RESUMO:

O presente trabalho tem como objetivo realizar uma reflexão sobre a miséria humana na Terceira Amazônia, abordando aspectos como a habitação, alimentação, densidade demográfica, clima, solo etc. Baseado no romance Chuva branca, de Paulo Jacob, que o escreveu em tom de denúncia da condição desse homem amazônico, procurar-se-á mostrar como a miséria humana aparece na narrativa, assim como levantar e discutir algumas das possíveis causas que fazem da miséria a tônica social deste espaço.

Palavras-chave: Chuva branca. Miséria humana. Causas da miséria. Terceira Amazônia.

ABSTRACT:

The present work aims to carry out a reflection about the human poverty in the Third Amazon, dealing with aspects as housing, food, population density, climate, soil etc. Based upon Chuva branca, a novel written by Paulo Jacob, who wrote it as a disclosure of the Amazonian man’s condition, this work will show how human poverty appears in the narrative, as well as to survey and to discuss some of the possible causes which become poverty a social characteristic of this space.

Keywords: Chuva branca. Human poverty. Causes of poverty. Third Amazon.

Introdução

“Ninguém nunca pode de calcular da miséria de caboclo” (JACOB, 1968, p. 218), diz, por meio de uma sintaxe marcada pela oralidade, o ribeirinho Luis Chato, o narrador e protagonista de Chuva branca. Esta palavra, aliás, “miséria”, será uma daquelas que atravessarão todo o romance, seja em tom de denúncia ou em tom de lamentação, ajudando a dar sentido à tônica social que marca, e bem assim caracteriza, as condições socioeconômicas da Terceira Amazônia[2].  

É esta Amazônia, que aqui chamo de Terceira, classificação que eu vou buscar em Djalma Batista, que Paulo Jacob escolhe para ser o espaço físico e social da narrativa de Luis Chato, lugar onde vive com a sua família, a esposa Mariana e mais dois filhos. O núcleo familiar é retratado vivendo em condições de flagrante miséria, nas quais Mariana não possui sequer a roupa de baixo, e o filho menor, que Luis Chato chama de “jitinho”, aparece acossado por verminoses e o mais velho, o “assinzinho”, precisa pescar para ajudar com as provisões da casa. Assim, pois, o ribeirinho exprime “constantemente o sentimento de miséria e condições paupérrimas de vida” (LOURO; SOUZA, 2014, p. 141).

Sem entrarmos em maiores considerações a esse respeito já nesta introdução, parece-me altamente provável que as condições apresentadas pelo meio ou pelo espaço figuram, na narrativa, como algumas das causas para essa tônica social. Muito embora, de uma parte, seja necessário dizer, com amazonólogos de primeira ponta, que “não há fatalidades geográficas”, há, todavia, “circunstâncias geográficas a serem analisadas” (ARAÚJO LIMA, 1975, p. 141). Tudo parece desafiar esse homem: o clima, a vida cercada pelas matas, as grandes águas, o chão pobre, as doenças endêmicas, as bestas-feras, a distância de tudo, a subnutrição, o latifúndio predominante.

Em meu ver, torna-se evidente, à medida que a diegese avança, que Luis Chato e sua família vivem, não em um estado de pobreza, mas em um estado de miséria, uma desambiguação que precisa ser feita aqui. Pois a pobreza “confunde-se em geral com miséria, mas há uma distinção[3]. Na miséria há falta até do essencial, enquanto na pobreza há apenas o suficiente para a manutenção da vida humana com um mínimo de dignidade humana” (SANTOS, 1963, p. 1110). No meu entender, a posição de Pierre-Joseph Proudhon (2007, p. 338) segue também a mesma linha de definição, qual seja, a de que a miséria é “o esgotamento das provisões e a falta dos objetos de primeira necessidade”. Considera-se, portanto, o estado de Luis Chato como miséria, uma vez que o motivo pelo qual ele diz “mulher, vou ao mato, quem sabe se dá na sorte de pegar a anta” é porque a família está há “dias sem nada em casa, na farinha com água. A meninada pedindo comer, o pessoal na fraqueza” (JACOB, 1968, p. 9).

Partindo-se dessas considerações, o presente trabalho tem três objetivos, a saber, mostrar como a miséria humana aparece no romance Chuva branca, apresentar a crítica social feita por Luis Chato a este estado de miséria e discutir as possíveis causas que fazem dela a tônica social desta Amazônia.

De como a miséria humana aparece em Chuva branca

Partindo dos fins fixados nos objetivos, pretendo mostrar como a miséria humana aparece no romance Chuva branca por meio dos seguintes aspectos: a habitação, a alimentação e outros, mais relacionados com o meio em si, como o solo, a baixa densidade demográfica, o ciclo de cheia e vazante dos rios, as doenças e a presença de feras ou animais selvagens. Apresento, posteriormente, alguns excertos com os quais o narrador faz uma crítica social de sua condição.

A barraca distiorada, o mato chegando perto. Telhado aberto que só renda, estrelas entrando pela cumeeira [...]. Só miséria, cor de sangue. Não fosse o lago, no tempo de carestia... Despensa de todos por aqui, vizinhança. Do que digo vizinhos, uma barraca aqui outra acolá naquela lonjura, curva de rio, lago, igarapé. Barro amarelo, ruim, ingrato, pobre também. Ingrato é, só dá mais é malícia, mata-pasto [...]. Esta não dá mais, cansou. Terra firme é pobre. Nessa nesga de varge, coisinha melhor. Lavada nas grandes águas, fartura se vê no plantio [...]. É secar, fica o barreiro na beira. Vem o sol tosta tudo, raxa. A terra é frestada e quente, esfumaça no sol. Aquela distância de lavrado, igual terreiro varrido, duro, escaldando (JACOB, 1968, p. 8).

Discuto, a partir desses trechos, sobre as condições de moradia, sobre a baixa densidade demográfica e sobre o solo. No que pese ao aspecto da habitação, como podemos ver, é assim que Luis Chato apresenta a moradia da sua família: “a barraca distiorada, o mato chegando perto” e um “telhado aberto que só renda”, com “estrelas entrando pela cumeeira”. Por telhado, detalhe, entenda-se aqui a “palha branca” (JACOB, 1968, p. 36), extraída de uma das muitas palmeiras da região, como mais adiante ele vai mostrar.

As habitações na Terceira Amazônia, aquela dos sítios, vilas, freguesias, seringais etc, costumam ser marcadas pela rusticidade dos elementos naturais empregados para a sua construção e pela simplicidade na sua decoração. Esses dois aspectos, por exemplo, não passaram despercebidos pelo o olhar feminino de Elizabeth Cary Agassiz, quando visitou, com o esposo, a Amazônia nos anos 1865 e 1866, e observou que as casas eram “cobertas com palha” e que logo se aprendia a trabalhar “quase sem os acessórios que parecem indispensáveis em uma casa” (AGASSIZ; AGASSIZ, 1975, p. 212). O barão de Santana Néri (1979, p. 111), de forma análoga, registrou que nessas habitações “o estrangeiro é surpreendido pela simplicidade dos móveis. São algumas cadeiras de balanço leves, de equilíbrio instável, de movimento contínuo que enganam a necessidade energética do corpo por meio de uma indolência rítmica”. Por fim, o relato de Araújo Lima, neste sentido, é igualmente revelador:

Fui hóspede, há cerca de trinta anos, de um dos maiores proprietários do interior, dono de três grandes seringais e árbitro do comércio de uma dilatada zona do Alto Purus, cuja instalação de moradia e de negócios era precaríssima: casa coberta de palha, paredes e soalho de paxiúba (com tábuas levemente convexas e mal aparelhadas), serviço doméstico humílimo e passadio deficientíssimo (ARAÚJO LIMA, 1975, p. 91).

