RESUMO:

Não obstante o interesse contemporâneo da sociedade internacional pela Amazônia Brasileira, o aspecto cultural dessa hinterlândia permanece quase desconhecido, muitas vezes negligenciado pelos seus próprios habitantes. Revelar a cultura dos amazônidas brasileiros ─ seus mitos, suas crenças, seu conhecimento natural da floresta, sua linguagem ─ é o que este trabalho tentará fazer tendo como pano de fundo a obra Chuva Branca, de Paulo Jacob, considerado o proto-romancista da Amazônia. Ao realizar um corte cultural na obra, procuramos descobrir sobre nós mesmos, sobre nosso povo, sobre nossa própria identidade. Examinar Chuva Branca sob o ponto de vista cultural foi mergulhar na identidade do homem amazônico, uma realidade caótica, mas dentro da qual ele insiste e sobrevive. E no fim, mais do que ter um retrato cultural desse homem, espera-se que a obra proporcione ao leitor uma visão real do nosso próprio mundo por meio dos singelos olhos do caboclo amazônico.

Palavras-chave: Amazônia Brasileira. Chuva Branca. Cultura. Homem Amazônico.

INTRODUÇÃO

Ser americano não é ser alguém, mas acreditar em alguma coisa, diz o historiador Gordon Wood, sinônimo de excelência acadêmica nos Estados Unidos (PETRY, 2012, p.19). Se quando os americanos pensam em definir a eles mesmos as referências são os seus valores e as suas ideias, em que se pensa quando se pretende definir os habitantes e moradores da Amazônia brasileira, das regiões ribeirinhas, aqueles a quem nos acostumamos a chamar de caboclo amazônico, homem amazônico ou simplesmente amazônida? Qual o retrato cultural das sociedades que vivem nessa imensa planície? Pois, afinal, como diz Souza (2009, p. 161), foi por meio de formas culturais que o imaginário do Ocidente se convenceu da existência de um território chamado Amazônia. Elaborar essa espécie de retrato é o que este trabalho tentará fazer através de um recorte cultural dessa sociedade, baseada na obra de Paulo Jacob, intitulada Chuva Branca.

Chuva Branca é considerado o primeiro grande romance da Amazônia, conseguindo, em 1967, o quarto lugar do Prêmio Walmap, no qual figuravam, entre a comissão julgadora, escritores do quilate de Guimarães Rosa, Antonio Olinto e Jorge Amado. A obra mostra-se valiosa não somente do ponto de vista literário, mas também social e, principalmente, cultural. Olhando de perto, todos nós, habitantes dessa hinterlândia, bem lá no fundo, somos isto, somos o que nela é mostrado. Somos Luis Chato, protagonista do romance.

O interesse contemporâneo da sociedade internacional pela Amazônia brasileira é imenso. O chamado apelo verde nunca esteve tão em voga. Tornar-se defensor da Amazônia e lutar pelo Pulmão do Mundo, gera status. Manaus, a Paris dos Trópicos, tem, ultimamente, estado no centro de todas as discussões que apontam para temas como ecologia e busca por fontes de energias limpas e renováveis (NOGUEIRA, 2008, p.11). Entretanto, não é em virtude desse apelo que se vê a necessidade de se debruçar sobre os estudos amazônicos. Mas, sim, na verdade, porque precisamos compreender a nós mesmo como povo; como brasileiros e, em especial, como amazônidas.

Não é que não existam estudos científicos sobre a região amazônica feita por olhos endógenos. Pelo contrário, muitos foram e são os amazônidas que se destacam no campo da cultura, da sociologia, da antropologia e das ciências naturais como bem registra Moraes (2001, p.48) em sua obra Os Intérpretes da Amazônia. A questão é que durante muitos anos, desde a descoberta do Mar Dulce pelos espanhóis e a conquista dele pelos portugueses, quem sempre enveredou pela compreensão desse campo foram os estrangeiros. Esse olhar exógeno é tão evidente que os grandes vultos daquilo que se pode chamar de cientificidade da Amazônia foram os cientistas, viajantes ou aventureiros que por aqui passaram (SOUZA, 2009, p.19). Figuras como Charles Marie de La Condamine, Carl Friedrich Philip Von Martius, Johann Baptist Von Spix, Alfred Russel Wallace, Henry Walter Bates, William Chandless, Jean Louis Rodolphe Agassiz, Jules Cevaux, Theodor Kock-Grumberg, Ermanno Stradelli entre outros. João Barbosa Rodrigues, Alexandre Rodrigues Ferreira e Euclides da Cunha são os brasileiros que representam a exceção à regra.

