INTRODUÇÃO

A presente pesquisa visa a discussão e especulação a respeito da questão antropológica
clássica, "o que é o homem?". Já desde muito cedo optamos por referir-nos a este estudo
como um exercício de caráter especulativo e não "conclusivo", uma vez que estamos diante
de um ser de muitas faces e manifestações diversas; diante disto, há de se perceber que
estaríamos exagerando ao escrever, simplesmente, que iríamos responder a tal pergunta.
Talvez este não seja o objetivo da investigação, embora por muitas vezes certas coisas possam
denotar uma perspectiva decidida e confiante.
Mas uma posição será tomada. Assumimos, aqui, uma perspectiva relativa à
Antropologia Filosófica e às questões levantadas por Ernst Cassirer, donde o homem é
encarado sob um viés simbólico. A obra cassireriana Ensaio Sobre o Homem (1944) será o
ponto de referência desta pesquisa, que visa também dialogar a respeito das formas simbólicas
que fazem parte da cultura humana. Nossa pesquisa será, portanto, vinculada à referências
bibliográficas de obras que tratam de Antropologia e Filosofia, e assumirá uma metodologia
por vezes analítica (afinal, estaremos isolando aspectos fundamentais da expressão humana a
fim de analisar em quê consiste o princípio do ser humano) e por vezes dialética
(principalmente nos momentos em que expomos o homem conforme o constante conflito
entre natureza e cultura que lhe é inerente).
Tomar uma posição perante um assunto tão ambíguo e aberto a tantas perspectivas
faz-se necessário, de modo que também visamos atingir certa objetividade. Porém, também
parece oportuno assumirmos ainda nesta introdução, que muitas reflexões contidas neste
estudo se afastam do material que utilizamos por referência. Talvez isto nos afaste de um
caráter especificamente "científico", mas a razão disto é que estamos tratando do ser humano
e, portanto, caímos, por muitas vezes, no viés da auto-reflexão, em uma maneira
"individualista" do pensar. Às vezes, refletir a respeito do homem pode nos trazer crises
existenciais.
Pensamos ser importante discutir a respeito de uma coisa como esta na introdução.
Pois nas páginas seguintes, estaremos mergulhando em um universo filosófico e antropológico dominado por conceitos, e talvez nossa verdadeira face desapareça, submersa
pela tradição filosófica e científica, donde as referências muitas vezes se prestam para cobrir o
"pensamento real", quer dizer, o pensamento do indivíduo que redige o texto, abre os livros e
assinala as páginas, reflete sobre o assunto e muitas vezes entra em conflito. Trata-se do "eu"
que pesquisa. E este é o pesquisador mas também é o homem. Por muitas vezes, ele se refere
ao homem sem sentir-se parte de tal universo, mas aí que vos fala é o homem fazendo a
função de pesquisador. Porém, é impossível encobrir o homem completamente. Somente ele é
o responsável pela criação da pesquisa científica e pelas ondas e ares que a cercam.
Porém, qual é o sentido de estarmos escrevendo sobre uma coisa como esta? Isto só
nos afasta da pesquisa seguinte! Ou então poderíamos dizer que nos aproxima a ela? Talvez as
duas opções nos sirvam, como servem os chapéus, largos ou estreitos, para cabeças medianas
e arejadas. Talvez esta introdução, onde falamos sobre a própria introdução e não sobre a
pesquisa, seja mais esclarecedora do que a própria pesquisa, afinal, toda estranheza aqui
contida se assemelha à ambigüidade humana, e isto não se faz necessário explicar, basta
reconhecer que pontos de interrogação, tão simbólicos quanto o ato da pesquisa, tomam conta
da nossa mente diante da estranheza de um texto não muito convencional.
O que veremos daqui em diante nos trará reflexões um pouco menos arbitrárias, quer
dizer, estaremos, de fato, seguindo uma linha de pesquisa antropológica e filosófica, a qual
nos exigiu leitura e compreensão de diversões autores, principalmente Cassirer. Porém, o que
sabemos é que não teremos, ao fim da pesquisa, a resolução da pergunta pelo sentido e
significado do homem. Mas pensamos, e agora uma coisa bastante pessoal, que a estranheza
que citamos antes, isto sim, talvez possa responder-nos mais claramente. E ao mesmo tempo,
não há maior obscuridade em lugar algum do universo simbólico.

1. PARA UMA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA
1.1 História e memória de Ernst Cassirer
Ernst Cassirer nasceu em 28 de julho de 1874, em Breslau, na Alemanha (a mesma
cidade pertenceu à Polônia e foi chamada de Wroclaw em tempos anteriores). De família
judia de classe média (seu pai, Eduard Cassirer, era comerciante), mudou-se ainda jovem para
a cidade de Berlim, onde iniciou seus estudos universitários, em 1892, na Universidade de
Berlim. Iniciou estudos em direito, e logo mais envolveu-se com a leitura de obras clássicas
de literatura e filosofia. Também passou pelas universidades de Leipzig, Heidelberg e
Munique, onde estudou história, línguas e ciências biológicas. Em 1896, ele conheceu
Hermann Cohen (1842-1918) e tornou-se um de seus estudantes da linha neokantiana, na
Universidade de Marburg 1.
Em 1899, Cassirer defendeu sua tese de doutorado, que tratava sobre Descartes e a
análise matemática do conhecimento científico (Descartes, Kritik der Mathematischen und
Naturwissenschaftlichen Erkenntnis). Nesta época, Cassirer ainda não havia se envolvido
diretamente com o pensamento antropológico, visto que seus principais trabalhos referiam-se
à teoria do conhecimento ? seguindo a tradição da escola de Marburg.
Em 1902, casou-se com sua prima, Toni Blondy, com quem permaneceu até o dia de
sua morte. Voltou para Berlim no ano seguinte, e mesmo que não fosse costume das
universidades alemãs destinarem cargos importantes a judeus, Cassirer tornou-se docente
instrutor (Privatdozent) na Universidade de Berlim, onde permaneceu por treze anos.
Publicou, em 1910, "Substância e Função", e em 1918, "Kant. Vida e Pensamento", um
compêndio de estudos sobre a vida e a filosofia de Immanuel Kant (1724-1804). Logo mais,
recebeu o convite para ocupar duas cátedras na recém-fundada Universidade de Hamburgo,
onde permaneceu até o início dos anos 30. Neste meio tempo, produziu muitos textos
1 A escola de Marburg é um grande símbolo do neokantismo, e classifica tal corrente, em primeiro lugar,
como uma teoria da ciência, acentuando a unidade lógica do pensamento. A inversão proposta por Kant, que ao
invés de considerar o conhecimento científico como um estudo das coisas-em-si o que entra em vigor é o
questionamento do próprio sujeito, inspirou filósofos como Cohen a adotar o método kantiano, e mais que isso,
ultrapassar o próprio kantismo, reduzindo à filosofia à uma teoria do conhecimento científico, concentrando-se
nas condições do conhecimento das coisas, e não das próprias coisas. A escola de Marburg segue esta tradição
lógico-objetivista, e Cassirer não seguiu tal tradição à risca, e amostra disso é que mais tarde ele veio a se
interessar por perspectivas históricas e culturais que tangem o ser humano.
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acadêmicos e relacionou-se com outros pensadores de grande importância, como Albert
Einstein (1879-1955) e Martin Heidegger (1879-1976).
Além disso, foi neste meio tempo que Cassirer publicou os três tomos de A Filosofia
das Formas Simbólicas2, uma de suas principais obras, na qual ainda expõe alguns aspectos
neokantianos, tal como a consideração de que nossa estrutura conceptual é a chave para a
compreensão do mundo em que vivemos. Porém, também demonstra a partir daí aspectos de
uma filosofia própria, que não se detém a apenas um estudo crítico e histórico do problema do
conhecimento, mas um crescente interesse pelo problema da cultura em geral e sua
importância no desenvolvimento do homem e sua capacidade de criar conceitos. Sem negar os
ecos kantianos, Cassirer dá início a uma filosofia com características próprias.
Com a ascensão do nazismo na Alemanha, Cassirer foi obrigado a deixar o país,
devido a suas raízes judaicas, e em 1933 foi para a Universidade de Oxford, na Inglaterra,
onde proferiu palestras por dois anos, e em seguida, foi para a Universidade de Gotemburgo,
na Suécia, onde permanece por seis anos. Neste meio tempo, publica diversos artigos e obras
discutindo as relações entre as ciências naturais e as "ciências culturais". Em 1941, viaja para
os Estados Unidos e passa a lecionar na Universidade de Yale. Em 1944 publica Ensaio
Sobre o Homem, uma espécie de compêndio de sua Filosofia das Formas Simbólicas, escrito
em inglês, sob novas perspectivas, sendo esta considerada por muitos como sua principal
obra. Nas terras americanas, promoveu seminários de discussão sobre literatura e estética,
onde participaram dois importantes filósofos americanos, muito influenciados por sua obra,
Arthur Pap (1921-1959) e Susanne Langer (1895-1985).
Cassirer produziu textos filosóficos e lecionou em Yale até o fim de sua vida, no dia
13 de abril de 1945, quando um fulminante ataque cardíaco lhe impediu de terminar uma
caminhada diurna pelas ruas de Nova Iorque.
1.2. Breve histórico das concepções de "homem" na Filosofia Ocidental
Desde os primórdios da filosofia grega até os dias atuais, tivemos muitas especulações
a respeito das questões antropológicas, e, sob muitas perspectivas, o homem adquiriu
diversificados rótulos, que viriam exprimir características do pensamento em comum de
2 Escritas e publicadas entre 1923 e 1929.
9
determinadas épocas. Assim como muitos fenômenos naturais, o homem foi posto em questão
e virou objeto de pesquisa (ou, se quisermos, problema de pesquisa). Porém, pensar e tomar
conclusões a respeito do homem é um pouco diferente dos outros fenômenos, pois não se trata
somente de conhecimento do objeto estudado, mas também de autoconhecimento.
Além disso, estamos diante de um animal muito ambíguo, de difícil definição
conceitual. Nenhum outro animal apresentou, em toda história natural, um caráter tão
propenso a mudanças quanto o homem. Podemos comparar tanto homens de culturas distantes
quanto aqueles que dividem a mesma cultura: muito mais largamente do que os outros
animais, entre um homem e outro há uma diferença gritante, e tal diferença ultrapassa os
limites orgânicos; está presente em cada decisão que o homem é capaz de considerar, através
de suas concepções pessoais ou relativas à cultura à qual ele faz parte.
