos nossos selvagens ao tempo do descobrimento da América; e, pois, não era possível que sua língua tivesse uma palavra que a pudesse expressar. Há, entretanto, um princípio superior qualificado com o nome de Tupã, a quem parece que atribuíam maior poder do que aos outros.

Bakhtin, Por uma filosofia do ato (tem mais, vai la)

p.231 LC diz: se tudo tem mãe, por so a mata não ter

Casa grande e senzala

E imposta

Casamento

deiro" o que vinha "pela parte dos pais que são os agentes"; e que as

"mães não são mais que uns sacos [...] em que se criam as crianças";

por isso usavam "das filhas das irmãs sem nenhum pejo ad copulam.")

8 Acrescentando que a estas os padres casavam "agora [meados

do século XVI] com seus tios, irmãos das mães, se as partes são contentes,

pelo poder que teem de dispensar com eles..." O que mostra

ter a moral sexual dos índios afetado logo aos princípios da colonização

à moral católica e às próprias leis da Igreja relativas a impedimentos

de sangue para o matrimônio.

Um olhar sobre o sincretismo religioso na Terceira Amazônia

Um aspecto do sistema religioso da Amazônia que se pode notar com clareza nas palavras do narrador de Chuva branca é o sincretismo de crenças. Perdido na floresta, Luis Chato revela esse aspecto da sua religiosidade ao clamar por todos, deuses, demônios e entidades míticas que pudessem auxiliá-lo: “Nossa Senhora, meu Cristo, meu Curupira, o diabo, o inferno, me carregue pra perto, ilharga do lugar onde moro. Amaldiçoada chuva branca, aquela anta era o tinhoso” (JACOB, 1968, p. 243). Como pontuaram Louro e Souza (2014, p. 143), “o que parece é que ele acredita em tudo e passa a clamar por qualquer um que possa lhe ajudar a mitigar as dores da sua vivência”. Essa prática de o “indivíduo e a comunidade” apelarem para outras crenças, “reunidas àquelas cristãs”, forma, segundo Galvão (1955, p. 43), “o todo da religião” na Amazônia.

Antes de dar prosseguimento à discussão do excerto acima, destacando como Luis Chato apela para todas as forças sobrenaturais, assim como para a mistura entre sagrado e o profano que se faz a partir daí, ou ainda para o processo de formação sincrética do sistema religioso que se desenvolveu na Amazônia, uma explicação é válida sobre o termo sincretismo. O vocábulo, segundo Abbagnano (2007, p. 903), foi empregado em “história das religiões para indicar os fenômenos de sobreposição e fusão de crenças de origens diversas. Neste caso, o termo também é usado com disposição polêmica para designar sínteses mal feitas, não tendo, portanto, significado preciso”. E como é possível constatar, a partir desta definição, é que o termo é geralmente tomado como sinônimo de “sínteses mal feitas”, dando-se especial atenção esta última expressão (“mal feitas”). E é esse sentido que é interessante discutir.

O proprio cristianismo que veio de POrtugual já não veio puro (casa grande e senzala)

176 Procissão que o padre Américo Novais, baseado em Southey,

evoca em cores ainda mais vivas: meninos e adolescentes vestidos de

branco, uns com açafates de flores, outros com vasos de perfume,

outros com turíbulos de incenso, todos louvando Jesus triunfante entre

repiques de sino e roncos de artilharia.177 Eram as futuras festas de

igreja, tão brasileiras, com incenso, folha de canela, flores, cantos

sacros, banda de música, foguete, repique de sino, vivas a Jesus Cristo,

esboçando-se nessas procissões de culumins. Era o cristianismo,

que já nos vinha de Portugal cheio de sobrevivências pagas, aqui se

enriquecendo de notas berrantes e sensuais para seduzir o índio.

Nóbrega chegava a ser de opinião que pela música conseguiria trazer

ao grêmio católico tudo quanto fosse índio nu das florestas da América;

e pelo impulso que deu à música tornou-se - diz Varnhagen -

"quase um segundo Orfeu."