O que parece é que nós, brasileiros, de modo geral, demonstramos pouca ou nenhuma preocupação em forjar um arcabouço de conhecimentos sobre nós mesmos, sobre nossas riquezas e patrimônios naturais, sobre nossa cultura, sobre nossa história etc. O nosso autoconhecimento, em termos de cultura, não é, na maioria das vezes, maior do que aquele possuído por uma ádvena em relação ao Brasil. Não é à toa que, como ressalta Weinberg (2011, p.70), nós não somos os pioneiros nos estudos sobre nós mesmos.

O objetivo, pois, é mostrar o retrato cultural da sociedade amazônica, tendo como pano de fundo a obra Chuva Branca. Revelar-se-á o papel do mito na vida e existência do homem amazônico, mito este que vem sempre para impedir a felicidade e realização desse habitante das matas. Desvendar-se-á a concepção cabocla sobre fé e religião cristã, bem como se tentará identificar em que resultou a exposição do protagonista Luis Chato à proposta de renovação espiritual sugerida pela nova crença. Descobrir-se-á se a quarentena passada na selva provocou, em Luis Chato, alguma espécie de purificação espiritual nos moldes da tradição judaico-cristã e fez dele um homem melhor Tentar-se-á explicar, ainda, como e por que o homem amazônico acabou desenvolvendo um espantoso conhecimento sobre a farmacopeia e medicina natural, bem como se analisará aspectos linguísticos presentes na linguagem amazônica.

O corte do trabalho realizado em Chuva Branca e na Amazônia brasileira é cultural, muito embora possam aparecer, ao longo do estudo, tinturas sociais, econômicas, históricas, geográficas etc da região. E para ser ainda mais objetivo e claro, a Amazônia em foco é a brasileira, não incluindo as demais, pois, como lembra Souza (2009, p.21), ecossistemas amazônicos se estendem por alguns países vizinhos da América do Sul. E não obstante os amazônidas do Peru, Equador, Bolívia, Colômbia, Venezuela, Suriname e Guianas possuírem todos eles hábitos culturais semelhantes entre si, é do amazônida brasileiro que se falará.

O PLANO LITERÁRIO DA OBRA: UMA EXEGESE NA DIEGESE

O ambiente, o tipo de narrativa e o enredo

A narrativa de Chuva Branca é uma sucessão de fatos (LOURO, 2007, p.73). Aos olhos do narrador, nesse pedaço de chão, a rotina da vida parece não ter fim: sempre cheia de trabalhos domésticos e da eterna luta pela sobrevivência. Por aqui, a noção de passagem do tempo é quase que unicamente abstraída pelo infindável ciclo das cheias e vazantes, num revezamento sem fim.

O protagonista do romance, Luis Chato, personagem modelada, é apresentada pelo narrador de forma indireta. Ainda no primeiro capítulo, quando ele traz à memória recordações de sua infância, temos um vislumbre do menino que foi e do homem que ele pode ter se tornado.

Luis Chato é também o próprio narrador, classificado como participante. Como lembra Pinto (2009, p. 64), esse tipo de narrador é interior à história e narra sobre aquilo do qual tem conhecimento. Para Louro (2007, p. 74), a narrativa é um monólogo do início ao fim.

Quanto ao tipo de discurso das personagens, Chuva Branca não permanece fiel a nenhum deles. Pelo contrário, mescla-os, tendendo, vez por outra, para o discurso indireto livre, caracterizado por dificultar a compreensão do leitor sobre quem está falando: se o narrador ou se a personagem. Ao longo de todo o enredo, essa dificuldade de distinção permanece devido à tipicidade da linguagem.

A sequência de acontecimentos da diegese é acronológica. Percebem-se quadros de momento escolhidos pelo narrador, e o enredo desenvolve-se entremeando analepses com prolepses. Tal descontinuidade mistura-se à circunstância peculiar vivida por Luis Chato ─ perdido na selva, desorientado, delirando de fome e quase à beira da loucura, dificultando ainda mais a distinção do tipo de discurso.