Para melhor compreensão do conceito do homem parece-nos de muita importância
traçar um histórico com algumas concepções pensadas no decorrer da história da filosofia, já
que tal pesquisa não se remete somente às reflexões cassirerianas, mas à problemas propostos
por uma Antropologia Filosófica. Poderíamos fazer uma longa pesquisa sobre as concepções
de homem partindo das antigas filosofias orientais, de tradição milenar, que também seriam
de grande importância para entendermos o fenômeno humano, mas o principal objetivo desta
recapitulação é captar os aspectos fundamentais que influenciaram a abordagem do homem
enquanto animal simbólico, e, portanto, será mais plausível iniciarmos pelos antigos gregos,
buscando somente alguns conceitos fundamentais para enriquecer reflexões de parágrafos
posteriores.
Falar sobre as concepções concebidas na Grécia Antiga talvez seja a tarefa mais árdua,
pois aqui temos uma cultura muito antiga e peculiar. Referimos-nos aqui ao período por volta
do Século IV a.C. O primeiro fato a ser apontado é que para este antigo povo, quando se
falava no homem enquanto ser superior em relação aos outros animais, revelava-se uma
concepção de correspondência entre o ser humano e a ordem cósmica do universo, ou seja, os
modos de ser do homem pareciam representar estreitas ligações com a cosmologia. A crença
politeísta também contribuiu para estas ligações, visto que os deuses gregos não eram
simplesmente onipotentes, mas apresentavam características humanas, deixavam-se levar
pelas paixões, traíam e sofriam, sentiam medo ou bravura; eram quase como humanos nas
aventuras míticas entre o céu e a terra,
dominantes no pensamento do povo grego.
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A idéia fundamental do homem enquanto ser dotado de logos (zoon logikón) e o poder
discursivo inerente a ele tornaram-se características do pensamento grego, e influenciaram em
muito a humanidade. Os filósofos Pré-Socráticos, também conhecidos como primeiros físicos,
buscavam na investigação do princípio cosmológico também o sentido do homem, pois o
destino de ambos parecia estar interligado. Somente a partir de Sócrates (470?399 a.C.) surge
a idéia do homem enquanto indivíduo autônomo (evidentemente, não na mesma perspectiva
da autonomia moderna), livre, de personalidade moral e capaz de pensar por si próprio e
emitir juízos de valor. Estes aspectos, genuinamente antropológicos, exerceram grande
influência em nossa civilização, pois foi um lento processo, desde a Grécia Antiga até os dias
atuais, assumir a autonomia do homem, deixando em segundo plano suas funções sociais e
distanciando-o ainda mais daquilo que poderia ser um aspecto comum em relação aos outros
animais.
Conforme a abordagem cassireriana sobre a guinada antropológica que a filosofia
adquiriu a partir do pensamento socrático, o autor afirma:
Sócrates oferece-nos uma análise detalhada e meticulosa das qualidades e virtudes
humanas individuais. (...) O homem só pode ser descrito e definido nos termos de
sua consciência. Este fato coloca um problema inteiramente novo, que não pode ser
resolvido por nossos modos costumeiros de investigação. (...) É apenas nas nossas
relações imediatas com os seres humanos que obtemos uma compreensão do caráter
do homem. (...) A característica da filosofia de Sócrates não é um novo conteúdo
objetivo, mas uma nova atividade e função do pensamento.3
Quando fala de uma "nova atividade" do pensamento, Cassirer refere-se ao
pensamento dialógico ou dialético. Concebe que a verdade do homem só poderia ser obtida
mediante mútua interrogação e resposta, bem como o método socrático. Diante disso,
podemos pensar no homem como uma criatura em constante busca de si mesmo, que, diante
de indagações provindas de sua racionalidade, também responde racionalmente, coisa que
outros animais jamais poderiam assumir. É a partir disso que se apresenta como um ser
responsável e autônomo.
Após Sócrates, tivemos importantes perspectivas antropológicas surgidas no
pensamento grego e que muito influenciaram nossa Civilização. A antropologia platônica
apresenta o dualismo alma-corpo, uma vez que o homem é considerado a união destas duas
instâncias, e sua finalidade está comprimida na direção da "alma racional". Tal concepção
3 CASSIRER, 2005, p. 15-16.
11
exprime uma direção espiritual e ao mesmo tempo racional, e inspirou muitos pensadores
posteriores a Platão (427-347 a.C.).
Aristóteles (384-322 a.C.) ocupou também um papel importante na antropologia
clássica, agindo em contraponto à teoria platônica; o centro da concepção aristotélica do
homem reside no horizonte do ser e do agir humanos. Porém, o filósofo não deixa de lado as
especulações a respeito dos princípios imanentes que fazem do homem diferente dos outros
seres vivos, e mais uma vez temos a razão como ponto central, e o homem concebido por
zoon logikón. O fator político-social do homem também foi posto no conceito de zoon
politikón, e dentro disso, Aristóteles ainda fez observações muito oportunas e sistemáticas,
mas as mesmas não serão aprofundadas neste breve histórico.
Ainda cabe-nos falar brevemente sobre algumas idéias antropológicas surgidas entre
os Séculos III-I a.C, período em que ocorreu o Helenismo. Tal época caracteriza-se pelo
declínio da polis grega como comunidade soberana, donde o homem dedicava todas suas
aspirações; a partir de então, surgiram importantes correntes onde discutia-se sobre
verdadeiras "filosofias de vida", que buscavam resolver o problema do bem-viver. A primeira
corrente, o Epicurismo, se orienta a partir de princípios hedonistas, onde o prazer sensível é
apontado como a principal condição para a "vida feliz" (eudaimonía), e prega-se, então, a
intensa busca pelo prazer; já no Estoicismo, temos o oposto; o homem deveria conformar-se à
natureza e seguir cautelosamente ao que cabe à sua razão, obtendo, a partir dela, também o
domínio sobre as paixões e a necessidade dos prazeres sensíveis. Estas são correntes opostas
que tocam questões bastante oportunas para pensarmos, inclusive na contemporaneidade. São
questões mais relativas à conduta do homem enquanto suas aspirações ao bem-viver, e não à
concepção do homem enquanto tal, mas merecem esta breve citação.
A próxima concepção a ser discutida é a época da dogmática cristã, definida pelos
livros de história como Idade Média, que se estendeu na cultura ocidental por volta do Século
V até XV d.C. Como se sabe, esta época foi embasada e sustentada por ideais da Igreja
Católica, donde o homem passou a ser concebido principalmente como uma obra divina de
um ser onipotente. Desta maneira, a autonomia socrática foi deixada de lado em função da
devoção cristã. O contexto formado pelo cristianismo sugeriu ser muito mais importante
louvar um deus uno do que prender-se aos valores efêmeros da vida cotidiana, "tão sem
sentido, se sem a apreensão do divino". As duas principais fontes desta filosofia foram, de
fato, a leitura da Bíblia e a influência neoplatônica.
12
Nesta época, o homem já era concebido conforme o dualismo platônico: teríamos de
um lado, o corpo, e de outro, a alma. Esta concepção permaneceu por muitos séculos, pois
muito tinha a ver com a concepção cristã, na qual teríamos um corpo finito e limitado, e uma
alma infinita e imortal (para a qual, inclusive, estaria reservada uma vida póstuma e eterna). A
imortalidade da alma tem relação direta com o cristianismo, pois esta doutrina também prega
a existência de um Reino dos Céus, tal como Platão afirma a existência de um Mundo das
Idéias, perfeitas e imutáveis. A produção antropológica neste milênio esteve totalmente
relacionada à Igreja Católica, visto que toda pesquisa e investigação de cunho científico e
epistemológico foram controladas pela mesma. Cassirer faz observações um tanto negativas
com relação à concepção antropológica da religião (refere-se aqui à religião enquanto tal, e
não somente ao catolicismo):
O homem não pode ter confiança em si mesmo e ouvir-se. Deve silenciar-se para
poder ouvir uma voz mais alta e mais verdadeira. (...) O que se apresenta aqui não
pretende ser uma solução teórica do problema do homem. A religião não pode
proporcionar essa solução (...), o que ela relata é uma história obscura e sombria: a
história do pecado e da queda do homem. (...) É uma lógica do absurdo, pois só
assim pode apreender o absurdo, a contradição interna, o ser quimérico do homem.
4
Quando fala do "absurdo apreendido", refere-se à apreensão de um deus oculto que silencia a
autonomia humana. Trata-se de uma crítica à religião quando posta em frente à análise lógica
da filosofia, mas não de sua função primária, que é responder a anseios metafísicos.
Trataremos disso adiante, no tópico referente à concepção mítico-religiosa do homem.
A partir do Século XVI, época que costumamos chamar de Renascimento, algumas
concepções dos filósofos clássicos ? inclusive a cosmologia ? foram remontadas e
reconsideradas, na busca por novas reflexões. O infinito, por exemplo, que para os antigos
representava o inacessível para o pensamento limitado do homem, ganhou um aspecto
positivo na obra de Giordano Bruno (1548-1600), que fala da possibilidade de pensar no
infinito como um poder irrestrito do intelecto humano. É a Razão, subindo degraus através da
História.
Com René Descartes (1596-1660), há o resgate do conceito de logos, que determinara
o homem como animal racional entre os antigos, e na abordagem cartesiana, o ser humano
reconquistou uma autonomia que havia perdido há séculos, desde os antigos gregos. Com o
4 CASSIRER, 2005, p. 26-27.
13
conceito de cogito (o "eu penso"), o homem estava novamente na posição de decidir por seu
próprio destino, sem a necessidade de preocupar-se somente com a matriz divina. A partir de
então, a teoria geral do homem se converteu em observações empíricas e em princípios
lógicos gerais. As ciências matemáticas evoluíam, e tudo parecia poder ser mensurado. A
época era de fertilidade para variados campos do conhecimento: as ciências passaram por
grandes revoluções, e novas pesquisas se fundaram; a Igreja perdia aos poucos seu elevado
trono, e com isso, várias manifestações artísticas e científicas puderam recuperar sua
autonomia. A Revolução Copernicana retirou a Terra do centro do universo, e tendo liberdade
para transcender antigas amarras através do conhecimento científico, o homem tomou este
lugar para si. Esta foi a dita Era das Luzes, do Esclarecimento, convertida em medidas
mecanicistas por homens que viram nas ciências um destino antropocêntrico.