Evidentemente muito se poderia dizer sobre a origem dessa cultura, mas não seria forçoso reconhecer nela, em especial no material empregado, traços do costume indígena[4], assim como algo ligado ao modo como a região foi povoada e conquistada, especialmente pela atividade extrativista. A narrativa pouco nos diz, por exemplo, a respeito da casa de Luis Chato, além das condições de deterioração em que ela se encontra, mas a sua “barraca” segue, em parte, a técnica ameríndia de edificação. O soalho é feito de “paxiúba” (JACOB, 1968, p. 64), como ele revela a seguir, e a cobertura leva o mesmo material utilizado pelos nativos, ou seja, a palha.

O uso da palha, aliás, como cobertura, foi transmitida pela “cultura vegetal do indígena à civilização do colonizador europeu que os conservou ou desenvolveu, adaptando-os às suas necessidades” (FREYRE, 2003, p. 196). Quanto à simplicidade na ornamentação, ao lado da indisponibilidade de recursos em que se vive nesta Amazônia, é de conhecimento comum, diz Gastão Cruls (1958, p. 280), que “o índio, que tanto gosta do enfeite individual, quase nunca se preocupa com a decoração da sua maloca”.

Mas o modo como a região foi povoada e terminou de ser conquistada, e que está ligada a esta rusticidade, também contribuiu para a forma com a miséria é vista e aparece aqui. Como vai afirmar Djalma Batista (2006, p. 146-147), “o extrativismo trouxe realmente para a Amazônia um único bem, que foi a posse da terra: onde não foi nem poderia ir o soldado, estão o seringueiro, o madeireiro e os outros coletores de essências”. O ciclo da borracha nos deu, como diz Samuel Benchimol (2001, p. 126), “um ganho territorial político de 153.149 km2, correspondente à área do Acre, incorporado ao território nacional”. No demais, porém, não colaborou nesse sentido, pois não criou naquele que se apossava do chão o sentimento de fixação à terra, à casa e à família.

Afinal, para quê cuidar da casa se ele, o extrativista, não vinha para ficar, mas para passar uma temporada, ganhar algum dinheiro e voltar para o sertão? “Repare, por exemplo,” diz Samuel Benchimol (1977, p. 177), “no tapiri que ele constrói. É apenas para passar um fábrico, no máximo. Ele não quer ficar mais de que um ano ali”. Além do quê, ele geralmente vinha sem a mulher, “o elemento fixador por excelência” e que “dá o sentido de estabilização e permanência na terra” (Op. cit., p. 187). A Amazônia, assim se expressa Djalma Batista (2006, p. 147), “para ser possuída, teve de separar o homem, de pulverizar a sociedade”. Retornarei a este argumento posteriormente, quando estiver colocando o predomínio dessa monocultura como uma das causas da miséria na Amazônia.

Destinado a permitir uma discussão sobre como eu vejo a miséria ligada ao deserto demográfico que é a Amazônia, inseri o trecho de Chuva branca, que diz “do que digo vizinhos, uma barraca aqui outra acolá naquela lonjura, curva de rio, lago, igarapé”. Embora, de uma parte, seja um esforço relativamente bem-sucedido em pensar assim, ligando o isolamento à miséria, de outra, não estou sozinho, pois como declara Pierre Gourou (1948), citado por Djalma Batista (2006, p. 116-117), “habitualmente, as civilizações atrasadas acompanham-se de densidades fracas”[5]. De outra parte, a própria baixa densidade demográfica, que parece implicar em distância e isolamento, coopera para a estagnação, uma vez que “na ausência de infraestrutura de transportes e outras facilidades de comunicação, financiamento e outras mudanças, ela serviu para esterilizar o esforço produtivo, pois não adiantava produzir sem que houvesse o escoamento desses bens para o mercado” (BENCHIMOL, 2001, p. 88).

Na Terceira Amazônia, o espaço é realmente preenchido assim, com a população distribuída pelos rios, lagos, furos, paranás e igarapés e separadas por grandes “lonjuras”, como aponta a narrativa. É de justiça salientar, entretanto, que a Amazônia já foi densamente povoada, pois “densa era a população ameríndia da Amazônia ao tempo em que o grande rio começou a ser conhecido” (CRULS, 1958, p. 266). Hoje, porém como causas desse povoamento esparso, dois motivos, pelo menos, podem ser aventados. Primeiro, o espírito nômade do indígena que, praticando uma agricultura itinerante, a técnica do abate-e-queima, estava sempre a mudar de lugar:

Seus métodos de subsistência, embora apropriados ao ambiente amazônico, limitavam o tamanho das suas comunidades, que raramente excediam a trezentas ou quatrocentas pessoas. Cada cinco ou seis anos eram obrigados a mudar suas aldeias apesar da imensa expansão de terrenos florestais inabitados, e todos os anos roçavam novas áreas para a plantação na floresta tropical. Assim, pois, eram-lhes necessárias grandes áreas de terra para sustentar um número relativamente pequeno de pessoas (WAGLEY, 1988, p. 55).

E segundo, o extrativismo, o qual ditou o tipo de fixação e a distribuição espacial da população na Amazônia, e fazia com que cada seringueiro tivesse as suas estradas que, por um motivo bem natural, como explica Charles Wagley, ficavam distantes umas das outras:

O conhecimento do sistema tradicional de extração da borracha é, portanto, muito importante para se poder compreender a sociedade da Amazônia rural. As árvores da família Hevea que produzem a borracha não crescem muito próximas umas das outras; conservam, em geral, entre si uma distância de cinquenta a cem metros [...]. Habitualmente cada seringueiro trabalha em duas estradas; cada dia extrai borracha de uma enquanto descansam as árvores da outra. Segundo se diz, a extração do látex da mesma árvore durante dias consecutivos, cansa a árvore, diminuindo-lhe a produção. As barracas dos seringueiros são, portanto, geralmente, bastante espaçadas; ficam distantes umas das outras, cerca de um ou dois quilômetros, nas margens do rio principal, ou dos pequenos afluentes (WAGLEY, 1988, p. 100).

Cumpre dizer, neste particular, que foi precisamente nos isolados seringais que a miséria passou por um de seus momentos de maior flagrante, como revelou o escritor Euclides da Cunha, reconhecendo que “os brasileiros do sul desconheciam aquele outro Brasil, miserável e atrasado, que surgia diante de seus olhos” (GONDIM, 1994, p. 222). O escritor, que esteve na Amazônia chefiando a comissão brasileira de reconhecimento do Alto Purus, retornou:

Desolado e revoltado com o que testemunhara: populações relegadas ao abandono, vivendo em condições subumanas, na mais absoluta miséria. Viu os seringueiros sendo explorados pelos seringalistas arrivistas, submetidos a um regime de escravidão no meio da floresta, um lugar longínquo demais onde a justiça não conseguia ou não tinha interesse em chegar (GUEDELHA, 2013, p. 86).

A melhor síntese sobre a ligação entre isolamento e miséria, entretanto, vem de Juca, um dos entrevistados por Charles Wagley, que, ao explicar porque “a gente das classes mais baixas” recebiam menos cortesia e respeito, respondeu: “eles (os seringueiros e lavradores) são menos civilizados porque vivem isolados e são pobres” (WAGLEY, 1988, p. 124). Luis Chato e sua família, vivendo “naquela lonjura”, são as duas coisas, isolados e pobres.

No que diz respeito ao solo, este é chamado pelo ribeirinho de “ruim, ingrato, pobre também”, que só dá mais é “mata-pasto”, e que a “terra firme é pobre”. Caso se deseje uma terra melhor, diz ele, deve-se procurar plantar na “varge” (várzea), pois, “lavada nas grandes águas, a fartura se vê no plantio”. O clima, de outra parte, em especial o calor implacável do sol, é criticado, pois “tosta tudo”, deixando o solo “varrido, duro, escaldando”.