Em se tratando da conclusão, a obra enquadra-se dentro do enredo “aberto”. O romance termina tenso, quase que bruscamente. Luis Chato parece voltar à mesma pobreza e incessante rotina. Chuva Branca acaba deixando no leitor uma ponta de dúvida sobre o destino de seu protagonista. Esse fato, talvez, seja uma alusão à característica da temporalidade e espacialidade amazônica ressaltada por Pereira (2006, p. 63), para quem “a Amazônia é um lugar onde o espaço-tempo está sempre inacabado, nunca se chegando a um ponto transitório; é um processo que não se conclui, ações que não chegam ao seu fim”.

O RETRATO CULTURAL DA SOCIEDADE AMAZÔNICA BRASILEIRA NA OBRA CHUVA BRANCA

 

Amazônia: os mitos de impedimento e a miséria do homem planiciário

Os mitos permeiam a Amazônia (ARAÚJO, 2003, p.464). Na verdade, mito e realidade por aqui são duas coisas intercambiáveis. A vida do homem amazônico, seja em seus fatos mais corriqueiros, é fortemente influenciada por essas narrativas (GARCIA, 2010, p.18). Parte dessa conjuntura é explicada pelo fato de a Amazônia ter sido o cenário perfeito que os europeus do século XVI encontraram para alimentar e difundir, efusivamente, os seus conceitos de lendas e crendices garimpadas na literatura grega (TOCANTINS, 2000, p.64).

Chuva Branca é um romance repleto de mitos amazônicos: Mapinguari, Curupira, Macacaua, Urumutum, Cipó-Jiboia, Mãe-do-rio, Ticoã (LOURO, 2007, p.76). Parece que Paulo Jacob conseguiu escrever uma obra em que essa mitologia cabocla é mostrada em toda a sua vivacidade. Nela podemos ver como os mitos dirigirem a vida na Grande Planície. Luis Chato e sua família, por exemplo, estão passando por privações, mas a decisão de ir à mata em busca de alimento depende de um mito. Daí a importância dessas narrativas:

“Quase não podemos compreender as cosmovisões e culturas antigas sem prestarmos atenção ao significado de seus mitos. Compreendemos os gregos antigos, por exemplo, através dos mitos de Homero, na forma de dois poemas épicos, a Ilíada e a Odisseia, indubitavelmente os mais famosos da história grega” (PALMER, 2001, p.40)

O corpus mythorum presente na Amazônia é fruto da miscelânea entre o rico imaginário trazido pelo colonizador europeu e o mundo mítico herdado dos povos autóctones. Os ibéricos possuíam um forte lendário. Ao chegar aqui, eles foram vencidos pelas águas e fizeram da sua sereia e do duende de além-mar a Iara e o Curupira, respectivamente. Esse mosaico, de acordo com Tocantins (2000, p. 151), contribuiu para que se desenvolvesse, na Amazônia, “certa tendência espiritual para se tecer histórias, parábolas, lendas e narrativas para tudo o que rodeia o cotidiano”.

A grande maioria dos mitos amazônicos são mitos de impedimento; ou seja, tentam atrapalhar ou evitar que a felicidade do homem aconteça. O homem amazônico encontra-se em luta constante contra o meio que lhe acolhe. Tudo parece desafiá-lo: o clima, as grandes águas, o chão pobre, as doenças endêmicas, as bestas-feras, a distância de tudo, a subnutrição, o latifúndio predominante. Tudo se apresenta como antagonista, o que o faz exprimir constantemente o sentimento de miséria: “A água era vermelha, cor de miséria, assim magino sempre” (JACOB, 1968, p.9).

Ramayana de Chevalier, autor da obra No Circo sem Teto da Amazônia, ao ser citado por Moraes (2011, p. 57) sumaria as enfermidades que trucidavam o caboclo de seu tempo:

As doenças na jungle são um problema sinistro. Vem em legiões. E sitia de uma vez. A helmintíase assalta o intestino e degrada o organismo nas hemólises profundas, a plasmodiose chafurda-se no fígado; isto, além da leishmaniose do purupuru, da úlcera brava e das cirroses alcoólicas freqüentes.