A crença exacerbada na mensurabilidade das matemáticas só perdeu sua força no
Século XIX, com o avanço das ciências biológicas. Em 1859, Charles Darwin (1809-1882)
publica A Origem das Espécies, e em 1871, A Origem do Homem, obras que contribuíram
para que as matemáticas perdessem força para os estudos empíricos. Estas foram obras
essenciais para a concepção de que entre as espécies animais há uma ligação contínua, e que o
homem é parte desta continuidade. Este aspecto foi de grande influência para o pensamento
antropológico, pois pensar no homem como parte da natureza foi essencial para uma
superação do pensamento iluminista (se é que este paradigma realmente fora abandonado).
O homem, como os outros animais, pode adaptar-se ao meio ambiente em que vive,
porém, a adaptação humana tem uma diferença essencial, não se trata somente de expoentes
orgânicos. O homem é capaz de criar técnicas para superar momentos críticos e continuar
vivendo, mesmo nos ambientes mais inóspitos. Esta capacidade de formular técnicas consiste,
então, no princípio da constituição da própria cultura humana. Conforme Cassirer:
É o mesmo círculo férreo de necessidade que encerra tanto a nossa vida física como
a cultural. Em seus sentimentos, suas inclinações, suas idéias, seus pensamentos e
sua produção de obras de arte, o homem nunca rompe esse círculo mágico.
Podemos considerar o homem como um animal de espécie superior que produz
filosofias e poemas do mesmo modo que o bicho-da-seda produz seus casulos ou as
abelhas constroem suas celas.5
A partir disso, podemos pensar que o homem é, ao mesmo tempo, um ser natural e
cultural. Pode adaptar-se organicamente, mas também é capaz de transcender ao orgânico e
5 CASSIRER, 2005, p. 39
14
criar, conforme princípios definidos por pura liberdade e autonomia, novas condições para seu
viver. Trataremos desta questão em mais detalhes no capítulo seguinte.
Ainda com relação à filosofia moderna, parece necessário citar aqui um grande
expoente do idealismo alemão, Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Este filósofo
abordou os aspectos culturais do homem conforme nenhum outro havia feito antes, partindo
da idéia de que as produções humanas seriam superiores às produções da própria natureza,
pois no homem há um princípio espiritual que inexiste no restante do mundo natural. Trata-se
de uma abordagem bastante complexa, a qual não poderemos nos ater por longos parágrafos,
embora seja importante registrá-la no presente histórico.
A filosofia contemporânea é um pouco diferente das fases anteriores da filosofia, e o
mesmo se dá no pensamento antropológico. Ao invés de termos uma abrangente corrente de
pensamento, de forte influência ? como tivemos a abordagem teológica na Idade Média, ou a
abordagem epistemológica na Idade Moderna ?, temos a crescente fragmentação das ciências
e também das outras formas de conhecimento.
Pensadores como Friedrich Nietzsche (1844-1900), Jean-Paul Sartre (1905-1980) e
Martin Heidegger (1889-1976) nos trouxeram importantes abordagens a respeito da existência
humana, depositando nela mesma o principal fator da essência da Humanidade: na existência,
nas ações, nas decisões, o homem encontra seu Ser, aquilo que faz dele um ser humano.
Perante tal concepção, o homem torna-se plenamente livre e autônomo, e além disso,
responsável. A partir de uma concepção como esta, podemos observar uma grande
valorização do homem enquanto pessoa individual, responsável pelo mundo que constrói.
Partindo disso, podemos dizer que o pensamento filosófico não perdeu a característica
antropocêntrica adquirida na modernidade, mas converteu-se em uma espécie de
individualismo.
Tal individualismo está refletido na sociedade do Século XX, e também na produção
filosófica: a contemporaneidade não nos trouxe mais filosofias sistêmicas, como Aristóteles,
Kant e Hegel; ao invés disso, temos várias linhas entrecortadas, onde não há unicidade,
apenas fragmentação, incluindo várias tentativas de resgate ou mescla de concepções de
autores clássicos à novas perspectivas. Nisso, "fragmentação" talvez seja uma boa palavrachave
para resumir as tendências do Século XX. Poderíamos citar uma longa lista de escolas e
suas ramificações, mas parece-nos mais cabível fazer uma pequena citação do texto de Max
Scheler (1874-1928), A Posição do Homem no Cosmos (1928), o qual é de grande
15
importância para a Antropologia Filosófica, e mesmo sendo uma obra do início do século,
sintetiza muito bem suas características:
(...) possuímos umas antropologia científico-natural, uma antropologia filosófica e
uma teológica que não se preocupam umas com as outras. Mas não possuímos uma
idéia uma de homem. Além disto, por mais valiosas que possam ser a pluralidade
sempre crescente das ciências especiais que se ocupam com o homem sempre
encobre a essência do homem muito mais do que a ilumina. De mais a mais, se
levarmos em conta que estas esferas tradicionais de idéias (...) estão amplamente
abaladas (...), [e] pode-se dizer que em tempo algum da história o homem se tornou
tão problemático quanto no presente. 6
Cassirer se utiliza exatamente desta citação em sua obra, e segue com a seguinte
conclusão:
Tal é a estranha situação que se encontra a filosofia (...). Nenhuma época passada
esteve em posição tão favorável com relação às fontes do nosso conhecimento da
natureza humana. A psicologia, a etnologia, a antropologia e a história acumularam
um corpo de fatos espantosamente ricos e em constante crescimento. Nossos
instrumentos técnicos para a observação e a experimentação foram imensamente
aperfeiçoados, e nossas análises tornaram-se mais aguçadas e mais penetrantes.
Mesmo assim, aparentemente não encontramos ainda um método para o domínio e
a organização desse material. Comparado à nossa própria abundância, o passado
deve parecer muito pobre. Nossa riqueza de fatos, contudo, não é necessariamente
uma riqueza de pensamentos. A menos que consigamos achar um fio (...) que nos
conduza para fora deste labirinto, não teremos qualquer compreensão real do
caráter geral da cultura humana; continuaremos perdidos em uma massa de dados
desconexos e desintegrados que parecem carecer de toda unidade conceitual.7
Estas palavras resumem, de certa forma, o modo como a investigação antropológica se
deu a partir do Século XX. A quantidade de pesquisas realizadas desde então não contribuiu
para uma concepção una do homem enquanto tal, mas apresentou, uma por uma e cada vez
mais, divisões contrastantes provindas da metodologia utilizada por cada ciência em que o
homem é objeto de pesquisa. Como os próprios Scheler e Cassirer observaram nas citações
acima, temos muitos estudos em Antropologia, Etnologia, Psicologia, Biologia, e na própria
Filosofia, em que se assumem posições que, se fossem comparadas, estariam sujeitas à
contradição e precisaríamos escolher na qual considerar por verdadeira.
É muito difícil responder pelas reais necessidades da Antropologia, pois estamos
diante de um ser aberto e inconstante, o homem. Podemos nos perguntar: necessitamos de
uma abordagem biológica? Necessitamos, sim. E de uma abordagem psicológica, ou
6 SCHELER, 2003, p. 5-6.
7 CASSIRER, 2005, p. 42-43.
16
etnológica? Mais uma vez, teremos a resposta afirmativa. Mas a questão aqui é que estamos
diante de uma pesquisa em Antropologia Filosófica, prontos para abordar o homem em seu
caráter simbólico. A partir disto, podemos dizer com segurança que o destino e o potencial do
homem não está prestes a ser totalmente desvendado, e além do mais, estamos completamente
alheios a tal coisa. Pois, por sim ou por não, um pouco é possível desvendar do homem, mas
nunca plenamente. Mas esta pesquisa se dá a partir de uma crença, sim, uma crença,
justificada na idéia de que o conceito de animal symbolicum contribui muito para
entendermos a natureza do homem em sua forma de entender o mundo, através de formas
simbólicas que ele mesmo produz e partilha com a sociedade. Nos capítulos seguintes, este
caráter humano será especulado com maior profundidade, até que possamos chegar a algumas
considerações de caráter mais conclusivo, mas não absolutas.
17
2. O HOMEM, SER DE NATUREZA E CULTURA
2.1 O potencial de cada espécie
Todos os animais são diferentes entre si. E essas diferenças não são meramente físicas,
mas são vários os fatores análogos que implicam diferenças entre os mais variados animais.
Porém, podemos dizer com segurança que há alguns fatores que fazem com que seja possível
que todo o reino animal seja comparado em termos.
O primeiro ponto a considerar pode ser o caráter instintivo dos animais. Todos eles
buscam a autoconservação e preservação, e não somente deles enquanto indivíduos, mas
tendo em vista o bem da própria espécie. Um macaco, por exemplo, jamais esconderia do seu
grupo um local onde há abundância em comida, ou um abrigo muito propício para sua
proteção no inverno. Sua natureza não lhe permite tal isolamento, nem a atitude de tirar
proveito de um bem em potencial unicamente para si.
Outro fator fundamental e que concerne a quase todos os animais ? desta vez e mais
uma vez, precisaremos excluir imediatamente o homem ? é que todos eles podem alcançar,
um por um e em pouco tempo, toda a potencialidade da espécie. Quer dizer, se temos um gato
que nasceu há poucos dias, por exemplo, podemos observar que ele ainda não sabe lidar com
algumas situações; mas como seu instinto está presente desde o início da vida, dia após dia ele
irá se aperfeiçoar, até que, de fato, atinja todo o potencial possível para um gato, e este
potencial a maior parte dos gatos atinge. O potencial instintivo dos animais corresponde a
uma evolução individual, e que por sua vez tem um limite. Dadas suas necessidades, tanto os
gatos quanto as corujas agem conforme suas situações-limite, buscando saciar pulsões que são
iguais ou semelhantes à pulsões anteriores, individuais ou da espécie.