Sem entrarmos em maiores considerações a respeito, que, na verdade, cabem à alçada da Geologia e ciências afins, é bem conhecido que o solo da Amazônia costuma entrar no bojo das discussões sobre a região tropical em virtude da sua alegada pobreza. “Quanto aos fatores pedológicos”[6], diz Djalma Batista (2006, p. 103), “temos pela frente um dos mais discutidos assuntos dos trópicos: a pobreza dos solos, agravada pela lixiviação ocasionada pelos aguaceiros, conduzindo à erosão fatal”. Luis Chato chama-o, aqui, de ruim, de ingrato e pobre, e que se alguém deseje levar adiante o sonho de ver fartura no “plantio” deve procurar pelas terras da várzea.

Sabe-se, desde há muito, que as terras de várzea, lavadas “nas grandes águas”, como diz o narrador, é o lugar onde “estão as terras férteis, pois, anualmente, recebem o limo dos rios, enquanto a terra firme é geralmente pobre para a agricultura” (WAGLEY, 1988, p. 14). Talvez se deva a essa fecundidade dos solos de várzea a euforia do padre João Daniel (2004, p. 423) ao proclamar, no século XVII, que sem trabalhos “produzem as terras do Amazonas as suas searas por si só, com só lançar o grão à terra. Todo o benefício e trabalho, na verdade grande, consiste em cortar o arvoredo, lançar-lhe fogo, quando seco, e plantar a maniba na terra ainda fumegando”. Afinal de contas, como é possível perceber, ele estava falando aqui desses terrenos e do cultivo da mandioca.

Como foi apontado acima por Charles Wagley, o solo das terras firmes são indicados como pobres. Em virtude dessa pobreza, pontua Djalma Batista (2006, p. 141), alguns problemas chegam a atingir a agricultura e os alimentos provenientes desses solos, tais como os rebanhos, localizados em alguns lugares da Amazônia, que “não bastam para o fornecimento de carne e leite à população. São rebanhos atacados por epizootias frequentes e alguns, como os do campo do Rio Branco, decadentes por carências minerais e fatores genéticos”. Com essa questão ainda em análise, cabe novamente citar Charles Wagley, o qual disse que:

Os solos tropicais foram, em geral, julgados pobres pelos geólogos. A vegetação cresce rapidamente devido ao clima quente e úmido que dura o ano todo; entretanto, mesmo as raízes das grandes árvores são surpreendentemente rasas. A camada de húmus é fina. A rápida decomposição da matéria orgânica nos trópicos faz com que o depósito de húmus seja leto, até mesmo na floresta dessa e, quando se procede ao desflorestamento para cultivo ou estabelecimento de núcleos coloniais, a erosão e a lixiviação cedo exaurem a terá. As copiosas chuvas tropicais dissolvem os nitratos de ferro e alumínio. Estes são cozidos pelo sol abrasador que os transforma em laterita – nódulos rochosos. Os solos de laterita não são próprios para a agricultura e os alimentos que eles produzem são considerados pobres em sais minerais, como cálcio, ferro e cloreto de sódio (WAGLEY, 1988, p. 37).

Entretanto, muito embora a miséria humana apareça aqui ligada a este tipo de solo, e isso muito nos interessa, pois ajuda a dar sentido à ideia proposta para este tópico, uma coisa precisa ser dita, como pontuam alguns autores: que o solo, tanto quanto é possível afirmar, não é tão pobre assim. O próprio Luis Chato reconhece: “a terra é boa, não se pode arrenegar de todo” (JACOB, 1968, p. 19). E que o maior empecilho a ser vencido é a falta de técnica, que poderia ser proporcionada por aquilo que também lhe falta, o fator humano. Por meio da técnica, assim expressa Araújo Lima (1975, p. 115), o homem “transforma a face da Terra. Faz a flora que lhe é propícia. Constrói as mais opulentas riquezas agrícolas”. Eis aí clareado, talvez, o grande ponto.

No meu entender, ao citar o sol que “tosta tudo”, Luis Chato também traz para o centro da discussão a questão do clima da assim chamada zona tórrida da terra[7]. Cumpre dizer que além dos danos causados ao solo, este sol implacável do clima amazônico tem gerado debates em torno da habitabilidade do espaço. “Essas questões e outras do gênero estiveram fortemente presentes no debate científico dos séculos XVIII e XIX, e fizeram com que o Novo Mundo, em particular, ganhasse uma posição de importância crescente nas reflexões dos filósofos e homens de ciência”, assim coloca o professor Renan Freitas Pinto (2012, p. 157).

De uma parte, perfilam-se aqueles que lançam para a competência do clima e do meio uma ação cega sobre o homem e sua condição política e econômica. Ao clima chega-se a atribuir, por exemplo, o atraso de certas culturas e civilizações, como a amazônica, que estaria em atraso em virtude do infernismo visto e alegado em sua natureza. Deve-se “à divulgação da teoria da evolução de Lamarck, e, nas esferas da arte, da política e da história, à ação fecunda e alastradora das ideias de Taine” (ARAÚJO LIMA, 1975, p. 26) essa ligação do atraso de determinadas culturas ao determinismo climático, afirma Araújo Lima, que escreveu “um livro profundamente erudito, com uma introdução à antropogeografia que é um milagre de síntese e um prodígio de equilíbrio científico” (BATISTA, 2006, p. 27).

De outra parte, encontram-se aqueles que não veem um determinismo cego do clima sobre o homem, embora não deixem de reconhecer a sua ação. Djalma Batista (2006, p. 139), por exemplo, embora revele concordância com o pensamento “do professor Araújo Lima”, não deixa de mencionar, igualmente, o ensolejamento que “cresta as plantas e desidrata, pela sudorese, os animais superiores, elevando a temperatura a quatro, cinco e mais graus quando sob a ação direta de seus raios” (BATISTA, 2006, p. 101). Outros, inclusive, não deixam de mencionar aquilo que opto por chamar, aqui, de ramerrão climático, aquela aparente não mudança de estações, levando alguns a dizerem que “nessas regiões, goza-se de um eterno verão” (NÉRI, 1979, p. 57). Eia aí o que também observou o padre João Daniel, já no século XVII:

Deste bom temperamento se segue o estar sempre em uma contínua, e perpétua primavera sem se temerem nem o desabrido do outono, nem os rigores do inverno, nem as demasias do estio. Nem o inverno tem distinção, ou diferença alguma do verão mais, do que em ser chuvoso, e não serem tão contínuos no inverno os ventos gerais, talvez pelas muitas chuvas, que os apagam; mas então recompensa a frescura das águas a menor intenção dos ventos, de sorte que sempre o clima fica sendo temperado. Por isso no Estado do Amazonas não se há de contar as estações do ano pela mudança dos tempos, mas só pelas águas das chuvas, e orvalhos do verão (DANIEL, 2004, p. 78).

Parece-me altamente provável, portanto, que o que não se pode, com relação ao clima, é seguir também o outro extremo, representado pelo pensamento do barão de Santana Néri (1979, p. 59), qual seja, o de “louvar a bondade desse clima, que é perfeitamente saudável e de temperatura muito mais moderada do que se supõe geralmente”. Até porque se sabe que o estudioso era uma das figuras de popa da divulgação do Brasil na Europa, fato que pode significar, sem que sejam necessárias provas laboriosamente acumuladas para demonstrar, que esta sua afirmação deve partir do ufanismo do autor por seu país e pela sua terra natal.

Deve-se, sim, seguir, nesta questão, colocações mais ponderadas sobre a relação do clima com o estado político e socioeconômico do homem, tais como a de Araújo Lima (1975, p. 114): “a ação direta do clima sobre as sociedades humanas, sustentada por uma corrente de que Huntington é hoje a mais alta expressão, não está autorizada por nenhum argumento científico sólido”. E a de Benchimol (2001, pp. 17-18): “atribuídas situações de inferioridade geográfica, imputadas à questão do calor e do clima, e devido a excitação do sexo e da permissividade imoral da preguiça, indolência, inferioridade social e outros falsos conceitos negativos, todos eles, hoje, superados”.