Acontece, porém, que é praticamente impossível falar de religião sem falar de sincretismo. E é também comum observar que muito do que é tomado por uma religião a partir de outras religiões e sistemas passam a funcionar, conquanto com algum grau de conflito no início, de maneira perfeitamente orgânica e integrada naquela que emprestou. De acordo com Eliade (1972, p. 120), por exemplo, pais da igreja cristã “cristianizaram os símbolos, os ritos e os mitos asiânicos e mediterrâneos, relacionando-os a uma ‘história sacra’”, assim como, mais tarde, na Europa Central e Ocidental, “acabaram por ‘cristianizar’ as Figuras divinas e os mitos ‘pagãos’ que resistiam à extirpação”. De forma semelhante, quando na Amazônia o sacerdote cristão, na busca por “atrair o catecúmeno gentio”, transformou “Deus em Tupã e o diabo em Jurupari” (BENCHIMOL, 1999, p. 65), isso não deixou de ser um sincretismo.

Casa grande e senzala

jesuítas,

é verdade que já nos tempos da catequese, tinha "os pés como de

animaes, as unhas compridas, as pernas finas, os olhos afogueados".146

Talvez influência do diabo cristão. O diabo do sistema católico veio

juntar-se ao complexo Jurupari ou mesmo absorvê-lo.

A influencia foi mutua

De música inundou-se a vida dos catecúmenos. Os culumins acordavam

de manhã cedo cantando. Bendizendo os nomes de Jesus e da

Virgem Maria: "dizendo os de hu coro: Bendito & louvado seja o

santíssimo nome de Iesu & respondendo os do outro, & o da bem

aventurada Virgem Maria para sempre, Amen". E todos juntos em

grave latim de igreja: "Gloria Patri & Filio & Spiritui Sancto, Amen".179

Mas esses louvores a Jesus e à Virgem não se limitavam à expressão

portuguesa ou latina: transbordavam no tupi. Ao toque da avemaria

quase toda a gente dizia em voz alta, fazendo o pelo-sinal:

Santa Caruçá rangana recê; para então repetir cada um na sua língua

a oração da tarde. E era em tupi que as pessoas se saudavam: Enecoêma-,

que quer dizer bom-dia.180

A poesia e a música brasileiras surgiram desse conluio de culumins

e padres. Quando mais tarde apareceu a modinha, foi guardando

ainda certa gravidade de latim de igreja, uma doçura piedosa e sentimental

de sacristia a açucarar-lhe o erotismo, um misticismo de colégio

de padre a dissimular-lhe a lascívia já mais africana do que ameríndia.

Verificara-se, porém, desde o primeiro século a contemporização

hábil do estilo religioso ou católico de ladainha com as formas de

canto indígena. "Na poesia lírica brasileira do tempo da colonização",

nota José Antônio de Freitas, "os jesuítas [...] ensaiavam as formas que

mais se assemelhavam aos cantos dos Tupinambás, com voltas e refréns,

para assim atraírem e converterem os indígenas à fé católica." E acrescenta:

"Numa época em que os cantos populares eram proibidos pela

Igreja, numa época em que o sentimento poético das multidões estava

completamente sufocado e atrofiado, o colono, para dar expansão

à saudade que lhe ia na alma, não deixava de repetir aqueles cantares,

que os jesuítas autorizavam".181 Graças ao imperador D. Pedro II,

que obteve, em Roma, cópia das quadras escritas pelos jesuítas para

os meninos dos seus colégios e missões no Brasil, conhece-se hoje a

seguinte, publicada por Taunay:

O Virgem Maria

Tupan ey êté

Aba pe ara pora

Oicó endêyabê.

 Weber (2003, p. 143), da mesma forma, disse que ao olharmos para a Ásia, “observamos aquela justaposição de cultos, doutrinas, seitas e ordens de todo tipo que também era própria da Antiguidade ocidental”. Citam-se, aqui, esses exemplos, mas eles certamente poderiam continuar ad infinitum.

 

A predisposição para acreditar em crendices (casa grande)

Outros traços de vida elementar, primitiva, subsistem na cultura

brasileira. Além do medo, que já mencionamos, de bicho e de monstro,

outros pavores, igualmente elementares, comuns ao brasileiro,

principalmente à criança, indicam estarmos próximos da floresta tropical

como, talvez, nenhum povo moderno civilizado. Aliás o mais

civilizado dos homens guarda dentro de si a predisposição a muitos

desses grandes medos primitivos; em nós brasileiros, eles apenas

atuam com mais força por ainda nos acharmos à sombra do mato virgem.