O significado da mãe-do-rio e a fluviodependência na Amazônia

Região servida pela maior rede fluvial do globo (REIS, 1989, p.222), a Amazônia mantém, com o elemento água, uma espécie de relação numinosa. Além de servirem como fonte de alimento e serem as estradas reais, os rios na Amazônia exercem ainda uma espécie de função pedagógica. Se em O Rio Comanda a Vida Tocantins (2000, p. 80) disse que o rio é o condutor do progresso e o sangue da vida, para Pereira (2006, p. 117), o ciclo infindável de cheias e vazantes, que ocorre todos os anos, transcende as questões climáticas e dá aos amazônidas uma lição clara e objetiva de como têm sido os ciclos econômicos gestados para a região. Para ele, assim como o caboclo vive a fartura da vazante e a escassez da enchente, o povo amazônico tem presenciado a oscilação cíclica do processo de desenvolvimento regional ─ ora pujante, ora miserável. Assim tem sido desde o primeiro ciclo, o das Drogas do Sertão.

Entender a cultura amazônica é, literalmente, mergulhar em águas. Águas que venceram as próprias tentativas de colonização. Águas onde estão os seres, os deuses e os mitos alvos da fé e crendice do povo da região. O homem planiciário, assim como o filósofo grego Heráclito, acredita que a água está em tudo. Está presente, inclusive, na busca pelo caminho de volta para casa.

Ao longo da narrativa, em particular quando já se encontra perdido, Luis Chato anseia por encontrar a chamada mãe-do-rio e atinar, assim, com o caminho de volta para casa. Imaginário de difícil compreensão para os ouvidos exógenos, o que vem a ser esse conceito para o homem da Amazônia, em especial, para os ribeirinhos?

Como isso gosta de morar na mãe-do-rio (...) Sair pelas oito, marcha puxada, à tardinha estou pondo os pés na mãe-do-rio, pertinho de casa (...) Nada de tocar direto na mãe-do-rio. Nove ou dez horas, caminhada batida, dá pra chegar (...) Apanhar o atalho da mãe-do-rio, beirar o igarapé pegado de casa (JACOB, 1968. p. 29).

Essa crença geral dos amazônidas de que tudo tem uma mãe ─ o “ci” do selvagem ─ é herança tupi-guarani. “Para tudo dão uma mãe, fazendo isso com a maior ingenuidade e fé profunda. Assim, temos a mãe-do-rio, a mãe-da-mata, a mãe-do-corpo, a mãe d’água etc” (VERÍSSIMO, 1970, p.63).

De acordo com Louro (2007, p. 75), autora de A Significação Social na Amazônia no Romance Chuva Branca de Paulo Jacob, a mãe-do-rio seria o ponto indicativo do caminho seguro de volta para casa. O caboclo acredita que chegar à mãe-do-rio é encontrar esse caminho de volta, esse imenso igarapé onde deságuam todos os possíveis fios d’água.

Para entender esse poder que os rios exercem sobre a vida dos amazônidas, é preciso, mais uma vez, mergulhar em águas. A Amazônia é uma região tipicamente fluvial. São rios, igarapés, furos, parás, paranás, lagos, atalhos, passagens etc (ARAÚJO, 2003, p.382). E é bem verdade que as civilizações mundiais procuraram se estabelecer às margens dos rios para tomarem proveito dos bens que eles poderiam oferecer (ARRUDA; PILETTI, 1997, p.18); mas aqui, ao contrário, ele é que continua a dominar, vitorioso, sobrepondo-se às forças de que o homem se dizia possuidor. A noção de jus soli, de que fala Tocantins (1982, p. 44), parece ser solapada por ele: “Porque ninguém é filho de tal lugar (excetuando-se as cidades) ou vem ou vai para esse lugar. E sim, nasceu no Juruá, viveu no Purus, casou no Acre, cortou seringa no Madeira, mudou-se para o Yaco”.