A questão central, portanto, referente à relação climática com a miséria mostra-se ser outra, bem mais profunda. A este argumento darei eu continuidade no próximo tópico, quando estiver a refletir sobre e levantar algumas das possíveis causas para a miséria como tônica social reinante na Terceira Amazônia.

Em continuidade, insiro outros textos de Chuva branca com o objetivo de ensejar a discussão sobre a alimentação e o estado de miséria:

Não fosse o lago, despensa de todos por aqui [...]. Dias sem nada em casa, na farinha com água. A meninada pedindo comer, o pessoal na fraqueza [...]. Hoje nem café por desgraça. Pena mesmo é dos filhos, o mais assim jitinho, sugando o peito da mulher, descaído, seco. Ela se acabando, cada dia mais desvanecida, as carnes sumindo. Beiju de farinha dias e dias, chá de cipó-de-cravo, uma coisinha ou outra vasqueira. Vida desinfeliz essa de pobre, devia ter estomago mais encolhido que rico. Se tem menos. [...]. Diabo de inverno, chuveiro danado, dificultando peixe, as aguas tomando as restingas, avançando nas terras, os bichos metidos nos igapós [...]. Trabalho contratado, acaba o trato de dias de serviço, não tendo, o arranjo é correr o lago, procurar na despensa. Se fisgar um peixinho, mata qualquer embiara, ave, caça miúda, muito que bem. Senão, pequenas posses, esperar pelo que Deus quiser. Curtindo necessidade, café da manhã, farinha dias corridos [...]. Como andarão as coisas por lá? Na certa a mulher já pediu farinha do compadre Juvenal. Quem sabe até se o maiorzinho, o assim mais taludo, não puxou algumas sardinhas. Menino esperto, entusiasmado, todo metido a ser homem feito. Ninguém não diz, mas ajuda muito. É quem garante a mais das vezes o bocado de comer pra casa

 (JACOB, 1968, pp. 8, 9, 11, 95, 48).

É importante reter, aqui, três pontos. Primeiro, que o “lago”, na Terceira Amazônia, representa a “despensa de todos por aqui”. Logo, no inverno, quando o lago enche e os peixes ficam “metidos nos igapós”, e a pesca torna-se dificultosa, as coisas pioram para este homem. Segundo, que faltam à família gêneros alimentícios básicos, com exceção da farinha, pois “hoje nem café por desgraça”, o que explica o estado de subnutrição dos filhos. E, terceiro, como podemos observar, o trabalho infantil neste espaço se faz necessário, com vistas a ajudar nas provisões da casa. “O maiorzinho”, diz o narrador, “ajuda muito”.

O lago é, para o homem amazônico, a despensa por excelência, pois é para onde ele corre para mitigar a sua fome. Como afirma Samuel Benchimol (1977, p. 702), “o peixe constitui, ao lado da farinha de mandioca, a base da alimentação do povo ribeirinho, a custo praticamente zero”. Muito justificadamente, o padre João Daniel também já observava que:

Os lagos são abundantíssimos de muitas variedades de pescado delicioso; porque ali se acham as tartarugas, ali se pescam os peixes-boi, os pirarucus, jandiás, acarás, e toda a mais casta de pescado, e em tanta quantidade, que há morador que, tendo perto de casa algum lago, é o mesmo que ter em casa um viveiro de peixe; e no verão quando diminuem as águas fazem provimento do mesmo lago de 50, e 100 arrobas de peixe (DANIEL, 2004, p. 96).

As coisas ficam piores, todavia, quando chega a enchente, pois é nesta estação, e não no verão, que a Amazônia passa pela escassez de víveres. “Quando a enchente, decuplicando o volume dos rios, faz de todo o vale um intérmino aguaçal, por onde o pescado se dispersa erradio ou, os cardumes, nas chamadas piracemas, busca alcançar as cabeceiras altas”, a pesca torna-se difícil e o caboclo passa por necessidades. De acordo com Samuel Benchimol (1977, p. 89), “no que se refere à alimentação, a enchente é sempre adversária. Os peixes fogem e se refugiam nos igapós e ficam escassos, e a farinha, o leite e as verduras encarecem rapidamente, durante, pelo menos, quatro ou cinco meses”. Não por outra razão que Luis Chato o pragueja: “diabo de inverno, chuveiro danado, dificultando peixe”.

Louro e Souza (2014, p. 141), ao analisarem esse ponto em seu trabalho sobre Chuva branca, chegaram à mesma conclusão e pontuaram que “o inverno amazônico não é bom para o homem. Esse período chuvoso sempre foi tomado como símbolo de escassez”. Somente nos meses que vão de junho a dezembro é que a fartura de peixe volta novamente, pois “durante esses meses os pequenos riachos, que engrossam durante a estação chuvosa, voltam às suas margens primitivas ou secam totalmente e os peixes também regressam aos rios principais” (WAGLEY, 1988, p. 91).

Com essa questão do rio em análise, é possível dizer, com Leandro Tocantins (2000, p. 80), que eis ai fundado o motivo por que, na Amazônia, o rio comanda a vida e “é o condutor do progresso e o sangue da vida”. Aliás, é possível ir mais longe, fazendo coro com Deusamir Pereira, e afirmar que:

O ciclo infindável de cheias e vazantes, que ocorre todos os anos, transcende as questões climáticas e nos dá uma lição clara e objetiva de como têm sido os nossos ciclos econômicos. Para ele, assim como o caboclo vive a fartura da vazante e a escassez da enchente, o povo amazônico tem presenciado a oscilação cíclica do processo de desenvolvimento regional ─ ora pujante, ora miserável. Assim tem sido desde o primeiro ciclo: o das Drogas do Sertão (PEREIRA, 2006, p. 117).

Consoante ao segundo ponto proposto para este tópico, a saber, que falta o essencial em gêneros alimentícios para Luis Chato e sua família, este é, em meu ver, uma das principais manifestações da miséria humana na Terceira Amazônia, visualizada em Chuva branca. No romance, em razão do estado de subnutrição em que a família vive, o ribeirinho retrata a esposa com “as carnes sumindo”, indo a igual teor o retrato que ele faz do filho menor, sugando um peito sem vida, pois são as crianças, na verdade, aquelas que mais sofrem:

O sacrifício maior, na Amazônia, no entanto, é das crianças, que não dispõem de leite indispensável aos primeiros tempos de sua existência. O leite fresco, além de pouco, não resiste à proximidade dos grandes caudais, e é diluído a concentrações homeopáticas: continua sendo verdade que a doutrina de Hahnemann não se aplica à alimentação... O leite enlatado excede à capacidade aquisitiva da maioria da população. De sorte que resta o leite materno, que seria ideal, se as nutrizes fossem suficientemente alimentadas para secreta-lo, em quantidade e qualidade bastantes. Daí a alta mortalidade infantil, as doenças da primeira infância, os pré-escolares enfermiços – que deparamos a toda hora (BATISTA, 2006, p. 106).

É válido afirmar que esse ponto se torna mais evidente à medida que prossegue a diegese, com o narrador se valendo de quadros para mostrá-lo, tais como a “tanta magreza que a aliança de grande que era, só falta cair, roda no dedo folgada”, e a comparação que faz dos filhos com um peixe de corpo delgado: “como estão descaídos os meninos, tudo magro, é vê aruanã” (JACOB, 1968, pp. 142, 201).

Dois renomados autores, a saber, Djalma Batista e Araújo Lima, apontam este estado de subnutrição, mais do que as razões climáticas, como uma das verdadeiras causas do atraso e da miséria. O primeiro afirma que:

Não queremos chegar às razões climáticas, mas não podemos deixar de ter presente razões biológicas, entravando, neste passo, também, a cultura: doenças e subalimentação, que grassam intensamente, mesmo em Belém e Manaus, situam-se em posição vantajosa na debilitação do corpo e consequentemente no aviltamento da inteligência (BATISTA, 2006, p. 82).