À sombra também da cultura da floresta tropical - d a América e

da África - que o português incorporou e assimilou à sua como nenhum

colonizador moderno, sujeitando-nos, por isso, a freqüentes

relapsos na mentalidade e nos pavores e instintos primitivos. Hall

escreveu que todo civilizado guarda em si, da ancestralidade selvagem,

a tendência para acreditar em fantasmas, almas do outro mundo,

duendes: "a prepotent bias, which haunsts the very nerves and

pulses of the most cultured to helieve in ghosts".152 O brasileiro é por

excelência o povo da crença no sobrenatural: em tudo o que nos

rodeia sentimos o toque de influências estranhas; de vez em quando

os jornais revelam casos de aparições, mal-assombrados, encantamentos.

Daí o sucesso em nosso meio do alto e do baixo espiritismo."1

Logo, é possível afirmar, cum grano salis, que o sincretismo, em se tratando de religião, é um fenômeno relativamente comum, até esperado, e não deveria, talvez, ser visto de forma tão enfática como “sínteses mal feitas”, como se costuma pensar. Até porque, em certo nível, uma religião OU MESMO O DISCURSO RELIGIOSO pode ser tomada como uma “formação discursiva” e esta “não é um espaço estruturalmente fechado, pois é constitutivamente ‘invadido’ por elementos que vêm de outro lugar” (PÊCHEUX, 1990, p. 314 apud FERNANDES, 2008, p. 41). Cada tempo ou época impõe seu desafio às religiões.

Mas, passando agora a analisar o excerto que foi colocado acima no texto, chamo a atenção para a maneira clara como nele aparecem juntos o cristianismo e a mitologia amazoníndia, os dois sistemas que serviram de base para o sistema religioso que viria a se instalar na Amazônia. De um lado têm-se as figuras cristãs, representadas por “Nossa Senhora” e por “Cristo”. Poderíamos ainda incluir, aqui, “diabo” (gr. diabolos) e “inferno”, como vocábulos, não diria oriundos, mas que se apresentam eminentemente na literatura de cunho cristão. E de outro lado, o “Curupira” (do tupi, kurupira), a entidade mítica da tradição indígena. FEUERBACH DIZ “AQUANO DIFERENTES SÃO OS HOMNES QUAO DIFERENTES SÃO SEUS DEUSES”

Nestes outros excertos vê-se que aparece principalmente o cristianismo, como a religião que foi imposta à região e tornada, portanto, oficial: “Nossa Senhora me dê salvação, me deixe acabar perto dos filhos, em casa, nas aproximações [...]. Se é coisa do outro mundo, rezo pro descanso da alma [...]. Domingo também se como, domingo também se come” (JACOB, 1968, pp. 65, 150, 248).

A tônica dada no romance à religião do colonizador, como pode ser visto nestes trechos, é sintomática, e talvez se justifica pelo fato de ela ter sido a estrutura sobre a qual se formou esse sistema religioso. Invocando o pensamento de Galvão (1955, p. 9), “o sistema religioso que se desenvolveu como parte dessa cultura em formação tece seus elementos básicos no catolicismo ibérico do século XVI, acrescidos de outros, indígenas, principalmente tupis, modificados em sua amalgamação e desenvolvimento particulares”.

Antes da chegado do europeu à Amazônia, trazendo o cristianismo, já reinava na região, e mesmo em nível de Brasil, uma espécie de sincretismo religioso indígena, formado pela “mitologia, politeísmo e animismo embrionário” (ARAÚJO, 2003, p. 158). Com a chegada dele, os dois sistemas religiosos se encontraram: o supernaturalismo ameríndio e o cristianismo. Como pontua Garcia (2010, p. 23), “a espada não foi a única força europeia que conquistou a Amazônia para os portugueses. O crucifixo veio estampado em suas velas; a cruz e a coroa desceram juntas o rio Amazonas”.