Ao falarmos do homem, não podemos falar em um "potencial humano", pois sequer
sabemos qual seria tal potencial absoluto. Pois neste caso, teríamos muitas possibilidades e,
por conseguinte, um potencial imensurável (e não podemos dizer se tal coisa é positiva ou
negativa): os homens são capazes de escolha, e podem formar um gosto subjetivo,
independente de princípios relativos à espécie como um todo; além disso, necessidades
básicas podem ser persuadidas por novas necessidades; um homem pode, por exemplo,
preferir fazer um bolo de laranja a simplesmente comer a laranja; enquanto isso, podemos ter
18
homens que gostam de laranja, mas não gostam de bolo de laranja, e outros que criam
necessidades maiores, como comer o bolo com uma espessa cobertura de chocolate meioamargo,
ou estar recheado de nozes e outros grãos. O potencial da espécie humana não pode
ser visualizado claramente, o único potencial que podemos inferir é que conforme a vida
social do homem evolui, novas necessidades são elucidadas, e quando nos damos conta, não
temos mais homens andando a pé, mas principalmente a bordo de veículos futurísticos que lhe
garantem um deslocamento mais veloz ? necessidade que também foi incorporada à vida
social dos dias atuais. O homem pode ser engolido pelas técnicas que ele mesmo criou.
Conforme Immanuel Kant (1724-1804) aponta em sua obra Idéia de uma História
Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita,
(...) um homem precisa ter uma vida desmensuradamente longa a fim de aprender a
fazer uso pleno de todas as suas disposições naturais; ou, se a natureza concedeulhe
somente um curto tempo de vida (como efetivamente aconteceu), ela necessita
de uma série talvez indefinida de gerações que transmitam umas às outras suas
luzes para finalmente conduzir, em nossa espécie, o germe da natureza àquele grau
de desenvolvimento que é completamente adequado ao seu propósito. 8
Sobre tal propósito, não podemos ter plena certeza do que se trata. O que Kant afirmou
a respeito do potencial da espécie, é que o ser humano não é capaz de atingi-lo naturalmente
(muito embora seja a natureza que o impulsione para o melhor9), mas somente através da
cultura, ou seja, o aperfeiçoamento do homem depende de sua evolução civilizatória. Isto se
este potencial realmente fosse alcançado.
Em outras palavras, tal desenvolvimento só seria possível na espécie, e não no
indivíduo, pois as possibilidades são muitas e um ser humano não seria capaz de
simplesmente esgotá-las; sua vida é curta demais para tal empreendimento. Este potencial
seria algo superior ao que ocorre nos animais ? como sugerimos antes, seria uma
transcendência às possibilidades orgânicas. Kant aponta que este potencial seria alcançado em
uma sociedade que administrasse com perfeição o direito ? mas, conforme podemos observar
8 KANT, 2003, p. 6
9 Segundo palavras de Kant, "A natureza não faz verdadeiramente nada supérfluo e não é perdulária no
uso dos meios para atingir seus fins. Tendo dado ao homem a razão e a liberdade da vontade que nela se funda,
a natureza forneceu um claro indício de seu propósito, quanto à maneira de dotá-lo. Ele não deveria ser guiado
pelo instinto, ou ser provido e ensinado pelo conhecimento inato; ele deveria, antes, tirar tudo de si mesmo"
(KANT, 2003, p. 6-7). Aqui, o pensador demonstra uma credibilidade na autonomia criadora do ser humano,
porém atribuindo esta à própria natureza. É importante pontuar que a posição que assumimos nesta pesquisa
também corresponde a estas considerações.
19
em exemplos empíricos isolados, isto não aconteceu, talvez nem aconteça. Temos muitas
nações e culturas que possuem noções diferenciadas e contraditórias sobre a justiça, e não
poderíamos citar um exemplo aqui, afirmando que tal potencial fora atingido.
Portanto, assumimos a posição de que os animais possuem um destino determinado,
tanto individual quanto coletivo10 . Mas quando falamos no ser humano, é muito difícil
falarmos sobre a relação indivíduo-sociedade, e muito mais sobre um "potencial da espécie" ?
pois no homem temos muitas questões envolvidas, que não concernem somente aos instintos,
mas a concepções de mundo, anseios sobre o futuro, apreços e desapreços, crenças
metafísicas, história e memória, ciência e razão, amor e emoção. Há, entre diferentes homens
? o que não há entre diferentes gatos ? uma imensa discórdia provida de crenças pessoais e
análogas. Cassirer faz um oportuno comentário a respeito: "A contradição é o próprio
elemento da existência humana. O homem não tem uma ?natureza?, um ser simples ou
homogêneo. Ele é uma estranha mistura de ser e não-ser. O lugar dele é entre estes dois
pólos opostos"11. Este comentário diz a respeito do homem universal, e consiste em uma
afirmação muito significativa para a Antropologia Filosófica. Quando falamos que o ser
humano não pode ser considerado um ser "homogêneo", estamos explicitando dúvidas que
possuímos a respeito de sua natureza e seus modos de ser.
O homem tem liberdade de escolha e isto lhe proporciona dúvida, pois não pode negar
sua liberdade de escolha, precisa decidir. Isto lhe concerne uma definição de indeterminação,
e por mais contraditório que seja isto, parece-nos ser o mais próximo que conseguiríamos
chegar ao tentar definir o homem em termos simples. A condição de escolha que é inerente ao
homem ? a liberdade ? permitiu que ele fizesse intermináveis buscas por sentidos e
significados, que pudessem saciar seus anseios pelo mistério da raça humana enquanto
espécie. Com isso surgiram os primeiros mitos e crenças religiosas, obras de arte e
manifestações relacionadas a tais crenças, na perspectiva de justificar as buscas infindáveis do
ser humano.
10 Tal destino ou potencial refere-se a espécies isoladas, sem considerar suas possibilidades evolutivas,
que se dão em um prazo de milhares de anos. Mas quando dizemos que tais animais possuem um "destino
determinado", estamos nos referindo às possibilidades orgânicas de sua forma atual.
11 CASSIRER, 2005, p. 26.
20
2.2. O que a natureza faz do homem
Podemos dizer que o poder deliberativo da escolha tornou o homem dono de seu
destino; diferente dos outros animais, ele pôde transcender à sua própria estrutura orgânica,
enquanto totalidade física e biológica, ao fundamentar idéias e técnicas que, antes de tudo,
vieram a ser de utilidade para o seu cotidiano. Os antigos povos nômades construíram as
primeiras ferramentas que lhe auxiliaram para a caça e a pesca. Em tempos posteriores, com o
surgimento da agricultura, houve o primeiro indício de que o homem também seria capaz de
"controlar" e prever certos fenômenos naturais, através da observação repetitiva dos mesmos.
Com isso, pequenos grupos foram capazes de permanecer num único lugar, abandonando a
vida nômade e utilizando cavernas como moradia, e mais tarde, construindo os primeiros
redutos da cultura humana.
Esses primeiros passos da cultura construída pelo homem servem como um bom
exemplo para nos lançarmos sobre a questão da natureza do homem: se o homem é capaz de
cultura, podemos reduzir este imenso poder criador ao conceito de "natureza", ao mesmo
conceito que aplicamos aos outros animais? Pareceria estranho. Por isso, é importante que
pelo menos possamos especular um pouco mais sobre tal assunto. Na obra Antropologia
Filosófica, Edvino Rabuske faz conceituações interessantes sobre a natureza enquanto tal. A
seguinte passagem pode ser de utilidade para refletirmos:
A natureza dum ente é a sua essência enquanto considerada como o fundamento
interno e a norma do seu agir; (...) é a totalidade dos entes sujeitos ao devir; (...) é a
região dos seres que se desenvolvem de modo inconsciente, segundo processos
físico-químicos, impulsos vitais e esquemas instintivos. Aqui a "natureza" se opõe
à cultura, ao espírito, à liberdade. 12
Então, se a natureza é a "essência" de um ente, só poderíamos concluir que a essência
do homem é produzir cultura. Mas a natureza também existe em nível atômico ? ou seja, os
átomos e partículas subatômicas que integram o homem, estes também são parte de sua
natureza ?, e antes que o homem possa fazer qualquer coisa, ela já está lá, existindo. É uma
condição pré-existencial, inclusive. Se temos um homem, temos também sua composição
física, química e biológica; poderíamos dizer que o conjunto de partículas que integra o
12 RABUSKE, 1986, p. 55.
21
homem tem um potencial de indeterminação plena, tal qual o ser humano? Sua natureza
cultural transcende à esta questão; é algo bastante complicado de ser discutido.
Estamos diante de um ser bastante complexo, que produz artefatos que nada têm a ver
com o mundo natural, e que exprime pensamentos que, de tão metafísicos, isto é, conceituais,
de forma alguma poderiam ter relação com a natureza. Mas esta é uma questão impossível de
transcender. Nos resta pensar no homem como um ser que é cultural por natureza, mesmo que
tal conclusão pareça redundante e não nos esclareça muito sobre sua real essência, se é que
poderíamos definir uma "essência" para este estranho animal. A instância cultural é a única
capaz de determinar o homem sob certas condições, e tal instância é de responsabilidade total
do homem. Ele a produz, ele a reproduz.
Em linhas gerais, podemos dizer que entendemos a cultura aqui como "a mochila
artesanal onde o homem deposita sua bagagem", ou seja, um complexo criado por ele próprio,
com uma estrutura própria, que é moldada e enriquecida por suas produções ao decorrer da
história. Neste fazer e neste situar-se, está localizada a essência do homem, o princípio que
constitui seu ser. Enquanto aranhas tecem suas teias e pássaros constróem seus ninhos, os
homens erguem cidades e produzem veículos; porém, ao mesmo tempo, formam conceitos,
crenças e hábitos que não possuem somente aspectos de utilidade prática. Mesmo assim,
tratam-se de produções humanas naturais, de valor simbólico e, conseqüentemente, cultural.
Além disso, ainda temos outros aspectos a discutir, talvez até mais importantes.
Estamos falando sobre as formas de representação do homem. Pois o homem possui, desde os
tempos antigos, uma profunda inquietação interna, que como já foi dito em parágrafos
anteriores, lhe afasta da tranqüilidade comum aos outros animais. Tal inquietação lhe
impulsiona, mais uma vez, para o mundo da cultura: desde seu princípio fundamenta teorias
sobre a origem dos fenômenos naturais ? e normalmente não se contenta com teorias
primeiras; continua a estudar o meio ambiente, em diversas perspectivas, a fim de conhecer
(ou pelo menos se aproximar de) seus princípios, sua "natureza". E por fim, estuda até a si
mesmo, buscando na história e na memória dos povos que já andaram pelo mundo, fatos
importantes a serem relembrados.
