Castro Alves e o voto simbiôntico

Sentados à volta de uma vetusta mesa de jacarandá, ouvíamos, eu e mais quatro discípulos, uma preleção de Luca Matéria (LM), também conhecido por Mestre Luca (ML). Mestre Luca, vale lembrar, é aquele etnógrafo amador aposentado que, devido ao seu temperamento dramático, é auto-explicativo, ou seja, dispensa comentários.

O gabinete era amplo, confortável, climatizado, e o tema daquela noite versava a respeito das dúvidas de Descartes, a cujo influxo nasceu a filosofia moderna. Como de costume, ao término da exposição, fomos convidados a apresentar os nossos comentários e a formular as nossas perguntas. Podíamos comentar e perguntar livremente, mas ML dava preferência a questionamentos que relacionassem a lição filosófica à prática da vida, à atualidade, aos problemas do cotidiano.

Quando chegou a minha vez de arguir, aproveitei para dizer que eu também duvidava. Duvidava das próximas eleições presidenciais.

A reação de LM foi imediata e impactante. Ele me olhou fixamente com o cenho carregado e disse em tom profético: "Marcaremos passo nesta situação, enquanto o povo não se conscientizar de que o Brasil já fez o seu Poeta Clássico, já produziu Castro Alves."

Deveras surpreso com a prontidão e a originalidade da resposta, ponderei:

─ Mestre, isso está parecendo um koan, uma sentença zen. ?Poeta Clássico?? ?Castro Alves?? ?Nesta situação?? Aonde o Mestre quer chegar?

─ Chegaremos lá. Antes, porém, vejamos o que é possível fazer para aclarar o objeto de suas dúvidas. Posto como está ─ ?as próximas eleições presidenciais? ─ convenhamos, o objeto parece muito vago. Chego até a admitir que essa imprecisão seja, por enquanto, o principal motivo de seu incômodo. Nesse caso você estaria experimentando a desagradável sensação de duvidar sem saber precisamente do que. Concorda comigo?
─ Bem, eu disse que duvidava das ?próximas eleições presidenciais?, isto é, usei essa expressão vaga e imprecisa, porque não consegui ser mais analítico. Desculpe.
─ Filho, por favor, não se desculpe. Admiro sua coragem, e me disponho a ajudá-lo, se você permitir. Permite?
─ Claro. Se quiser, podemos começar agora mesmo.
─ Que horas são?

Era madrugada. LM foi direto ao assunto.

─ Você nos diz que duvida das eleições presidenciais. Eu lhe pergunto: duvida das eleições por causa dos candidatos?
─ Não.
─ Duvida por causa das instituições?
─ Também não.
─ Nesse caso, se nem os candidatos nem as instituições o confundem, é possível que o verdadeiro alvo das suas dúvidas não seja outro senão o sufrágio popular. Concorda comigo?
─ Não vou negar que questiono muito mais o mérito do voto, do que a qualificação dos candidatos, ou a eficácia dos códigos eleitorais. Mas esse reconhecimento, se isola o alvo da minha dúvida, não alivia nem um pouco o meu desassossego. Muito pelo contrário. Não lhe parece estraho?
─ Filho, um dia você vai compreender que muitas vezes a dúvida incomoda menos que a elucidação.
─ Elucidação em termos, Mestre, pois ainda não sei explicar por que me inclino a desqualificar o sufrágio popular nas próximas eleições. O senhor sabe?
─ Talvez saiba por empatia, visto que eu também encaro com reservas não o sufrágio popular em toda a sua extensão ─ isso seria tolice ─ mas a índole do voto das maiorias.
─ Nesse caso, responda por nós dois: De que índole o senhor está falando? Que maiorias são essas?
─ Refiro-me à índole do voto das maiorias, a cujo influxo se instalou no Brasil a cultura da simbiose eleitoral, institucionalizada sob o rótulo de Bolsa-Família.
─ Quer dizer, então, que todo voto simbiôntico é suspeito?
─ Não diria suspeito. Suspeito sempre arrasta uma conotação delituosa, que o eleitor simbiôntico não merece. Diria vicioso, diria portador de um vício cultural, entendido vício como sendo um "defeito grave que torna uma ... coisa inadequada para certos fins ou funções". Diria, por fim, em linguagem figurada, que todo voto simbiôntico profana os ideais democráticos.
─ O Mestre certamente nos dirá por que.
─ Porque o voto é uma criação do espírito. Quando o voto perde o vigor polivalente do seu alcandorado simbolismo, e se transforma em instrumento corriqueiro de barganha, a verdade deserta, a dignidade cambaleia.
─ Mestre, o dia já vem clareando. Só falta o senhor nos dizer o que Castro Alves tem a ver com tudo isso.
─ Veja bem: a maturidade de uma nação define-se em estilo grandioso e com intenção moralizante, ao surgimento do seu Poeta Clássico. Foi assim em toda parte, foi assim, por exemplo, na Alemanha de Goethe, na Itália de Dante, em Portugal de Camões, na França de Corneille, na Inglaterra de Shakespeare. Castro Alves é o nosso Poeta Clássico. É ele quem personifica o caráter próprio da nacionalidade brasileira. É ele quem simbolicamente declara ao mundo que estamos aptos a conduzir o nosso próprio destino, que temos vergonha, que somos grandes, éticos, livres e responsáveis. É ele quem, no vácuo deixado pela crise do cristianismo e pela crescente dispersão da família, representar ser a nossa última referência moral. Enquanto não compreendermos isso, enquanto não valorizarmos o simbolismo de sua mensagem como forma privilegiada de conhecimento, marcaremos passo nesta situação. Agora, vocês já podem ir, que eu ainda pretendo reler alguns trechos de Averroés, antes do café.