Na prática, o sincretismo foi posto em ação com sacerdote cristão, que esperava que o primitivo passasse — de um salto — do politeísmo ao monoteísmo (BATISTA, 2007, p. 55). Sempre por meio de uma boa língua geral, o jesuíta tentou atrair o catecúmeno indígena para a sua religião, transformando sobrenaturais tupis (Tupã e Jurupari) em divindades cristãs (Deus e Diabo), como declara Benchimol (1999, p. 65). Embora, talvez, o europeu pensasse que a catequização estava ocorrendo de forma unilateral, a influência, na verdade estava sendo recíproca, mesmo que ela tenha sido “predominantemente orientada por ideias e por instituições lusas” (GALVÃO, 1955, p. 9). Pois, para catequizar o índio, o jesuíta teve que se utilizar de uma boa língua geral, e para levá-lo a adorar, lançar mão de seus cantos. “A transformação dos cantos do sairé em canto de devoção cristã ilustra o que aconteceu” (NOGUEIRA, 2008, p. 38).

Outra discussão que também pode ser feita, tendo em vista o comportamento de Luis Chato em clamar por “todos os santos” (JACOB, 1968, p. 118), é o da mistura entre o sagrado e o profano. Neste outro excerto, situado à página 114, essa ideia pode ser vista de forma muito clara, no momento em que ele situa lado a lado, na busca por auxílio, “Deus do céu” e o “Curupira” ou “pretinho”: “rezar um Padre-Nosso, que voltar nunca mais. Rezando e chorando, meu Deus do céu! Prometer alguma coisa para o Curupira, com toda fé, a modo o pretinho se alegrar”. Como é possível perceber, aqui são colocados no mesmo patamar de igualdade o Deus judaico-cristão e a entidade mitológica indígena.

Em Santos e visagens, Galvão (1955, p. 39) observou que na forma de catolicismo praticada na zona rural amazônica “elementos sagrados e profanos se misturam”. No entanto, nesse sistema religioso — em especial, no catolicismo popular — o próprio caráter do que seria profano é discutível, uma vez que as crenças não são vistas como excludentes ou “incompatíveis” (MAUÉS, 2002, p. 53). Eliade (1992, p. 34) ressalta que, dentre as religiões, o judaísmo herdou a “concepção paleoriental do Templo como cópia de um arquétipo celeste”, mas que “a experiência profana, ao contrário, mantém a homogeneidade e portanto a relatividade do espaço”. Com relação à Amazônia, o próprio Galvão (1955, p. 7) reconhece que “embora as crenças e instituições religiosas católicas e as de origem ameríndia sirvam a objetivos diferentes, elas se completam como partes integrantes de um mesmo sistema religioso. O caboclo das freguesias não as distingue como forças opostas”.

Paulo Jacob: entre a Torá e o sincretismo religioso na Amazônia

Paulo Jacob, autor do romance Chuva branca, foi descendente de judeus sefarditas transferidos para a Amazônia (BENCHIMOL, 1999, p. 78). Mesmo de tradição monoteísta, como são os judeus, não deixou de registrar e de absorver, em mais de uma dúzia de romances escritos, os aspectos que marcam o sistema religioso na Amazônia.

Seus romances, em especial Chuva branca, estão infiltrados por essa maneira de a Amazônia encarar e viver o sagrado. Suas personagens retratadas, na maior parte das vezes o típico homem amazônico, por quem demonstra especial predileção, figuram infiltradas pela religiosidade que marca o tom da região: a mistura de crenças cristãs com práticas oriundas da tradição ameríndia. Aqui e acolá, para sincretizar ainda mais esse sistema religiosa, insere uma personagem hebreia, tal como faz com Salomão, que aparece nos romances O gaiola tirante rumo do rio da borracha (1987), Um pedaço de lua caía na mata (1990) e também Chuva branca. Em Um pedaço de lua caía na mata, por exemplo, ele apresenta um outro enfoque, o do judeu “que vive na Amazônia e luta diariamente para conciliar sua crença e suas tradições com a realidade do lugar” (SOUZA, 2015, p. 6).

Mas o clímax da tolerância religiosa é alcançada mesmo quando, nesse mosaico religioso que é a Amazônia, ele insere — ao lado do cristão, do judeu e do índio — outro médio-oriental ou, como ele mesmo diz, os “pioneiros fenícios da integração da Amazônia”: o sírio-libanês. Isso ele o faz no romance Vila rica das queimadas (1976). Ele é, pois, o judeu sefardita “que soube amar a Torá, ao mesmo tempo em que soube atingir o zênite da tolerância religiosa” (SOUZA, 2015, p. 13) ao retratar uma Amazônia sincrética e pluralmente religiosa como ele verdadeiramente é.