A presente pesquisa pode servir de exemplo. Estamos dialogando sobre o homem,
revendo alguns conceitos, tentando buscar definições que lhe possam servir. É um processo
de autoconhecimento, já que se trata de uma pesquisa que travará contato somente com seres
humanos (visto que outros animais jamais poderiam entender suas razões!). Porém, seria
22
difícil dizer que, após ler uma pesquisa como esta ou a própria, estaríamos mais cientes de
nosso destino enquanto seres humanos. Talvez as obras de arte possam proporcionar tal
sentimento, mas não um estudo de cunho científico; poderíamos formular muitas páginas e
discursos intermináveis sobre o potencial do homem e seu destino, mas jamais poderíamos
concluir tal investigação. Não podemos esquecer, estamos diante de um ser aberto.
Talvez aqui a reflexão esteja ficando um pouco tensa, devido à intensa especulação,
sem conclusão. Por isso, vamos citar uma passagem de Cassirer, relativa à produção do
homem em suas diversas possibilidades:
A característica destacada do homem, sua marca distintiva, não é a sua natureza
metafísica ou física, mas o seu trabalho. É este trabalho, o sistema das atividades
humanas, que define e determina o círculo da "humanidade". Linguagem, mito,
religião, arte, ciência e história são os constituintes, os vários setores desse círculo.
Uma "filosofia do homem" seria portanto uma filosofia que nos proporcionasse
uma compreensão da estrutura fundamental de cada uma dessas atividades
humanas, e que ao mesmo tempo nos permitisse entendê-las como um todo
orgânico. 13
Cassirer aponta para o fato de que o principal fator da "humanidade" não está somente
em fatores orgânicos e racionais. Tal fator estaria inserido nas produções da cultura humana.
Não basicamente as produções materiais, ou seja, as grandes cidades e seus ônibus enormes,
mesmo grandiosas amostras do que o ser humano é capaz, jamais poderão resumir ou
responder do que se trata este animal, o homem; tal coisa também não poderia ser resumida
através de crenças metafísicas, pois esta produção também não exprime a totalidade do
homem, somente seus anseios. Ao falar em um "todo orgânico", o autor busca uma idéia
unificada das representações simbólicas da humanidade, e afirma que a partir desta união
poderíamos construir uma antropologia verdadeira. Por isso, temos linguagem, religião, arte,
ciência e história: não são somente produções humanas, mas instâncias por onde a
humanidade se situa. Tais representações estão presentes em todos os povos, e também são
formas simbólicas de entender o mundo em que vivemos.
Ao falarmos no que se concebe por "mundo" na visão de um animal, temos um
universo que, segundo Cassirer, é intransferível. Cada espécie tem um mundo só seu, pois tem
uma experiência só sua. Isto quer dizer que, diretamente, no mundo de um gato, só existem
"coisas de gato", enquanto que no mundo de uma mosca, só podem existir "coisas de mosca".
Cassirer cita o biólogo Johannes von Uexküll (1864-1944) ao descrever tal idéia em seu
Ensaio sobre o Homem, mas é evidente que esta reflexão também possui uma influência
13 CASSIRER, 2005, p. 115.
23
kantiana. Kant concebia a compreensão de "mundo" conforme as condições de possibilidade
do entendimento humano, ou seja, o mundo enquanto tal não seria o mais importante a se
considerar, mas sim aquilo que se concebe dele; perante isto, o mundo de um ser humano e o
mundo de um gato se tornam incomensuráveis. E este fato não trata as espécies de forma
hierárquica, só aponta uma inabalável diferença estrutural entre ambos. Enquanto os animais
vivem o eterno presente do mundo que lhes toca, o homem problematiza suas condições, e
além disso, tem consciência de suas problematizações. O grande exemplo está na própria
fundamentação da Filosofia, que principia a partir da problematização de conceitos, condições
e concepções humanas.
Quando pensamos na natureza do homem e a que fatos podemos relacionar aos demais
animais, parece-nos adequado afirmar que ambos possuem instintos e uma inteligência
prática. Trata-se de um círculo funcional, que recebe estímulos externos, tais como a fome e o
frio, e reage a eles, de forma que tais estímulos possam ser saciados, extinguidos, de forma
que só reste a tranqüilidade do viver. Esta característica, é claro, só corresponde aos animais
ditos "inferiores". O homem não é capaz de desfrutar desta tranqüilidade, pois em seu
entendimento há a representação, e ela impede que ele simplesmente sinta o calor da vida
circulando por sua corrente sangüínea, sem conceito. O homem é um ser inquieto que tem
necessidade de saber como e por que este sangue ainda circula. É exatamente por isto que o
bel-prazer comum aos demais animais jamais poderá fazer parte do mundo humano. Em
outras palavras, o homem é homem enquanto tal, porque se coloca a si próprio como
problema e tem consciência de posicionar-se desta forma. Segundo Cassirer,
(...) no mundo humano encontramos uma característica nova que parece ser a marca
distintiva da vida humana. O círculo funcional do homem não é só
quantitativamente maior; passou também por uma mudança qualitativa. O homem
descobriu, por assim dizer, um novo método para adaptar-se ao seu ambiente. Entre
o sistema receptor e o efetuador, que são encontrados em todas as espécies animais,
observamos no homem um terceiro elo que podemos descrever como sistema
simbólico. 14
A terminologia utilizada pelo autor, quanto ao "sistema receptor" e ao "sistema
efetuador" correspondem a conceitos utilizados por Uexküll, resgatados para a função de
propor este terceiro elo, o "sistema simbólico". Este terceiro elo consiste em um atraso em
relação aos dois anteriores, pois enquanto para os animais, uma resposta direta e imediata é
14 CASSIRER, 2005, p. 47.
24
dada a um estímulo externo, no homem temos este simples processo interrompido por um
lento e complexo processo de pensamento. Talvez este transcender da vida orgânica não torne
o homem um animal superior, mas de certa forma, um ser atrasado, preso a uma condição de
pensar somente através de conceitos simbólicos, incapaz de pensar nas coisas mesmas ? um
verdadeiro círculo vicioso.
Nestes termos, teríamos um estímulo sensível (sistema receptor) e uma ação
direcionada ao estímulo (sistema efetuador). Por exemplo, o gato vê um rato passando no
fundo do quintal, isto lhe desperta a fome, e ele corre atrás do rato. Nos seres humanos, este
esquema não seria simplesmente seguido de um processo posterior a estes dois, mas em uma
aliança que cobre a estes dois primeiros processos, como um complemento, que dá origem a
idéias e conceitos simbólicos (sistema simbólico). Este terceiro elo torna o homem capaz de
refletir a respeito do próprio processo.
Para finalizar este tópico, precisaríamos, ao menos, conceitualizar a diferença
essencial entre natureza e cultura, e como se dá essa diferença. Falando resumidamente, após
todos os fatores abordados anteriormente, podemos citar uma passagem do autor Battista
Mondin (1926- ), de seu livro O homem, quem é ele?, onde há uma passagem onde tal
diferença fica bem explícita:
(...) a cultura é tudo que o homem adquire, ou produz com o uso de suas faculdades:
todo o conjunto do saber e do fazer, ou seja, da ciência e da técnica, e tudo o que
com o seu saber e com o seu fazer extrai da natureza. Em outras palavras: a natureza
é o dado originário que foi posto à disposição do homem; ao contrário, a cultura é
tudo que o homem extrai desse dado original, mediante sua iniciativa. (...) Em tal
perspectiva, a cultura torna-se extensão da natureza. 15
Portanto, uma coisa que podemos considerar por verdadeira é que a natureza humana
possui um intrínseco processo de "fazer cultura" como uma forma de adaptação às
necessidades humanas, uma vez que tais necessidades não estão determinadas para a espécie,
como nas demais. O homem também é capaz de criar novas necessidades e condições para
sua vida, e talvez isso possa parecer um tanto negativo, já que ele estará trabalhando para
suprir necessidades criadas por ele mesmo. Parece um processo cíclico e sem fim, que avança
conforme a "evolução" do homem e da sociedade.
Como já foi dito anteriormente, estamos diante de um ser bastante estranho, muito
difícil de entender. Isto também corresponde à sua natureza; e talvez seja um princípio
15 MONDIN, 2003, p. 178
25
essencial para que possamos entendê-lo: a natureza do homem está também em estranhar a
sua própria natureza. Talvez porque pense que este estranhamento seja também um
"desvelamento", que o impulsione à "evolução" das concepções (e isto também corresponde a
um princípio importante para o próprio pensar filosófico); ou então, talvez por não poder
saciar seus impulsos por completo, e necessitar de novos impulsos, que diminuam o vazio
existencial que surge diante do homem quando nada se tem para fazer ou pensar. O homem é
um ser inquieto por natureza e essência (e quanto a estes dois conceitos, ambos possuem uma
intrínseca relação com a cultura ou com o "criar cultura" no ser humano).
2.3. O homem, ser cultural (ou o que o homem faz com a natureza)
Conforme vimos nos parágrafos acima, sempre que tentamos falar na natureza do
homem, é à cultura que recorremos. Afinal, é uma característica essencial da natureza
humana, e sem falar da mesma não estaríamos falando no homem propriamente dito ? e como
nos referimos anteriormente, em Kant isto fica bastante claro, embora o autor se refira mais à
liberdade humana do que propriamente a cultura. Mas é importante apontar a idéia de que é a
natureza que dá condições para que o homem "utilize sua razão" (conforme Kant), ou então
para que fundamente símbolos com significados funcionais (conforme Cassirer). Podemos
dizer que o homem é o único animal que não consegue viver em grupo unicamente porque
viver em grupo será algo útil e proveitoso. De toda e qualquer união que homens
participarem, instâncias culturais nascerão. É inevitável, onde está o homem está também este
seu princípio cultural.
Mas é necessário que analisemos o conceito de "cultura" sob diversas perspectivas;
para isto, partiremos de mais uma citação de Rabuske:
Cultura é a transformação que o homem, consciente e livremente, realiza na
natureza. (...) O homem não vive na imediatidade da natureza, ligado ao meioambiente,
direcionado por instintos seguros; somente sobrevive, compensando a
insegurança instintiva pela criação da cultura. (...) A cultura é produção e produto ?