E o segundo, mais incisivo, que “há, pois, mais uma causa, e gravíssimo, por arrolar na complexa etiologia dessa inércia desabonadora, dessa incapacidade de trabalho que tanto tem deprimido moralmente o homem amazônico, tornando-o uma vil e problemática expressão etnográfica: é o déficit nutritivo” (ARAÚJO LIMA, 1975, p. 57).

Conexas que são a esse estado de subnutrição, é importante não deixar de falar de duas outras questões, que são as doenças que atingem o homem amazônico, em especial aquelas diretamente ligadas ao fator alimentício, como as verminoses, e as feras, os animais selvagens. Em sua viagem pela Amazônia, o alemão Martius (1979, p. 82) chegou à conclusão de que “as causas desse mal de vermes devem ser atribuídas especialmente ao uso da água do rio, à falta de variedades nas comidas, à falta de tempero de sal e à preponderância, na alimentação, de bananas cruas e frutos silvestres”. Em Chuva branca, Luis Chato fala do filho menor, que “botou cada bicha semana passada”, e compara-o com os meninos da cidade, “uns tebas de meninos, vermelhos”, enquanto os dele, “só barriga, amarelidão” (JACOB, 1968, p. 21).

Na Amazônia colonial, o padre João Daniel também já fazia essa observação sobre as verminoses, e dizia que:

Posto que sejam comuns em todo o mundo, no Amazonas são em tanta cópia, que bem se podem chamar uma das suas pragas, para cuja criação convidam e concorrem muito o clima, e calores; porque como a mãe da lombriga é a água, e pelos grandes calores do Amazonas seja o uso, e refrigério da água mui frequente, e repetido, segue-se o haver tanta cópia de sevandijas nos seus habitantes, que passam a ser praga, e peste. De sorte que tem havido grandes epidemias originadas só das lombrigas (DANIEL, 2004, p. 247-248).

Neste mister, impressionante é a relação que Samuel Benchimol faz entre as doenças e a miséria, pessimismo e desânimo nos trabalhos:

No caso particular da Amazônia, é fundamental que se descubra, com urgência, vacinas eficientes contra o impaludismo, malária, hepatite, doenças de Chagas, filariose, esquistossomose, hanseníase e outros males e doenças que atacam o homem do interior e agora, novamente, as cidades em proporções crescentes e ameaçadoras. De todas elas, é prioritário inventar a vacina contra a malária, que atinge cerca de 400.000 a 500.000 pessoas/ano em toda a Amazônia Legal, fazendo que se agrave a pobreza do homem e se instale o pessimismo e o desânimo nos trabalhos produtivos da lavoura, criatório, mineração, pesca e indústria em todos os quadrantes do interior, vilas, cidades e metrópoles (BENCHIMOL, 2001, p. 49).

Merece a atenção um último ponto, sobre esse estado de subnutrição, até porque tem a ver com a teoria desenvolvida por Abraham Maslov, e ficou conhecida como a Hierarquia de Necessidades de Maslov. Segundo essa teoria, o ser humano, na busca pela satisfação de suas necessidades, segue uma hierarquia natural, a saber, procura atender precipuamente aquelas consideradas mais básicas, localizadas na base da pirâmide, tais como as fisiológicas, relacionadas ao funcionamento do corpo e a necessidade de segurança, ou seja, proteção, estabilidade e liberdade do medo. Assim sendo, uma mulher, por exemplo, preocupar-se-ia primeiramente com sua segurança do que com a sua aceitação pelos outros ou realização.

Este ponto é importante porque Luis Chato parece perceber a verdade dessa teoria, quando comenta que “não sei porquê, comendo bastante dois, três dias, vem a animação [para fazer sexo]” (JACOB, 1968, p. 88). Em casa, durante os dias em que passam sem nada em casa para a alimentação, necessidades mais básicas se impõem à necessidade do gozo venéreo, o que faz com que ele não procure pela esposa. Como afirma a Teoria de Necessidades de Maslov, “as pessoas não são motivadas a satisfazer as suas necessidades superiores até que as inferiores sejam satisfeitas” (MASLOV, 1970 apud DAVIS, 2001, p. 204). E Benchimol, que também observou o princípio dessa teoria, declarou que:

Não devemos perder de vista que, nas sociedades primitivas, a escassez de recursos impõe critérios de seleção e de rendimento a curto prazo, face a urgência do atendimento daquelas necessidades biológicas mais elementares. Já os romanos diziam: ‘primum vivere, deinde philosopharae’ (BENCHIMOL, 1977, p. 452).

Não quero, aqui, examinar todas as ramificações da questão das doenças, mas outras doenças que aparecem no romance são a tuberculose, “a maldita do peito já pegou lá dele”, e a leishmaniose[8], popularmente conhecida como ferida braba ou bicheira: “o pegador de borboleta apelidou esse troço, que no conhecer do pessoal é ferida braba mesmo, de leis... leis... mani... maniose” (JACOB, 1968, pp. 154, 238).

Concernente à questão das bestas ou animais selvagens da Amazônia, elas também, no meu entender, podem ser ligadas ao estado de miséria do homem habitante do espaço. Uma das razões é que o motivo de Luis Chato constantemente estar repetindo a palavra miséria é por lembrar de seu amigo “Zé Pretinho”, que foi devorado por um jacaré: “Zé Pretinho morrendo, o banzeiro manchado, o jacaré disconforme” (JACOB, 1968, p. 21). Mas Zé Pretinho, diz ele, “teve sua sorte, no meu dizer a morte foi boa lá pra ele. O jacaré abarcou-lhe os dentes, a água ferveu por instantes, rasgou-se, no meio do sangue desapareceu. Nunca mais há de sofrer” (Op. cit., p. 237). Em uma palavra, até o fim da vida, imposto pelas bestas, é melhor que o estado de miséria em que ele vivia.

Outros animais que aparecem acossando o homem amazônico, no romance, são os insetos, “os carapanãs, de dia era pium, borrachudo, maruim, mutuca” (JACOB, 1968, p. 25). Martius, ao falar dos insetos, faz a observação sobre a “dor ardente, insuportável comichão, fazem dessa doença um tormento, que o europeu protegido pelas vestes não pode ver sem a mais viva compaixão, pois ele, por si mesmo, pode calcular a intensidade da dor penetrante” (MARTIUS, 1979, p. 67).

Ainda outros incluem cobras, pois, “como todos os paraísos, o Amazonas esconde serpentes entre suas folhas” (NÉRI, 1979, p. 72). No romance, o protagonista apresenta o relato de uma sucuri, “uma de menos de cinco metros quase leva na força o Agripino, numa caçada de pato” (Op. cit., p. 145); o tamanduá-bandeira, que matou o “finado Secundino” (Op. cit., p. 199), felinos como “maracajá, suçuarana, pintada, vem de um tudo” (Op. cit., p. 162) e a “abelha miserável de desabusada” etc. Como diz Araújo Lima (1975, p. 141), “o homem daquelas paragens precisa viver armado, muito menos para matar do que para viver”.

O trabalho infantil que se presencia em Chuva branca, com o filho maior de Luis Chato tendo que pescar para ajudar a família a se alimentar, é comum na Terceira Amazônia. Charles Wagley (1988, p. 85) observou que estas crianças “começam a trabalhar na roça com os pais aos dez ou doze anos e, nessa idade, já podem pescar para ajudar a suprir a despensa da casa”. É comum, segundo o mesmo autor, os pais tentarem esconder o trabalho infantil, mas trata-se de uma realidade observada em quase todo o vale amazônico, em grande parte em virtude da condição de necessidade das famílias.

Da crítica social à miséria humana

Mostro, neste tópico, os excertos com os quais Luis Chato, em meu ver, emite uma denúncia contra o estado de miséria em que vive esta Amazônia.