Considerações finais

Sendo uma das portas de entrada para o conhecimento da Amazônia por meio do romance de ficção, Chuva branca permite-nos olhar para o sistema religioso que nela se formou. Por meio de sua principal personagem, o narrador Luis Chato, e também o representante coletivo dessa cultura, é projetado diante dos olhos do leitor a maneira como o homem daquilo que aqui chamei de Terceira Amazônia encara e vive o sagrado.

Ele geralmente se identifica como católico, a religião oficial, imposta pelo colonizador, mas amalgama nesta mesma fé práticas oriundas do sistema religioso ameríndio que, ao final, pelo menos no catolicismo popular, não se mostram incompatíveis, mas complementares. Chuva branca permite observar que a catequização, ao contrário do que pode ter pensado o europeu, não foi unilateral, pois o primitivo não deu um salto do politeísmo e animismo para o monoteísmo. Ao contrário, ele próprio, o sacerdote cristão, no processo, foi influenciado.

A maneira como esse homem encara e vive a religião se mostra larga como é o espaço em que ele está inserido. Luis Chato mostra-se um homem que clama a todos os santos, deuses ou entidades míticas que, porventura, podem lhe auxiliá-lo, mas que acaba, ao final, não permanecendo fiel nem cumprindo suas promessas a nenhuma delas.

Referências bibliográficas

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Notas



[1] Faço uso, aqui, do conceito de sagrado cunhado por Rudolf Otto (2007, pp. 38, 153), a saber, de que este seria o “numinoso”, aquilo que “eclode do ‘fundo d’alma’, da mais profunda base da psique”. Não seria o “atributo absolutamente moral, perfeitamente bom” somente, tal como o conceito de santidade seria entendido dentro do cristianismo, mas aquilo, “mas aquilo que está vivo em todas as religiões, constituindo seu mais íntimo cerne, sem o qual nem seriam religiões”.

[2] Entende-se por catolicismo popular o “catolicismo praticado pelas pessoas que compõem o povo em geral, leigos ou até clérigos, em contraposição ao catolicismo oficial praticado pela Igreja enquanto instituição hierárquica” (TUVERI, 2013, p. 92). 

[3] É a síntese dos costumes de um povo. Segundo Geertz (2008, p. 92), “é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral e estético [...]. É o quadro que elabora das coisas como elas são na simples realidade, seu conceito da natureza, de si mesmo, da sociedade”. 

[4] De acordo com o Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa (2001), “lugar onde as almas dos que cometeram pecados leves acabam de purgar suas faltas, antes de ir para o paraíso”.

[5] Expressão latina: “com uma pitada de sal”, em outras palavras, com moderação.



[i] Para Otto (2007, p. 59), o mysterium é um aspecto do numinoso (sagrado) que é “inapreensível não só porque minha apercepção do mesmo tem certas limitações incontornáveis, mas porque me deparo com algo ‘totalmente diferente’, cuja natureza e qualidade são incomensuráveis para a minha natureza, razão pela qual estaco diante dele com pasmo estarrecido”. Emprego-o, aqui, relacionado à morte, como sinônimo de um fenômeno não-compreendido para o ser humano.

[ii] A doutrina cristã desencoraja, nas cartas paulinas, o uso de palavrões por parte de seus fiéis, como pode ser visto na Carta aos Efésios: “Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, mas só a que for boa para promover a edificação, para que dê graça aos que a ouvem” (Ef. 4.29). A mesma recomendação pode ser vista, ainda, na Carta aos Colossenses: “Mas, agora, despojai-vos também de tudo: da ira, da cólera, da malícia, da maledicência, das palavras torpes da vossa boca” (Cl. 3.8).

[iii] Nome dado, em etnografia, às assembleias ou cerimônias religiosas observadas nas sociedades australianas. É uma fase da vida dessa população que se contrasta com a fase em que ela “encontra-se dispersa em pequenos grupos que cuidam dos seus afazeres, independente uns dos outros” (DURKHEIM, 2003, p. 63). Durante o corrobori, por sua vez, emana da aproximação dos indivíduos “uma espécie de eletricidade que os conduz rapidamente a um grau extraordinário de exaltação”.