Religião na Amazônia: sinônimo de sincretismo

Religião, na Amazônia, salvo raras exceções, é sinônimo de sincretismo. O homem dessas paragens mistura fé, religiosidade e mitos (LOURO, 2007, p.74). Inserido em condições existenciais extremas, o que parece é que ele acredita em tudo e passa a clamar por qualquer um que possa lhe ajudar a mitigar as dores da sua vivência. Não importa quem seja: Deus, santos, seres mitológicos ou o diabo:

Santo Deus! Saindo, pago promessa a São Francisco, acompanho procissão segurando a Pomba-do-Divino. Acompanhar procissão com um toro de itaúba na cabeça, dos grandes que tenha peso. Sacrifício que dou aos santos, milagre de encontrar o caminho de casa Rezo um Padre-nosso. Nossa Senhora, meu Cristo, meu Curupira, o diabo, o inferno (...) Pegar-me com todos os santos conhecidos (JACOB, 1968, p.22, 89).

Esse sincretismo religioso existente na Amazônia é oriundo do mosaico formado pelo catolicismo e o animismo embrionário herdado dos indígenas (ARAÚJO, 2003, p.158). As duas religiões se encontraram no Novo Mundo. E apesar de alguns afirmarem que o catolicismo sempre influenciou mais o indígena do que o contrário, a verdade é que essa influência foi mútua. O sacerdote, nunca em português, mas em um bom tupi, procurava atrair o catecúmeno gentio transformando Deus em Tupã e o diabo em Jurupari (BENCHIMOL, 1999, p.65). E foi assim que por meio de sua tolerância sagaz e da incapacidade do selvagem de compreender o conceito elevado do monoteísmo cristão, que se desenvolveu, na Amazônia, esse misto de fetichismo com politeísmo.

A quarentena passada na selva e a proposta de renovação espiritual: Luis Chato tornou-se outro homem?

O protagonista de Chuva Branca é um típico “machão” amazônico: ciumento, alega não ter medo de nada, confia plenamente na sua velha espingarda e na sua habilidade como caçador; sabe como se orientar e sobreviver no meio da selva, etc. Durante o período que passará perdido, todos os mitos de impedimento que o rodeiam servirão de cadinho, o colocarão à prova e tentarão trabalhar o seu caráter. A pergunta a ser feita é: esta experiência irá mudá-lo?

A principal cultura que revela homens sendo transformados após um longo período de prova e tentação é a judaica (BURKE; WORMACK, 1999, p.87). Homens como Moisés, Elias e Jesus passaram por um momento de escuridão, solidão e abandono em suas vidas antes de se tornarem o que viriam a ser. Todos eles, tendo cumprido esse período, retornaram espiritualmente renovados e cheios de fé. Mas e Luis Chato?

O protagonista de Chuva Branca era orgulhoso e gabava-se por conhecer a floresta e seus segredos como ninguém. Não admitia que uma pessoa como ele pudesse se “perder na mata”. Melhor ainda, considerava uma vergonha tamanha perder a direção na selva:

Homem daqui se area, uma vergonha. Depois quem diz conhecer mata a fundo, ensinou engenheiro a buscar rumo. Foi gabação de todo mundo. O doutor não entendia era coisa nenhuma. Cresceram as conversas, disse ao homem, jogue essa joça de bússola fora. A minha cabeça é melhor. Isso não vale nada. A agulha dava num ponto, teimava que era outro, acertava. O doutor perdia, ficava encabulado. Que anel que nada. Gente daqui é que ensina doutor a andar na mata; mata não tem cabelo (JACOB, 1968, p.67).

Mais tarde Luis Chato se prostra ante a realidade de estar perdido. Se foi por causa da chuva branca, ou por causa do “bode” da mulher, ou por causa da anta, ou do canto da ticoã, a verdade é que ele se entrega ao poder das terras gerais. Nesse período da quarentena, Luis Chato se desfará de uma velha companheira, que é a sua espingarda Mariposa. Afamado por ser um bom caçador, daqueles de não errar tiro algum, nosso homem se despoja de um objeto que ajudou a formar a sua identidade:

Tem a espingarda, sim a espingarda muito que melhor deixar, atrapalha. Engancha nos paus, nas galhadas, sem posição de carregar quando se está cansado. Tenho uma pena de me largar dela. Querer levar queria, mas... Te fica por aí, um dia, capaz de vir buscar. A Mariposa do Luis Chato, aquilo que é arma de força, fecha tiro no alvo, pepina de chumbo (JACOB, 1968, p.129).