E os filhos em jejum, sem janta. Será que rico tem privações. Larga a filharada em casa, na maior necessidade, passando fome? [...]. Enterro de pobre, enterro tem de ter convidado. Vai o ganho do ano, no fim se enterra é na rede. Trabalho, nos derradeiros dias de vida, tem que fazer [...]. Tomou até chá de maria-mole, a modo arriar. Naquela teima de sempre, não quer pegar filho pra ver passar fome. Lembra os dois que perdeu [...]. O Salomão quer quase de graça, a troco. Leva-se partida enorme de balata, sorva, copaíba. Vigie só o que se traz [...]. Ninguém nunca pode de calcular da miséria de caboclo. Falam da riqueza da terra, do abandono, da miséria da gente não carece saber [...]. Zé Pretinho teve a sua sorte, no meu dizer a morte foi boa lá pra ele [...]. De hoje a manhã entrego a carcaça, o corpo desonerando em cima da terra, os urubus remexendo os apodrecidos do desinfeliz (JACOB, 1968, pp. 20, 32, 49, 53, 218, 237, 243).

Meu ponto de vista, quanto à crítica social feita pelo narrador, se resume, como mostram os excertos, a cinco aspectos. Primeiro, vemos que aqui Luis Chato põe-se a se questionar se pessoas ricas também têm “privações”, passando necessidades como ele e a família. Não é preciso lhe dizer que a resposta é óbvia e negativa, mas o importante a ser notado é, sobretudo, a distinção de classe social feita pelo ribeirinho. Nas suas próprias palavras, “pobre sofre muito. Sofre mesmo” (JACOB, 1968, p. 24). Daí ser melhor a morte, tal como ele diz respeitante ao amigo Zé Pretinho.

Em segundo lugar, chama a minha atenção o que ele diz a respeito do “enterro de pobre”, pois sendo o estado social predominante de miséria, a morte de um parente vem piorar o quadro, gerando despesas não desejadas que sobrecarregam ainda mais o pífio orçamento familiar. Como enterro “tem de ter convidado”, nele vai “o ganho do ano”, fato que faz com que se veja o féretro como um gerador de despesas, dando trabalho para a parentela “nos derradeiros dias de vida”.

A respeito da mortalidade infantil, ligada à subalimentação, são estarrecedoras as palavras que, em discurso relatado, ele atribui à esposa Mariana. Já ciente da miséria por que passa a família, Mariana evita engravidar, tomando chás “a modo arriar”, para não “pegar filho para ver passar fome”. A ribeirinha ainda tem lembrança dos dois filhos que perdeu para a subalimentação.

Sobram críticas, ainda, para a carestia com que os alimentos são conseguidos, principalmente das mãos do comerciante Salomão, nome da personagem semita de Chuva branca, mas que também aparecerá em outros romances de Paulo Jacob, tais como em O gaiola tirante rumo do rio da borracha (1987) e Um pedaço de lua caía na mata (1990). Outras críticas, de cunho político-econômico, surgem quando ele diz que “vermelho é fome, vermelho é desgraça, até dum governo por ai que chamam assim” (JACOB, 1968, p. 169), onde se percebe uma alusão ao comunismo, a doutrina econômica e sociopolítica elaborada por Karl Marx e Friedrich Engels.

For fim, tomemos outra crítica social, para mim a mais contundente, que fala do estado de abandono do homem amazônico. Luis Chato fala da preocupação que se tem pela natureza, pela preservação da sua riqueza, uma ideia, contudo, que, segundo ele, acaba por esquecer o mais importante, que é o homem, o ser humano que está no espaço. Deste homem, com o “corpo desonerando em cima da terra”, e “da miséria da gente” ninguém parece querer saber. Até a religião recebe sua cota de críticas, pois, afinal, por que “rezar a valer e continuar na mesma situação”? (JACOB, 1968, p. 211). Afirma o ribeirinho.

Nota sobre as causas da miséria na Terceira Amazônia

Há uma importante observação a ser feita para este tópico antes de progredir: trata-se de dizer que ele é apenas uma reflexão sobre as possíveis causas da miséria humana na Terceira Amazônica, fruto de um olhar realizado a partir de Chuva branca. Não visa, por conseguinte, a apresentar “a causa” ou “as soluções” para o problema, até porque existem razões poderosas para assegurar que ao encarar alguns dos assuntos mais cruciais da vida humana certa área de incerteza está definitivamente fadada a permanecer, mesmo que de forma dolorosa. E a miséria humana o é, sendo, aliás, “a fonte de todos os males na democracia”, já dizia Aristóteles (2002, p. 140).

O que se tem em manejo, portanto, é um tema cujos aspectos parecem infinitamente variáveis e as discussões, em torno dele, notoriamente árduas de se resolverem. Entretanto, imperioso nos é abordar o assunto, uma vez que se sabe de sua proximidade com o sofrimento humano, este algo que “transcende e une diferentes culturas e épocas históricas” (MOORE, 1974, p. 30). Como ressalta Proudhon (2007, p. 340), “sente-se de que importância é para a humanidade verificar essa hipótese”.

Feitas essas considerações, parto de dois reconhecimentos: primeiro, que “a Amazônia brasileira é, fora de dúvida, uma área subdesenvolvida” (WAGLEY, 1988, p. 270); e segundo, que lugares assim “não são subdesenvolvidos por acaso e coincidência” (BENCHIMOL, 2001, p. 16). Existem causas e essas causas, afirma Charles Wagley (1988, p. 40), devem “ser buscadas na cultura e na sociedade amazônica e nas relações dessa região com os centros do poder econômico e político e com as origens da difusão cultural”. Pelo que nos diz também Moore (1974, p. 31), existem “algumas amplas constantes no problema da miséria humana e, certamente de igual e talvez maior importância, tendências históricas determináveis que afeta tanto a forma histórica específica dessas constantes quanto os esforços humanos para lidar com elas”.

É especificamente desde último ponto — as causas — que passarei a tratar a seguir, retomando, para a discussão, alguns dos aspectos já tratados, como as habitações, a densidade demográfica, a pobreza do solo e o clima.

É bem verdade que as habitações da Terceira Amazônia são rústicas, reveladoras, até, da miséria social do espaço, mas há um ponto nada trivial na questão que não deve passar despercebido. A rusticidade e a simplicidade das habitações, como já anotei, estão direta ou indiretamente ligadas ao modo como a terra foi povoada. O seringueiro era geralmente um nordestino que tinha como meta vir para a Amazônia, passar uma “chuva”, ganhar algum dinheiro e voltar para o sertão, como já entrevia o Relatório da Presidência da Província do Amazonas, redigido pelo Dr. Jacy Monteiro (1877) e citado por Benchimol (1977, p. 175): “verdadeiros nômades, quais ciganos, não são esses que hão de levantar povoados, sem concorrer para aumenta-los”. A sua casa, um tapiri embrenhado na floresta, revela muito sobre a doença de que sofria o nordestino, o transertanismo, a vontade de voltar para a sua terra na primeira oportunidade que tivesse.

Por esse motivo dado, é possível fazer esse paralelo entre a rusticidade das habitações e a economia extrativista. Ao tratar, a propósito, da economia gomífera, oportuno é discutir sobre a baixa densidade demográfica e a situação de isolamento em que vive este espaço, muitas vezes acessível somente pelos rios. Muito extensa, a Amazônia acaba pagando pela sua grandeza, o que também concorre para o estado de miséria. Não por outra razão que o antropólogo americano Charles Wagley, na década de 40, fazia a seguinte associação, entre o que chama de “método de residência esparsa” e as dificuldades encontradas para melhorar a educação e a saúde:

É muito difícil instalar escolas nas zonas rurais, em um ponto de fácil acesso à população dispersa. Se se instalassem escolas em todos os arredores de Itá, algumas famílias teriam de remar de três a quatro horas por dia para levarem seus filhos à escola. A única solução seria um ônibus escolar (no caso de Itá um barco), mas nas circunstâncias atuais o custo desse serviço seria excessivo. É muito difícil proporcionar cuidados médicos e medidas de saneamento a essas casas esparsas pois para chegar ao médico mais próximo as pessoas têm que viajar horas e às vezes dias. Os médicos da saúde pública têm dificuldade em chegar a essas residências tão dispersas para aplicar vacinas, para desinfeção com DDT ou para lhes dar instruções de higiene (WAGLEY, 1988, p. 267).

