Artigo escrito em agosto de 2008

E a cena se repete: uma ditadura próspera prestes a exaltar-se mundialmente graças à sua apoteose em um colosso esportivo. A China, ao mesmo tempo sede das olimpíadas de 2008 e líder disparada de medalhas, guardando grande distância dos países de colocação mais próxima (incluindo os Estados Unidos), irá exibir-se ao mundo como nova potência olímpica e aditivar com esse atributo a ressonância de seu poder geopolítico e econômico em ascensão. Não será em quase nada diferente da tirania militar de Emílio Médici, cujo governo pegou carona no tricampeonato brasileiro na Copa do Mundo de 1970. A audiência planetária alienada mais uma vez torce e comemora, mas quem está de olhos abertos atenta-se para o ressurgimento da ameaça existente por trás desse "revival". É certo que nem em 2008 nem em 1970 o esquema de um regime de exceção aproveitar a via das competições esportivas como propaganda de si era uma novidade, visto que o mundo já havia presenciado a investida dos nazi-fascistas nos anos 30 de reafirmar o poder do Eixo pelas vias das copas de 1934 e 38 e dos jogos olímpicos de 1936, mas é preferível nos concentrarmos na analogia entre os regimes dos generais brasileiros e dos capitalitários (capitalistas + totalitários) pós-comunistas chineses, porque é assim que iremos nos familiarizar melhor com o problema.

Precedente à atual edição de perspectiva mundial dessa incômoda novela, lembremos o que houve na nacional. Era 1970 e o Brasil estava como se num carnaval fora de época. O "milagre econômico" impulsionava o crescimento do PIB para cerca de 10% ao ano, e a ferveção do futebol, há muito configurado como paixão popular geral, ia de vento em popa com as vitórias da seleção brasileira na Copa do México, a primeira a ser transmitida via satélite. Pelé, Tostão, Rivelino e companhia levavam o povão ao delírio com lances espetaculares e gol atrás de gol. Em 21 de junho eles venceram a Itália por 4 a 1. Quem nasceu antes de 1965 deve lembrar: "Todos juntos vamos/Pra frente Brasil, Brasil/Salve a Seleção". Pois bem, a nação inteira comemorou...

...E o governo militar também e ainda mais. Estava ali uma oportunidade suprema de anunciar ao mundo que o "país do futuro" estava despontando internacionalmente. E foi o que aconteceu. Que beleza estava aquele país... Dimensões territoriais continentais, crescimento econômico a perder de vista – às custas de exploração trabalhista e arrocho salarial, deixemos claro –, divulgação de fortes tradições culturais como carnaval e praia, política de desenvolvimentismo intensivo – ainda que em detrimento do meio ambiente –, urbanização acelerada, consolidação como paraíso de empresas multinacionais... e um governo autoritário aproveitando-se de todas essas potencialidades nacionais para reafirmar ao planeta que estava dando certo e por isso merecia mérito e prestígio, tendo a hegemonia esportiva como trampolim para o plantio de um nacionalismo que consolida seus poderes perante uma geopolítica que pouco se importa se povos estão sendo amordaçados e chibatados por tiranias civis ou militares.

Alguma semelhança com o que está acontecendo no outro lado do planeta? Se ainda duvida, leia os jornais e um livro bom de História do Brasil e preencha mentalmente a lacuna do parágrafo abaixo, que é basicamente uma repetição levemente modificada do acima.

"Que beleza o(a) ______ da década de _____... Dimensões territoriais continentais, crescimento econômico a perder de vista – às custas de exploração trabalhista e arrocho salarial, deixemos claro –, divulgação de fortes tradições culturais, política de desenvolvimentismo intensivo – ainda que em detrimento do meio ambiente –, urbanização acelerada, consolidação como paraíso de empresas multinacionais... e um governo autoritário aproveitando-se de todas essas potencialidades nacionais para reafirmar ao planeta que estava dando certo e por isso merecia/merece mérito e prestígio, tendo a hegemonia esportiva como trampolim para o plantio de um nacionalismo que consolida seus poderes perante uma geopolítica que pouco se importa se povos estão sendo amordaçados e chibatados por tiranias civis ou militares."

Agora você deve ter notado que as duas ditaduras são semelhantíssimas, com as exceções da situação temporal e de que, ao contrário da nação de Médici, é um país candidato a superpotência. E, com um pouco mais de entendimento das questões chinesas de política tirana e direitos humanos, notaremos a periculosidade dessa afirmação do dragão com alma de demônio.

Saibamos que esse êxito olímpico chinês, com o sucesso de suas olimpíadas e sua liderança no quadro de medalhas, é um passo a mais para aquele país se afirmar como potência em pleno desenvolvimento. Um trampolim para um processo de encantamento cultural que será a menina-dos-olhos de uma força política que almejará estar algum dia no lugar que atualmente pertence a George Bush. Se por uma democracia de araque já é ruim para a humanidade ser liderada, imagine com um governo explicitamente ditatorial. Não tenho total certeza do que aconteceria, mas uma hegemonia mundial chinesa teria conseqüências indesejáveis para um mundo que clama por justiça e liberdade. Imagine Estados-cliente dominados por ditaduras subservientes aos pós-comunistas de forma ainda pior que na época do plantio de regimes militares anticomunistas pró-americanos e rugidos de arrogância geopolítica da China a qual fará ela passar por cima da ONU quando quiser realizar uma investida de dominação econômica do estilo "EUA contra Iraque".

Você quer um mundo assim, ainda pior que o liderado pelos americanos? Não? Então largue esse estado alienado de consciência, abra os olhos e pare de dar aos totalitários aquilo que eles tanto querem: audiência e atenção positiva. Só a sensação de que não estão conseguindo emanar poder para o mundo poderá enfraquecê-los e então dar ao povo chinês uma perspectiva de libertação. E você poderia começar esse processo de "não alimentar os trolls" agora mesmo, desligando sua TV e indo ler ou dormir em vez de dar o ibope às Olimpíadas da tirania.

É certo que muitos torcem para a China continuar ultrapassando os Estados Unidos no quadro de medalhas. Digo que é gente que não sabe o que está fazendo e peço a esta que se lembre do Brasil de 1970. É uma alegria para o povo do país vencedor? É, mas tem um preço muito alto para o mesmo e, no caso asiático, para o mundo todo. Do mesmo jeito que inflou a auto-afirmação dos militares brasileiros naquele contexto tão promissor para eles, a hegemonia esportiva deverá fazer a grande gang autodenominada Partido Comunista mostrar a seu povo e ao mundo que a China totalitária tem poder. Se você não quer isso, tome partido e não ajude mais Pequim a encher o balão que implicará a ascensão de uma superpotência tirânica ainda pior que os EUA. E para isso eu repito: desligue a TV quando os Jogos Olímpicos estiverem passando.