é atividade de cultivar e o resultado desta atividade. O homem cria, baseando-se no
que já foi criado, num processo histórico interminável. 16
16 RABUSKE, 1986, p. 49.
26
É interessante esta designação de cultura enquanto "produção e produto", pois reflete o
aspecto criador do ser humano. O homem é artífice de si mesmo, pois ele próprio fundamenta
os meios do mundo em que vive, e tais técnicas e costumes permanecerão como elementos
característicos de um povo em questão por muitas gerações ? embora o processo de renovação
da cultura também seja interminável.
Na obra Antropologia ? uma teoria da evolução cultural, de Danilo Lazzarotto, há
passagens bastante interessantes, as quais tomaremos em consideração algumas partes
importantes:
Os Antropólogos definem a cultura como a herança social de uma comunidade
humana, representada pelo acervo cooparticipado de modos estandartizados de
adaptação à natureza para o provimento da subsistência, de normas e instituições
reguladoras das relações sociais e de corpos de saber, de valores e de crenças com
que explicam sua experiência, exprimem sua criatividade artística e se motivam
para a ação (...) Mediante a integração destes corpos de tradição é que os homens se
humanizam. Ao mesmo tempo se incorporam a uma comunidade étnica ao
aprenderem sua língua, a fazer as coisas de acordo com certas técnicas, a
comportar-se segundo normas estereotipadas e, finalmente, a viver de acordo com
certos usos e costumes.17
Esta é uma abordagem mais voltada à convivência pacífica entre os homens de uma mesma
cultura. É necessário também pensarmos no homem não somente enquanto indivíduo, mas
como parte de um povo, de um "corpo de tradição". Pois enquanto temos a cultura no sentido
de condição básica do agir humano, também temos as diversas culturas que foram
fundamentadas pelos povos. Trata-se de um conjunto de costumes, leis, padrões de gosto e
estereótipos próprios realizados em um processo civilizatório onde cultura e história se
entrelaçam.
É comum que um povo seja alheio a outro, pois cada cultura se formou a partir de
condições únicas e muito arbitrárias, que envolvem desde o meio de convivência até a
maneira como foram surgindo idéias e teorias que fundaram os principais costumes de cada
povo. Assim, quando um homem cresce cercado por verdades correspondentes a uma cultura
em especial, é praticamente comum que ele nutra certo preconceito por culturas alheias à sua,
que responde por verdades distintas e outros modos de viver. Tal preconceito parece nascer
por meio de uma discriminação não muito apurada a respeito dos costumes (ou seja, não há
reflexão a respeito de sua construção histórica e cultural).
17 LAZZAROTTO, 1976, p. 9.
27
Porém, há uma intensa luta dos antropólogos contra este tipo de preconceito, o
etnocentrismo. A posição que assumimos aqui, é claro, também vai contra esta idéia, pois
parece mais sensato defender a posição de que as diversas culturas devem ser vistas como
dignas de um mesmo valor, quer dizer, de que as criações culturais de uma cultura não são
mais genuínas e verdadeiras que as de outra cultura. Não faz sentido compararmos uma
cultura à outra, visto que nossa própria cultura sempre parecerá ter valores mais profundos e
corretos, enquanto que outros povos serão vistos como selvagens e imorais. Tal consideração
não tem fundamento, defender o etnocentrismo é não ter noção das limitações de sua própria
cultura, é uma posição, antes de qualquer coisa, ignorante.
Muitas pessoas partilham desta concepção por inocência ou ignorância, mas ainda há
outras que defendem a superioridade de um povo por puro preconceito. Porém, podemos
sugerir que mais importante que comparar qual cultura é mais ou menos forte talvez seja
oportuno refletir sobre quais aspectos basilares podem unir ou aproximar as diferenças entre
elas18. O estudo da antropologia se propõe a quebrar estas barreiras e pensar de forma mais
aberta em relação às culturas alheias: o que temos são manifestações diferenciadas e distantes,
e seu real valor está no impulso humano de criação cultural.
Também é importante considerarmos que, mesmo sendo parte de uma cultura, um
indivíduo pode ainda distanciar-se dela, criticá-la, incorporar ao seu modo de vida elementos
de outras culturas. Nos dias atuais, é muito comum que uma pessoa de um país de religião
cristã, por exemplo, se converta ao budismo ou ao hinduísmo, ou vice-versa. Assumimos o
ponto de vista de que tal coisa é de aspecto muito positivo e que contribui para que entre os
diferenciais culturais só haja um curto estranhamento, seguido pela compreensão e o
entendimento.
A natureza cultural do ser humano não quer dizer simplesmente que ele esteja
entregue a um determinismo cultural. A cultura é um meio social que também condiciona o
homem a pensar e agir através de hábitos e costumes pertencentes ao seu processo
civilizatório, resultado do trabalho de um povo; porém, a liberdade humana pode se sobrepor
à própria cultura, quer dizer, o homem enquanto indivíduo autônomo pode estar consciente de
que ele mesmo, em si, é uma coisa, e a cultura a qual pertence é outra coisa, é externa a ele, e
18 O antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-) propõe pensarmos que, independente de que cultura
estivermos nos referindo, ela faz parte de uma estrutura comum a todas as culturas. Isso quer dizer,
resumidamente, que elas não podem ser hierarquizadas, pois a produção cultural está na natureza humana como
uma matriz, uma essência ? esta, estrutural por si mesma.
28
mesmo que esta defina alguns aspectos essenciais de seu viver, ele pode pensar sobre ela,
discordar, até mesmo contrariá-la.
Perante aspectos como os vistos acima, podemos pensar que o ser humano é um ser
tão aberto e indeterminado, que nem mesmo sua cultura-mãe pode fechar suas portas e sua
mente. O mundo da cultura é tão admirável quanto o mundo da natureza, mesmo que o
primeiro seja construído artificialmente; e o homem, morador destes dois mundos, distintos
mas interligados, filho da natureza e outorgador da cultura, administrador de sua vontade e de
seu destino, tem muito a caminhar até que possa entender qual o seu real sentido. Até aqui,
temos a forte suspeita de que este sentido possa se tratar da capacidade humana de criar
signos e símbolos que expressem suas instâncias culturais. Parece um caráter central que
distingue o homem dos demais seres a partir de sua própria obra, ou seja, a cultura.
29
3. O ANIMAL SIMBÓLICO
3.1. Animais e homens; signos e símbolos
Precisamos retomar algumas passagens comentadas anteriormente. Antes de entrar
plenamente na teoria das formas simbólicas, precisamos apontar mais algumas diferenciações
quanto aos homens e os outros animais. Em parágrafos anteriores, falamos sobre o círculo
funcional que é parte do organismo dos animais, em sua maioria; este é marcado por um
"sistema receptor", que recebe estímulos exteriores, e um "sistema efetuador", que reage a
tais estímulos. A união destes dois sistemas internos demarca parte das atividades animais,
relacionadas às pulsões instintivas. Como já havíamos dito, o homem também está incluído
neste círculo funcional, embora existam outros fatores correspondentes à natureza deste
estranho ser.
No homem há o que podemos chamar de "sistema simbólico". Trata-se de um fator
exclusivo do ser humano, e que diz muito em respeito à suas capacidades cognitivas e
racionais. Enquanto os animais satisfazem-se plenamente19 ao eliminar uma pulsão de sede ou
calor ao encontrar um açude, o homem guarda dentro de si uma dúvida e um desconforto, de
não saber se pode se sentir saciado quando não há mais sede nem calor em seu corpo. Suas
vontades orgânicas se acalmam, e ele é jogado ao largo do tempo, e neste meio não pode
simplesmente sentir-se bem e feliz, como outros animais podem; nele, há temeridades sobre o
passado e o futuro; quanto ao presente, ele está em todo lugar, provocando-lhe, aguardando
que o homem decida o que fazer, o que pensar. Seu espírito sente o mundo em três tempos ?
passado, presente e futuro ? e isto o impede de viver somente o presente vivido pelos outros
animais.
Através de um entendimento simbólico por natureza, o homem problematiza as
condições de seu viver. E é desta problematização que surgem as perguntas, e as idéias sobre
19 Talvez esta consideração seja um tanto equivocada, já que não podemos, de fato, sentir o que um animal
sente. Porém, esta questão estaria reservada a uma investigação posterior, visto que nosso principal objetivo é
especular a respeito da imprevisibilidade e abertura do ser humano. Quanto aos animais e suas satisfações
perante impulsos, mantemos aqui a concepção de que pode haver este fator de "satisfação plena" ou vivência do
"bel-prazer" quando todos os estímulos são saciados. Porém, esta nota explicativa é de rigor filosófico e visa
refletir que talvez a questão merecesse ser analisada sob variadas perspectivas para termos maior certeza do que
inferimos.
30
as perguntas. Podemos dizer que esta ação, a problematização, é também um fator essencial
para a fundamentação da cultura, em suas mais variadas formas simbólicas.
Porque antes de um fenômeno ou coisa adquirir seu viés simbólico (que se trata de
uma conceituação muito maleável e propensa a mudanças), ocorre no entendimento humano
uma série de questionamentos e especulações sobre o observado. Trata-se de uma
"problematização simbólica", e mesmo que Cassirer não tenha pensado nestes termos, talvez
seja interessante nós pensarmos. Pois para a formação de um símbolo e de uma concepção, o
homem necessita pensar sobre o que está em questão ? mesmo que este processo não seja
intencional ou consciente, mas um modo de funcionamento do entendimento humano.
Diversas considerações se agrupam em torno do conceito que forma o símbolo de
determinada coisa, pode ser uma pedra, como já exemplificamos anteriormente: é
acinzentada, dura, não tem vida, pode ser de vários tamanhos; para que o conceito "evolua",
quer dizer, para que novas considerações sejam acopladas a ele, a problematização é mais que
necessária. E podemos pensar que tal problematização é algo inerente ao homem, como
um impulso vital. E é por esta razão que não pode simplesmente sentir sede, ver água
escorrendo na calçada, se abaixar e beber. Antes que ele possa agir, sua mente já começa a
especular sobre as condições da água que se esvai pela calçada. E isto é como uma "ação
mental", muito importante para o ser humano, pois é seu sistema simbólico interagindo com o
mundo ao seu redor através de considerações autônomas.