Em continuidade, chega-se aqui à incômoda questão de saber um importante ponto: esse homem amazônico, tal como Luis Chato, é miserável porque vive isolado ou vive isolado porque é miserável? Eu, por minha parte, sei das enormes dificuldades no caminho de uma concordância racional para a questão em tela, mas vale dizer que há posicionamento para ambos os lados.

Aristóteles (2002, p. 35), por exemplo, chegou a falar, em sua Política, que “a própria vida é uma espécie de dever para aqueles a quem a natureza a deu e, quando não é excessivamente cumulada de misérias, é um motivo suficiente para permanecer em sociedade”. Essa afirmação do filósofo estagirita, no meu entender, parece constituir uma afirmação de peso à tese de que é a miséria que leva ao isolamento, ao afastamento da sociedade. Posto de outra maneira, enquanto a vida não for “excessivamente cumulada de misérias”, deve o homem “permanecer em sociedade” e fazer valer o seu lado social, gregário. Ultrapassado esse ponto, deve ele, segundo o filósofo, e em razão da miséria, se isolar da sociedade e enfatizar o seu outro lado, o de animal monadika, ou seja, solitário.

Logo, segundo defende Aristóteles, a miséria é que levaria ao isolamento, posição que entra em choque com o que observou o antropólogo americano Charles Wagley, em seu trabalho no vale amazônico. Como ele afirmou, “em geral, quanto mais longe do rio morasse a família, mais pobre ela tenderia a ser” (WAGLEY, 1988, p. 292), pois o rio seria, na Amazônia, “o condutor do progresso e o sangue da vida” (TOCANTINS, 2000, p. 80). Aqui, por outro lado, seria o isolamento que levaria à miséria.

Tem-se, então, dois posicionamentos frente à mesma questão, o que implica em salientar que ninguém deveria ser tão audacioso em esperar concordância geral ao tratar o assunto. O que resta dizer, entretanto, é que esse isolamento ou hiato demográfico amazônico, em termos de desenvolvimento, parece se colocar como um obstáculo, pois a vis tergo (força propulsora) que realmente ocasiona as transformações sociais parece vir do fator humano. Nesse particular, desempenha papel fundamental, assim defende Émile Durkheim (2007, p. 115), “o grau de concentração da massa” ou de “coalescência dos segmentos sociais”, com cada um de seus membros cooperando “eficazmente” para a “vida comum”. Só se pode, todavia, afetar e ser afetado pelas mudanças sociais “se a distância não for um obstáculo, isto é, se ela de fato for suprimida” (Op. cit., p. 116). Daí o meu posicionamento em colocar, não a distância em si, mas o método de residência esparsa, que se mostrou necessário no início da colonização da Amazônia para fins de proteção, como uma das causas da miséria humana no espaço em pauta.

Respeitante ao solo, fazendo uso das próprias palavras de Luis Chato, “a terra é boa, não se pode arrenegar de todo” (JACOB, 1968, p. 19). A verdadeira razão, portanto, de ligar a alegada pobreza do solo à miséria humana mostra-se ser outra, vinculada aos ciclos econômicos ou, como diria Proudhon (2007, p. 340), aos “vícios da organização industrial”. Nesse particular, a monocultura da borracha ou a economia gomífera, a propósito, tem muito a nos falar.

O fato é que o discurso da pobreza do solo tem menos a ver com o solo em si do que com o modelo econômico que se escolheu para a Amazônia. É notório o calhamaço de dinheiro que o ciclo da borracha trouxe para os cofres da região e do Brasil, mas não se deve deixar passar despercebido que a euforia em torno da seringa prejudicou setores de extrema importância para um crescimento com desenvolvimento humano e equilibrado. A agricultura, por exemplo, não foi incentivada, e isso não se deu somente nos seringais e em relação aos pequenos roçados dos seringueiros, os quais eram proibidos de praticar a lavoura, pois “desviava a atenção do homem da seringa” (BENCHIMOL, 1977, p. 176). O fascínio causado pelo extrativismo tirava de todos o olhar do campo. Como registrou o barão de Santana Néri:

Mas o fator que desvia a população da agricultura sedentária e da indústria aperfeiçoada, é essa sede natural de ouro que se apoderou da maior parte da população e que a impele para a profundeza das florestas e rios mais longínquos, à descoberta da árvore maravilhosa de onde escorre o suco da borracha (1979, p. 125).

Cabe também citar Benchimol:

Seringa e roça, portanto, não rimam bem. O roçado só existe quando a seringa falece. Na época da crise, até que se vive bem nos seringais. Pelo menos o homem toma interessa para a plantação e volta as suas vistas à terra. Seringa rima bem é com béri-béri, com charque e farinha, com pirarucu fresco e feijão. Não combina com batatas, legumes, galinha, ovos, leite. Se ela se juntasse com tudo isso o homem não vinha para voltar (BENCHIMOL, 1977, p. 177).

Assim como, com prazer, acrescentar a esses exemplos as palavras de Charles Wagley:

O sistema econômico que resultou da extração do látex e de outros produtos da floresta, e o sistema de servidão por débito que está ligado às relações seringueiro-seringalista — o chamado sistema de fornecedor-cliente — descritos neste livro, são enormes obstáculos ao desenvolvimento. Sob o impacto da moderna economia brasileira, ambos os sistemas estão desaparecendo do vale amazônico. Mas ainda na década de 70, não haviam desaparecido de todo (WAGLEY, 1988, p. 15).

Estou, por certo, inclinado a acreditar que, mesmo no momento de maior fausto do látex, a agricultura poderia andar pari passu com a economia gomífera, o que poderia dar ao homem amazônico o feijão, o milho, a banana, as verduras etc para a sua mesa. Entendo que, apesar de Chuva branca se passar em um tempo após o período áureo da borracha, haja vista a alusão ao comunismo russo que é feita na narrativa, a cultura do não cultivo da lavoura permaneceu. Daí se ver, no romance, Luis Chato criticar o solo, mas não enxergamos ali nenhuma referência a alguma horta ou algum roçado.

“A terra já está preparada há muito”, alardeava o naturalista inglês Alfred Russel Wallace (1853 apud NÉRI, 1979, p. 129), em relação à Amazônia. Cumpre assinalar, portanto, que a ligação da miséria humana com o solo, que ora se faz aqui, trata-se menos com o solo em si do que com aquilo que disse Proudhon (2007, p. 339): “há, portanto, na miséria humana uma parte que, sem injustiça, não se pode culpar a natureza e que, não obstante a rapidez das gerações, provém exclusivamente da inércia do homem”. É de Samuel Benchimol a seguinte observação, que também fala da inércia:

As sociedades humanas podem se eternizar dentro de um quadro estagnacionista como podem resvalar no plano inclinado da regressão ou percorrer a espiral ascensionista, nada assegurando, assim, que um País pobre hoje seja fatalmente próspero amanhã, ou que sociedades desenvolvidas de hoje não entrem a seguir em decadência. A história está rica de exemplos de povos jovens que se deixaram envelhecer precocemente, presos ao círculo vicioso de penúria, estacionários no tempo, sem outras motivações que não aquelas derivadas da tradição e da inércia (BENCHIMOL, 1977, p. 449).