Como foi mencionado, os exemplos de Moisés, Elias e Jesus, advindos da cultura judaico-cristã, mostram que o período de quarentena, geralmente sinônimo de prova e tentação, serve para quebrantamento e autoconhecimento. É uma espécie de viagem interior onde o homem é forçado a reavaliar as suas posições e sopesar os seus valores. Esse tipo de arquétipo pode ser visto também na grande literatura, como no famoso mito de Odisseu, um dos mais influentes do mundo grego antigo.

Escrita pelo grande Homero, a Odisseia conta a história do último herói grego a voltar para casa depois da derrota de Troia. Em cada virada da história, Odisseu encontra estranhas criaturas míticas: Ciclope, ninfas do mar, lotófagos, sereias. A cada momento, seu caminho ou é facilitado ou dificultado por algum deus. Quando finalmente chega à sua casa-ilha, ele tem de derrotar um exército que quer se apossar de sua propriedade e tomar sua mulher como esposa. Mas o que isso tem a ensinar ao leitor?

Se os mitos têm a ver com os impulsos mais profundos da psique humana, o significado comunal predominante na história de Odisseu é que ele era um guerreiro ousado, impetuoso, astuto e cheio de malícia, mas não podia voltar para casa sob esse modelo. Essa volta para casa, também vista em Chuva Branca é, segundo Palmer (2001, p. 41), uma figura para a viagem interior e o autoconhecimento. Para empreender esse retorno e chegar a um acordo com os seus próprios sentimentos, Odisseu teria que aprender novas referências de vida, como a paciência, a temperança e a humildade.

E Luis Chato? A mata o colocou no chão. Mesmo assim, após ser encontrado por compadre Juvenal, e já em casa, ele passa a desejar a velha e boa Mariposa e gaba-se, enganosamente, de ter vencido os mitos de impedimento. Quanto aos santos e padroeiros, Luis Chato julga não ter sido ajudado por nenhum deles a encontrar o caminho de volta para casa. Considera que todos os sacrifícios, rezas e ofertas feitas para a divindade foram em vão e pragueja-os:

Que merda, santo coisa nenhuma, só azar, desgraça, padecimento (...) desvalido de tudo, da devoção no padroeiro coisa alguma vale; esmigalhado mesmo, filho duma égua. Esperança no padroeiro, promessas, nem sei quantas besteiras, quem nem não era de rezar, resultado algum (...) Não era muito de reza, nem não adianta (...) Na devoção de São Francisco, o pago é esse; santo desagradecido (...) Que reza, que santo, que nada, estou farto de pedir, auxílio não (JACOB, 1968, p.175, 177).

Luis Chato volta a ser o mesmo; não foi purificado.

Farmacopeia amazônica: o assombroso conhecimento do nosso homem sobre as ervas naturais

Foi bater o corpo sentiu, faltava vontade de andar como antes. Com leite de sorva, Amapá, então a melhora ficou vista. A cera do canauaru é santo remédio para dor de cabeça. Procura de puxuri, olho de cumaru terra vasqueira... Remédio de muito valia, chá de goiaba, araçá, graviola (JACOB, 1968, p.118).

De acordo com a história da civilização americana, a sobrevivência dos Pais Fundadores naquele continente teria sido inviável se eles não tivessem sido ajudados pelos índios nativos (FALK, 1993, p.24). Não fosse essa prova de generosidade, os pilgrims não teriam resistido ao inverno rigoroso, tampouco teriam conseguido alimento para saciar a sua fome após a chegada ao novo mundo. Prova do assombroso conhecimento indígena sobre o seu meio natural, bem como do convívio harmonioso com ele, esse fato possui laços estreitos com a cultura do homem amazônico e com o processo civilizatório que aconteceu por aqui.

À semelhança do que ocorreu com os colonizadores na América do Norte e os índios americanos, os índios da Amazônia brasileira foram igualmente imprescindíveis para a colonização e para a sobrevivência do europeu na região (SOMBRA, 1996, p.33). Não obstante o inegável espírito de conquista português, a Amazônia era insólita demais. Tudo era diferente, e definitivamente ele não estava preparado para tirar proveito da nova terra. E é ai que entra a heurística indígena na ocupação e desenvolvimento da Amazônia.