E é a partir deste sistema simbólico que o homem fundamenta seu próprio mundo E
este mundo que estamos falando é exclusivamente humano, é o mundo de conceitos e
significados, é o mundo que o homem constrói livremente, artisticamente, refletindo e
modificando seu próprio devir em uma realidade que lhe é particular ? e muito peculiar
também. Talvez o mundo da valoração possa resumir-se na pretensão humana de levantar
sentido em tudo que ele pensa, faz e age. Talvez, então, seja esta a real transcendência ao
mundo orgânico. Conforme as palavras de Cassirer,
Não estando mais num universo meramente físico, o homem vive em um universo
simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes desse universo. São os
variados fios que tecem a rede simbólica, o emaranhado da experiência humana.
Todo o progresso humano em pensamento e experiência é refinado por essa rede, e
a fortalece. O homem não pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente;
não pode vê-la, por assim dizer, frente a frente. A realidade física parece recuar em
proporção ao avanço da atividade simbólica do homem. Em vez de lidar com as
próprias coisas o homem está, de certo modo, conversando constantemente consigo
mesmo. Envolveu-se de tal modo em formas lingüísticas, imagens artísticas,
31
símbolos míticos ou ritos religiosos que não consegue ver ou conhecer coisa
alguma a não ser pela interposição desse meio artificial. Sua situação é a mesma
tanto na esfera teórica como na prática. Mesmo nesta, o homem não vive em um
mundo de fatos nus e crus, ou segundo suas necessidades e desejos imediatos. Vive
antes em meio a emoções imaginárias, em esperanças e temores, ilusões e
desilusões, em suas fantasias e sonhos.20
O que nos parece, a partir desta longa citação, é que o homem é um ser que vive em
um mundo ideal, onde suas idéias se sobrepõem à própria realidade. Mas, de forma alguma,
podemos esquecer que as idéias que o homem forma são idéias a respeito de coisas, coisas
existentes. Portanto, o homem ainda está atrelado ao mundo natural, sendo também capaz de
relacionar-se com o meio ambiente através de conceitos simbólicos; também não pode ser
esquecido o fato de que as formas simbólicas são formas originárias da expressão humana, ou
seja, partem da natureza humana para a possibilidade da formação da cultura ? aspectos que
abordamos mais minuciosamente no capítulo anterior, mas que serão recorrentes em todo o
trabalho.
Desde os tempos gregos, a racionalidade do homem foi posta em evidência, sendo que
a este aspecto humano foram dedicadas as maiores investigações e obras da história da
filosofia, dos tempos antigos até à modernidade. Descartes definiu o homem por animal
rationale ? remontando, de certa forma, a antiga concepção aristotélica do zoón logikón ?, e
esta definição influenciou tão largamente a história do pensamento filosófico, que grande
parte dos pensadores a concebeu como uma máxima, visto que até os dias atuais temos obras
sendo escritas e estudadas com o enfoque no aspecto racional do ser humano.
Podemos dizer que a racionalidade é, de fato, um traço inerente às atividades humanas,
e que isso deve ser considerado com relativa importância. Mas ao que afirma Cassirer, e
também assumimos este ponto de vista, o homem não pode apenas ser definido como um
animal racional. Pois mesmo que use uma linguagem conceitual, usa-a também para expressar
sentimentos; possui inquietações cognitivas que podem ser mais facilmente resolvidas com a
ciência, mas também possui impulsos que só podem ser saciados através da imaginação
artística. "Primariamente, a linguagem não exprime pensamentos e idéias, mas sentimentos e
afetos"21. O autor afirma que a razão é um termo muito inadequado para conceber o homem
em toda sua riqueza cultural e espiritual, uma vez que seu rol de manifestações e
representações é muito mais simbólico que racional. Os modos de expressão que o homem
20 CASSIRER, 2005, p. 48-49.
21 Ibidem, p. 49.
32
utiliza para identificar suas perspectivas sobre as coisas e o mundo em que as coisas estão são
representadas através de formas simbólicas, o que inclui também perspectivas lógicas e
racionais. Perante tal fato, "em vez de definir o homem como animal rationale, deveríamos
defini-lo como animal symbolicum"22. Segundo o autor, através deste conceito podemos
delimitar o homem através de sua diferença específica, e por fim chegar ao estudo de seu
caráter enquanto ser cultural. Todo o desenvolvimento da cultura humana estaria baseado no
pensamento simbólico e no comportamento simbólico.
No complexo mundo dos conceitos humanos, as coisas possuem significados
funcionais, significados simbólicos. A função primária de tais símbolos é a comunicação
objetiva do que se representa, por exemplo, se o homem tem uma pedra, ele isola a mesma
sob a forma de um conceito, o "conceito de pedra". Neste conceito, temos unidas todas as
particularidades que envolvem tal objeto ? é dura, pesada, não possui vida. Tais
particularidades fazem com que a pedra seja isolada sob a forma de um conceito, e como
Cassirer afirma em uma passagem anteriormente citada, o homem se envolve tão
profundamente com o conceito das coisas, que não fala propriamente das coisas, mas do
conceito que possui delas. Um conceito também é uma concepção, mas engloba tudo que
pode determinar um objeto como tal, sob a função de comunicar objetivamente, ou seja, ao
falarmos "pedra", expressamos um conceito onde já estão incluídas as particularidades que
fazem da pedra uma pedra e não outra coisa.
Quanto aos outros animais, estes não estariam incluídos no universo simbólico.
Segundo diversos estudos e reflexões relacionadas à Antropologia Filosófica, estamos
inclinados a pensar que os animais não são capazes de pensar conceitualmente,
proposicionalmente. O próprio Cassirer afirma:
A diferença entre a linguagem proposicional e a linguagem emocional é a
verdadeira fronteira entre o mundo humano e o mundo animal. (...) Em toda
literatura sobre o tema parece não haver uma única prova conclusiva de que algum
animal deu o passo decisivo que leva da linguagem subjetiva à objetiva, da afetiva à
proposicional. (...) Os macacos antropóides, no desenvolvimento de certos
processos simbólicos, podem ter feito um avanço significativo. Mais uma vez,
porém, devemos insistir que não chegaram ao limiar do mundo humano.23
A diferença essencial não está na capacidade de formação de palavras, mas no esquema
proposto pelos homens, de entendê-las sob a forma de conceitos. Um papagaio pode muito
22 CASSIRER, 2005, p. 50.
23 Ibidem, p. 55-57.
33
bem repetir algumas frases ditas por seus donos, e até mesmo entendê-las; porém, ele não é
capaz de formar novas frases, refletindo acerca de alguma coisa. Pois os papagaios ? como os
outros animais ? não pensam sobre tal coisa, mas somente pensam na coisa própria. Neste
caso, as próprias palavras faladas pelos papagaios possuem uma entidade física. "Pedra" só
poderá significar no contexto em que foi entendida por este pássaro; logo, não existirá na
forma de conceito, não terá particularidades que a expliquem.
Assim, Cassirer propõe uma distinção entre sinais e símbolos, uma vez que os
primeiros correspondem ao universo de pensamento animal, e os últimos, ao universo
exclusivo do pensamento humano. Citamos Cassirer novamente:
Os símbolos ? no sentido próprio do termo ? não podem ser reduzidos a meros
sinais. Sinais e símbolos pertencem a dois universos diferentes de discurso: um
sinal faz parte do mundo físico do ser; um símbolo é parte do mundo humano do
significado. Os sinais são "operadores" e os símbolos são "designadores". Os
sinais, mesmo quando entendidos e usados como tais, têm mesmo assim uma
espécie de ser físico ou substancial; os símbolos têm apenas um valor funcional. 24
Esta passagem parece explicar com clareza porque há de ser importante fazer tal
distinção, pois a partir disso, temos uma importante característica que separa o mundo natural
dos animais, e o mundo humano da cultura.
Na obra Filosofia em Nova Chave (1941), de Susanne Langer (1895-1985), temos
algumas observações que também são muito oportunas para nossas reflexões a respeito desta
diferenciação entre signos e símbolos. Aluna e leitora de Cassirer, Langer aprofundou alguns
aspectos desta distinção:
É claro que uma palavra pode ser usada como signo, mas não é seu papel primário.
Seu caráter signífico precisa ser indicado por alguma modificação especial ? por
um tom de voz, um gesto (tal como apontar ou fitar), ou pela posição de um cartaz
que apresenta a palavra. Em si, ela é um símbolo, associado a uma concepção, não
diretamente a um objeto público ou evento. A diferença fundamental entre signos e
símbolos é esta diferença de associação e, consequentemente, o uso pelo terceiro
particípie (sic), para a função de significado, o sujeito: os signos lhe anunciam seus
objetos ao passo que os símbolos levam-no a conceber seus objetos.25
Assim, temos uma distinção bem precisa sobre o pensamento animal e o humano. Os
animais não podem entender o valor funcional de um símbolo, pois eles não refletem sobre
ele, e, portanto, não o concebem por completo. Estes, portanto, necessitam de uma via física
24 CASSIRER, 2005, p. 58.
25 LANGER, 2004, p. 71.
34
para que o signo possa significar algo. E quanto aos símbolos, eles podem ser muito variáveis
e expressar uma mesma coisa de diversas maneiras, respeitando ou não os limites de uma
língua, várias coisas podem representar uma mesma coisa ou um mesmo sentido (Fogo, por
exemplo, pode ser representado por uma chama, pela cor vermelha, por um objeto saindo
fumaça, um extintor, ou outro símbolo; culturas diferentes podem usar símbolos mais
diferenciados ainda para significar a mesma coisa. O símbolo é algo caracterizado por sua
versatilidade representativa).
Cassirer parte desta concepção: o homem se dirige aos objetos perante um rigor
simbólico; e o conhecimento humano opera desta maneira. O símbolo está como uma
condição de possibilidade do próprio conhecimento. Assim, podemos dizer que o homem
"ultrapassa" a inteligência prática que é comum aos outros animais. Quer dizer, enquanto
gatos e papagaios possuem apenas uma imaginação e uma inteligência práticas, o homem
desenvolveu uma imaginação e uma inteligência simbólicas; nesta instância, temos um
princípio de aplicabilidade universal, não restrita a casos particulares, mas que está presente
em todas as formas de representação humanas. Trata-se de um processo exclusivamente
humano, que envolve o pensar reflexivo e representativo.
