Certidão Social

Quando se fala demonstramos o mundo, não apenas nossa perspectiva do mundo, mas todo o conceito e definições que se propagam até nos através da influência inevitável dos grupos sociais. A língua não é apenas um instrumento de comunicação, mas também um poderoso agente social que reflete e impacta todos os indivíduos.
A forma com que tratamos as crianças e jovens à margem da sociedade é fruto de uma herança há muito tempo construída. Os "caboclos", os "negros", os "mestiços" da época colonial, que eram marginalizados e vítimas do preconceito das elites brasileiras, figuram as ruas de todo o país camuflados em diferentes roupagens e novas definições no Aurélio. O problema maior reside nas novas nomenclaturas com que tratamos nossas crianças: Prostituta-Infantil, trombadinha, maloqueiro, cheira-cola... A cada problemática se cria uma definição que reforça e fortalece a diferença entre o problema e a solução.
Não determino como causa única os precedentes históricos, apenas saliento a idéia de que eles são a base para a formação de uma doutrina preconceituosa que fere os direitos individuais de todos os cidadãos.
Percebemos então que a língua é construtora e reflexo das diferenças sociais. Agimos por instinto quando definimos singularmente um novo termo para os meninos que, não por escolha, mas por imposição vivem e moram nas ruas. Estamos construindo e fortalecendo uma sociedade manchada pelo preconceito e ignorância.
Não muito longe vemos essa situação. Saímos de casa e nos deparamos com milhares de crianças ausentes dos seus direitos. Não podemos abdicar do dever de tentar modificar esse quadro, não devemos simplesmente condenar a política como única culpada da realidade. Todos são agentes sociais e suas ações implicam no meio em que vivem.
A cada criança que nasce, novas certidões de nascimento são emitidas, com os dados de cada novo cidadão. Entretanto, existem vários jovens que ao nascerem recebem "Certidões Sociais". Não se trata de um documento real e burocrático, mas um legado que especifica qual infeliz realidade ele vai pertencer. As "Certidões Sociais" precisam ser extintas e, em troca, seus donos devem receber novas perspectivas e futuros.