Ao repassarem aos novos imigrantes as singularidades da terra, os índios repassaram também os segredos da farmacopeia amazônica. Na verdade, “todo o conhecer, o saber, o viver e o fazer na Amazonia Equatorial e Tropical foi, inicialmente, um processo predominantemente indígena” (BENCHIMOL, 1999, p.161).

Para os povos da Amazônia as grandes florestas são uma enorme drogaria, de onde eles podem retirar remédios para quase toda a sorte de males físicos. Famosas desde o primeiro ciclo econômico da Amazônia, quando adquiriram foro científico na Europa e foram decisivas para a valorização da flora amazônica, as plantas e ervas medicinais são, ainda hoje, o socorro imediato para o homem regional (TOCANTINS, 1982, p.44). Em Chuva Branca, como se pode ver, Luis Chato busca a cura para as suas dores físicas nessa imensa drogaria a céu aberto. Chuva Branca é, por assim dizer, um passeio pela medicina natural da Amazônia.

Luis Chato apresenta uma gama de remédios naturais, conforme caminha perdido na floresta. Proporciona ao leitor o encontro com a copaibeira, com a folha de inajá, com a folha de pariri, com a paracuúba, com a folha de patauá, com a unha-de-gato, com o cipó-de-fogo, com o leite de ucuúba, com o leite do mururé, com a raiz da abiorana, com a castanha-de-macaco, com o olho de buchuchu, com as folhas de ubim e o cumaru. Personagem que ensina a fazer o chá de preciosa, da mirantá e do cipó-de-cravo. Diz ainda que o chá da vassourinha é ótimo para curar cobrelo, quebranto e ventre caído, enquanto que para a febre não há remédio como a raiz da saracuramirá: “Arranquei algumas folhas mastiguei os naquinhos cortados na faca foi o sumo bater dentro o febrão passar a febrinha caminhou desaparecendo logo a dor de cabeça. A raiz amargosa de travar a língua, mas para cortar febre nem não tem igual” (JACOB, 1968, p.118).

Todas essas famílias vegetais tiveram uma inegável notoriedade na colônia e na Europa, para onde atravessaram com a fama de milagrosas. Hoje está cientificamente comprovado que as florestas tropicais são, biologicamente, os mais ricos ecossistemas do planeta e as principais depositárias de plantas medicamentosas, acreditando-se que existam nelas princípios ativos que ainda hão de mudar o mundo da indústria farmacêutica.

Simplicidade, novo significado e DNA indígena: aspectos linguísticos da linguagem cabocla

Louis Agassiz, em sua viagem pela Amazônia, percebeu a inversão de um processo mundial. Nestas paragens, o povo conquistador e civilizado sofreu, em não pequena escala, a influência da raça conquistada. Essa influência, quando se tem o aspecto linguístico abordado, é vista com ainda mais força e profundidade. É justamente este fenômeno que faz a originalidade da linguagem amazônica.

Chuva Branca é uma tentativa de resgate do falar amazônico (LOURO, 2007, p.75). A fidelidade literária de Paulo Jacob às suas raízes faz com que esta linguagem apareça ao longo de todo o romance. Ela contribuiu para dotar a literatura amazônica de uma expressão original e legítima.

O português, para se tornar uma língua euro-afro-americana passou por dois processos: a tupinização e a africanização (LUCCHESI, 2006, p.91). Não obstante pertencer ao colonizador europeu, aqui recebeu a influência do índio e do negro. Na Amazônia esse processo de africanização da língua foi quase inexpressivo, bem contrário à tupinização. Esse fato faz com que não se exclua de todo a influência do negro na toponímia da região, mas se permita dizer que a influência real para a transformação do português falado na Amazônia veio mesmo do elemento indígena.

Mesmo havendo, no início, empreendido todo esforço possível para falar a língua do nativo, os sacerdotes da Companhia perderam, depois de algum tempo, seus privilégios e tiveram que falar unicamente o português, quando a Lei do Diretório foi promulgada pelo então primeiro-ministro de Portugal, o Marquês de Pombal. Era a introdução do português como língua oficial do Império. Acontece, porém, que a variante amazônica já estava formada, e a língua portuguesa, conquanto mantivesse a sua matriz, já estava extraordinariamente cheia da toponímia da língua geral (VERÍSSIMO, 1970, p.156). O espírito ameríndio já havia impregnado o idioma do colonizador, fazendo com que as palavras portuguesas não tivessem mais o mesmo significado.