O que se tem em manejo, então, em relação ao solo, é o fator humano, não sendo sem razão que “o desenvolvimento do Vale Amazônico significará”, defende Charles Wagley (1988, p. 286), “a transformação da sociedade local e da cultura tradicional”.

Com o fator humano em tela, eu volto ao assunto do clima, listado por Samuel Benchimol (2001, p. 84) entre os “fatores de perpetuação da pobreza”, uma vez que pode submeter “países e regiões a graves problemas de seca – como no sertão e no semi-árido nordestino – ou grandes alagações, terremotos, maremotos ou chuvas excessivas que impedem a prática regular das atividades produtivas humanas”. Em Chuva branca, e bem assim na Amazônia, a ligação que se faz entre o clima e a miséria se deve principalmente ao calor provocado pelo sol e à crítica à ausência de estações definidas.

Esses fatores, segundo alguns, seriam os determinantes da miséria e do atraso do vale amazônico. Mas mesmo Buffon, “um dos consolidadores da ‘teoria do meio’”, diz Araújo Lima (1975, p. 14), “não crê numa cega e brutal ação dominadora, nem em influências solapadoras sobre o homem inerte e impassível”. Luis Chato menciona o sol, que “tosta tudo”, assim como a terra “frestada e quente” (JACOB, 1968, p. 8), o que se concilia com a posição tomada por Charles Wagley (1988, p. 82), qual seja, o de que “existem, evidentemente, numerosas limitações impostas pelo ambiente físico e pelo clima”. Entretanto, aqui também parece ser menos um ponto de determinismo climático do que o fator humano, pois “mais pode o homem do que o clima” (ARAÚJO LIMA, 1975, p. 106). E é o próprio Charles Wagley (1988, p. 280) quem reconhece: “o clima tropical oferece muitas dificuldades à vida humana, nenhuma, entretanto, insuperável, desde que se disponha de equipamento técnico apropriado”.

De resto, é premente salientar o aspecto político, a condição de abandono do homem amazônico, entre as causas de sua miséria. “Um povo é capaz de Estado na medida em que saiba imaginar”, afirma Ortega y Gasset (1987, p. 81), e é por isso que “não há criação estatal se a mente de certos povos não é capaz de abandonar a estrutura tradicional de uma forma de convivência, e, além disso, de imaginar outra nunca sida”. Afinal, façamos coro com Djalma Batista (2006, p. 76) e perguntemos: “quantas leis, realmente, já e fizeram na Amazônia, visando ao bem, ao verdadeiro, ao sagrado, ao inconspurcável bem público”?

Na verdade, nos é forçoso reconhecer que “a estrutura tradicional de uma forma de convivência”, a respeito da qual fala acima Ortega y Gasset, e que talvez seja a causa mais ampla da miséria humana na Amazônia, é produto de um processo histórico e perdura até os dias de hoje. Como é bem sabido, desde o século XVI “a região amazônica tem sido uma área colonial, primeiro pertencente a Portugal e, a seguir, do próprio Brasil que, durante mais de três séculos, foi um produtor de matérias-primas para mercados distantes, se uma justa compensação para esses produtos” (WAGLEY, 1988, p. 282). Diante disso, desde o ciclo das drogas do sertão, passando pelo ciclo econômico da borracha, a única preocupação daqueles que dirigiam politicamente a região era exportar mais e mais, sem, no entanto, procurarem um sistema comercial que substituísse o velho.

Com isso, floresceu na Amazônia o que Samuel Benchimol (1977, p. 456) denomina de “crescimento econômico sem a existência concomitante do desenvolvimento”. Em uma palavra, havia riqueza, mas essa riqueza, quando não era mal empregada, ia parar nos mercados externos. Assim sendo, ao invés do investimento na educação, “o calcanhar-de-aquiles capaz de iniciar o caminho da saída da exclusão para a inclusão social” (BENCHIMOL, 2001, p. 100), enviava-se os filhos para serem educados no estrangeiro; ao invés de incentivar a colonização da Amazônia com uma elite de pessoas preparadas para a valorização da região, achavam mais barato aliciar miseráveis que fugiam da seca no nordeste.

Finalmente, forçoso é reconhecer que, mesmo diante dessas considerações, a reflexão sobre as causas da miséria humana na Terceira Amazônia permanece inteira. Por isso, vou um pouco mais longe com a interpretação e toco em um ponto que cumpre ressaltar: “a causa primeira de seu mal [do homem] está sempre nele; ora, é essa causa que é necessário vencer, antes de gritar contra o destino” (PROUDHON, 2007, p. 342). Em uma palavra, antes mesmo de transferir responsabilidades para a sociedade e para a política, é mister que o homem, à guisa dos existencialistas, reconheça a sua cota de atribuições, sabendo que, num certo sentido, “o homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo” (SARTRE, 1987, p. 4) e que longo é o caminho para aquele que deseja sair dos bolsões da pobreza:

É uma tarefa árdua, sem dúvida, essa de atender aos anseios e às expectativas crescentes dos povos, pois se os desejos e reinvindicações são fáceis de postulação, difícil e longo é o caminho do trabalho, da educação, da perseverança, da austeridade e da dedicação que conduz ao progresso (BENCHIMOL, 1977, p. 450).

Esse ponto também vale para Luis Chato, nosso homem amazônico.

Considerações finais

Em Chuva branca, o escritor Paulo Jacob procurou revelar a realidade em que vivia o homem da Terceira Amazônia, embrenhado pelos rios e pelos beiradões. Esse homem, Luis Chato, assim como o núcleo familiar do qual ele participa, aparece em condições socioeconômicas que poderiam ser mais bem traduzidas como estado de miséria, faltando o essencial à família.

No romance são evidenciados o estado de subalimentação das gentes, assim como crianças com verminoses e tendo que ajudar a família a sobreviver. A razão de ele declarar que “ninguém nunca pode de calcular da miséria de caboclo” é uma forma de chamar a atenção e denunciar a sua condição, uma função que a literatura cumpre aqui.

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[1] Mestrando em Letras/Estudos Literários (UFAM).

[2] Para fins de delimitação, ao falar de Amazônia estarei me referindo, especificamente, àquele espaço cunhado por Djalma Batista (2007, p. 114) como a “Terceira Amazônia”, ou seja, o lugar onde estão inseridos os “habitantes das vilas, povoados, ‘freguesias’, aldeias, sítios, fazendas, seringais”. É a Amazônia rural, ribeirinha.

[3] Convém dizer que o filósofo Mário Ferreira dos Santos faz a presente distinção com bastante cautela, pois a reconhece como sendo relativa: “Diz-se relativamente porque ela [a pobreza] em um estágio pode ser miséria em outro, e o que é supérfluo a uns pode ser já o necessário para outro. São assim relativos e, em certos aspectos, se confundem. Deve-se considerar um e outro sempre relativamente” (SANTOS, 1963, p. 1110).

[4] Tomarei, ao longo deste trabalho, a licença de intercambiar os termos ameríndio, índio, nativo, autóctone, aborígene e brasíncola (termo de von Martius), utilizando-os como sinônimos.

[5] Devo acrescentar imediatamente, contudo, que uma grave dificuldade se apresenta neste argumento. Algumas nações ricas e escassamente povoadas, tais como a Noruega, e outras, pobres, mas densamente povoadas, como algumas da Ásia, mostram que seguir tal tese é não estar pisando em chão familiar e presumivelmente sólido. Todavia, aquilo para que chamo a atenção, aqui, é a ligação desse estado social à densidade demográfica da Amazônia.

[6] De acordo com o Dicionário eletrônico Houaiss (2001), a pedologia é “uma das disciplinas da ciência do solo, que trata especialmente da morfologia, gênese e classificação do solo”.

[7] “Zona terrestre compreendida entre os trópicos” (NÉRI, 1979, p. 57).

[8] “Doença causada pela multiplicação dos protozoários do gênero Leishmania no organismo do homem ou dos animais” (HOUAISS, 2001).