A palavra balseiro, por exemplo, tendo o significado de “dorna grande em que se lançam as uvas para pisar; o que dirige balsa ou jangada” (FERNANDES; LUFT; GUIMARÃES, 1999), quando usada por Luis Chato (JACOB, 1968, p.28) tem o sentido de “aglomeração de terra, capim, paus, folhas, galhos, tronca, árvores na superfície da água e que descem no fim da corrente quando o caudal está de repiquete” (TOCANTINS, 1982, p.18). 

Do mesmo passo, a palavra reinação, quando conferida no dicionário, tem o significado de “pândega, brincadeira, patuscada, travessura”, enquanto que no linguajar amazônico tem o significado imediato de “irar-se, encolerizar-se, ficar brabo”.

Outros aspectos linguísticos predominantes em Chuva Branca podem também ser destacados, como a invenção de palavras à lavra de Guimarães Rosa, como bem ressalta Louro (2007, p.76), e o uso constante de sentenças com dupla negação como em “com onça ninguém não brinca”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Falar da Amazônia é falar de uma região cuja missão para com o mundo vai além dos conceitos de desenvolvimento econômico e das ideias de progresso comuns no mundo ocidental. Na verdade, essa peculiaridade sempre lhe conferiu a faculdade de ser considerada à parte. Foi assim no início quando se reportava diretamente à Coroa, em Lisboa, e é assim ainda hoje quando burocratas e ambientalistas do mundo inteiro discutem sobre como dominar e aproveitar melhor o Inferno Verde.

A região que presenciou o esplendor do espírito de conquista português não foi, de todo, europeizada. Bem ao contrário, observou-se, aqui, a inversão de um princípio quase imutável em todo o mundo: a civilização considerada fraca e inferior conseguiu influenciar, em quase todos os aspectos, o povo forte e colonizador. Da fusão desses dois elementos, o europeu e o indígena, surgiu uma sociedade que sobrevive ainda hoje na forma de seu mais fiel representante ─ o caboclo amazônico.

Chuva Branca, à semelhança da Odisseia, não é a história de Luis Chato simplesmente, mas a história de todos nós. O romance de Paulo Jacob transcende a vida deste simples caboclo, assim como a de sua comunidade, para se tornar o retrato cultural da sociedade amazônica brasileira. Chuva Branca, portanto, fala dos amazônidas em geral.

Na vida e existência do homem amazônico, mito e realidade são dois elementos intercambiáveis. Ele vive e se deixa dirigir por essas narrativas mesmo nas questões mais corriqueiras e triviais da vida. Na Amazônia, esses mitos, por alguma razão, estão sempre associados ao papel de impedir ou atrapalhar a felicidade ou realização do homem, causando-lhe dor e sofrimento, tônicas desta região.

A forma com que o homem amazônico trata o cristianismo não difere, de certa maneira, do modo com que ele trata de tudo o que diz respeito à religião.    Tudo acaba sendo absorvido pelo seu sincretismo religioso. Fé, religiosidade e mitologia não estão necessariamente separadas, mas são as partes de um todo. A quarentena passada na selva e os mitos de impedimento que colocaram Luis Chato no cadinho não foram capazes de “purificá-lo”. Ao final, embora exposto a toda essa proposta de renovação, há o retorno ao seu velho caráter.

O espantoso conhecimento sobre a farmacopeia e a medicina natural desenvolvido pelo caboclo é uma herança cultural indígena. São eles os que conheciam a floresta desde o princípio. Para os povos da Amazônia as grandes florestas são, ainda hoje, uma enorme drogaria a céu aberto de onde podem retirar remédios para a cura de quase todos os seus males físicos imediatos.

A linguagem amazônica, à semelhança do português falado no Brasil, é um dos grandes sinais da influência ameríndia sobre o colonizador europeu. A tupinização da língua portuguesa transformou a fonologia, o léxico e a sintaxe da nossa linguagem, exibindo uma tendência expressa em direção a uma libertação dos cânones gramaticais do português de Portugal. Nossas palavras, conquanto conservando o verdadeiro significado, foram “corrompidas” e adquiriram novos sentidos. Chuva Branca é uma tentativa de resgate dessa linguagem.

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