Por assim dizer, o homem é o único animal capaz de reflexão e representação. Pois o
homem tem uma consciência; a partir desta, é capaz de, ao observar um fenômeno, pensar
sobre, tirar conclusões, subjetivas ou objetivas, e ainda escolher se irá se expressar a respeito
ou guardar tal coisa para si. Segundo o que nos parece é apropriado afirmar (sob influências
cassirerianas), o apelo reflexivo se dá no momento em que o homem considera o objeto em
suas possibilidades diversas; o representativo quando toma uma perspectiva e forma uma
idéia ou opinião sobre26. O que podemos observar a respeito disso é que ambos os processos
são igualmente simbólicos. O homem busca, através de formas simbólicas como a arte e a
religião, maneiras de situar suas concepções, e assim entende o mundo que o circula.
Conforme o pensamento de Cassirer, o próprio conhecimento humano é, por natureza,
um conhecimento simbólico. O entendimento humano, pois, necessita de símbolos, como
fossem imagens ou perspectivas diversas, para representar o mundo à sua frente. Isto será
expresso em maiores detalhes no tópico seguinte.
26 Estas categorias que utilizamos para referir-nos ao entendimento humano, divididas como uma instância
reflexiva e outra representativa, não são propriamente categorias definidas por Cassirer, apenas uma forma
sistemática que utilizamos para expressar seu pensamento. Tratam-se apenas de conceitos que podem auxiliarnos
na reflexão a respeito do processo de formação do símbolo no entendimento humano.
35
3.2. Da necessidade de símbolos para a cognição humana.
Há algumas idéias que necessitam ser repetidas ao decorrer de nossa pesquisa. Não
para forçar uma concepção viciosa de quem a lê, mas porque é onde está localizado o cerne de
nossos questionamentos e argumentações. Pois sempre que tentamos responder à questão "o
que é o homem?" (ou então, "quem seríamos nós?", se partimos da perspectiva de que esta
investigação é complexa também por se tratar de uma questão de autoconhecimento), nos
vemos obrigados a apontar novamente suas principais diferenciações para com outros
animais. Trata-se de algo simples à primeira vista, mas dá margem a tantas perspectivas, que a
questão reaparece até mesmo quando não é completamente bem-vinda. Mesmo assim,
parágrafo após parágrafo, o discernimento entre o homem e os demais animais poderá
reascender para serem discutidas novas perspectivas.
Dizemos tal coisa porque, ao tratar o homem como um animal simbólico, que
fundamenta símbolos e pensa através deles, parece-nos oportuno pensar em como poderíamos
encaixar algumas idéias a respeito da liberdade humana neste ponto. E sabemos, ou melhor, já
conjecturamos anteriormente, que os animais não possuem tal liberdade; pois não podem
decidir por seu destino ? coisa que para eles, não parece ser muito problemático, já que seus
instintos definem, de modo geral, o que eles irão fazer pelo resto de suas vidas.
Porém, podemos problematizar esta questão pensando nos animais domésticos; um
cachorro poodle que vive em um apartamento, por exemplo; este pode muito bem se recusar a
comer qualquer comida que lhe dão, de forma que esta recusa poderia ser pensada como uma
espécie de "liberdade". Mas esta idéia pode ser rechaçada facilmente, pois provavelmente tal
animal esteja envolvido pelo hábito27 de comer somente determinadas coisas. Assim, se ele
recusa comer um pedaço de pão, por exemplo, não quer dizer que ele está, simplesmente,
"exercendo sua liberdade". Porém, é importante apontar aqui o fato de que em certas
27 O "hábito" é um conceito bastante importante para pensarmos em algumas questões antropológicas,
visto que ele também atinge aos homens (e alguns muito mais do que outros). David Hume (1711-1776) foi um
pensador que fez oportunas observações a respeito do hábito em relação aos homens. Em sua crítica à
causalidade, o autor afirma que o hábito pode "sobrepujar" a razão em torno de algumas conexões causais. Nesta
perspectiva, o homem desenvolveria uma crença tão forte na causalidade que veria esta quase como um instinto,
porém este estaria baseado no desenvolvimento de certos hábitos mentais. Hume afirma que, perante isto, uma
crença não poderia ser provada como verdadeira ou falsa, pois estaria imersa em um hábito o qual o homem não
tem consciência.
36
instâncias, os animais podem decidir, sim; mas tal decisão não se trata de uma escolha
consciente, mas impulsiva, também determinada por seus instintos; pois os animais não
possuem uma autonomia equivalente à autonomia humana. Não possuem a consciência das
possibilidades da escolha.
Pensamos que, quando um animal "escolhe" alguma coisa (se é que podemos falar
nestes termos), ele não está consciente de tal escolha. Ele não divide suas possibilidades,
considerando vantagens e desvantagens. Esta é uma característica bastante humana, que para
os animais está plenamente obscurecida. Segundo o que diz Cassirer, o problema reside no
fato de que o animal é incapaz de distinguir entre realidade e possibilidade, enquanto o
homem pensa e gera seu processo de simbolização através de "coisas possíveis":
Uma diferença entre "real" e "possível" não existe (...) para os seres abaixo do
homem. (...) Os seres abaixo do homem estão confinados ao mundo de suas
percepções sensoriais. São suscetíveis a estímulos físicos reais e reagem a tais
estímulos. Mas não conseguem formar nenhuma idéia de "coisas possíveis". (...) É
só no homem, na sua "inteligência derivativa" (intellectus ectypus) que ocorre o
problema da possibilidade. 28
Ao que considera Cassirer, esta diferença entre realidade e possibilidade não se trata
de uma diferença metafísica, mas epistemológica. Ou seja, o autor refere-se ao problema da
"possibilidade" como uma questão cognitiva, quer dizer, através do processo simbólico o
homem pode considerar o real sob diversas perspectivas e decidir pelo que parece mais
apropriado ? coisa que não é possível aos animais, que, por exemplo, ao verem muitos frutos
à sua frente, optam pelo mais próximo ou pelo maior. O homem pode simplesmente escolher
o que lhe agrada, até mesmo sem razão aparente, pois está consciente que a realidade lhe
dispõe de diversas possibilidades e esta é sua aptidão cognitiva.
Mas ao que infere a filosofia de Cassirer, a principal característica da cognição
humana está na inerente necessidade de símbolos. É a partir do ato da simbolização que
fazemos a indispensável distinção entre real e ideal, uma vez que "um símbolo não tem
existência real como parte do mundo físico; tem um ?sentido?" 29. Tal sentido dá essência ao
símbolo, e o mesmo passa a ser entendido e considerado como algo real, de significado;
porém, tratava-se somente de uma coisa "possível", surgida do nada, ou melhor dizendo,
surgida da vontade humana de expressar determinada coisa.
28 CASSIRER, 2005, p. 95-96.
29 Ibidem., p. 97.
37
Aqui, podemos nos remeter à critica cassireriana às ciências empíricas e ao
positivismo; nestas escolas, defende-se a idéia de que o conhecimento humano deve aderir
aos fatos, e que uma teoria sem fatos não possui fundamento. Porém, Cassirer afirma que os
dados científicos, ou o próprio método científico, se apóiam em elementos teóricos, de
procedimentos definidos por um padrão em questão; talvez tal crítica não seja novidade, mas
o que toca à teoria das formas simbólicas, toda e qualquer teoria deve ser considerada
enquanto seu valor simbólico. Outras ciências, como a matemática, estão na mesma linha: a
matemática não é uma teoria de coisas reais, mas uma teoria de símbolos.
Ao que tudo aponta, o conhecimento humano em geral é dado por instâncias
simbólicas, e se realmente for desta forma, não pode ser dado de outra maneira. Pois quando
se faz uma consideração sobre determinada coisa ou idéia, tal consideração não é nada além
de um símbolo funcional que proporciona o entendimento entre os homens.
38
4. AS FORMAS SIMBÓLICAS, EXPRESSIVIDADE DO SER HUMANO
4.1. O animal symbolicum e sua obra
Tendo em vista o homem enquanto um animal simbólico, devemos voltar nossa
atenção não somente para características do homem enquanto tal, mas também (e talvez
dando uma importância especial) para tudo aquilo que ele produz. Conforme seu sentido
originário ? a cultura ? o homem apresenta suas formas de ser. Talvez aqui seja cabível uma
citação do livro "O homem em Cassirer", do comentador Henrique Portugal:
O homem não pode ser definido por um princípio inerente que constitua sua
essência metafísica, ou por uma faculdade inata ou um instinto passível de ser
verificado pela observação empírica. O caráter dominante, o traço distintivo do
homem, "ser vivente", não é a sua essência metafísica, mas a sua obra. (...) Uma
"filosofia do homem" seria então uma filosofia que nos fizesse conhecer a estrutura
fundamental de cada uma destas atividades e que nos permitisse compreendê-las
como um todo orgânico. Elas não são criações isoladas. Há um mesmo laço que as
mantém unidas; e não é um "vínculo substancial", como na Escolástica. Ele é muito
mais um "vínculo funcional". É da função fundamental da língua, do mito, da arte,
da religião que devemos ir à procura. Devemos ir além de suas inumeráveis formas
e expressões; o que devemos em última análise procurar é uma origem comum a
todos. Esta origem comum a todas as manifestações culturais está na ação.30
As palavras usadas nesta citação de Portugal são muito semelhantes a algumas
passagens da obra de Cassirer. No trecho acima, ele expressa algumas concepções muito
importantes para uma teoria das formas simbólicas. Pois na produção humana, que parte da
ação e da intenção do homem, temos o fio condutor de toda cultura e civilização, e a partir
disso podemos identificar algo como uma "essência" da humanidade.
Aqui, temos uma resposta um pouco mais clara para o dualismo natureza-cultura
presente no ser humano ? questão muito discutida nos capítulos anteriores. Pois naturalmente
e culturalmente (isto é, artificialmente), o homem há de se expressar simbolicamente. Quer
dizer, parece ser uma condição essencial e intrínseca de seu existir.
Perante tal concepção ? a qual assumimos aqui, por parecer a perspectiva mais
oportuna e aproximada que poderíamos ter a respeito do ser humano enquanto tal ?, nos resta
30 PORTUGAL, 1996, p. 54-55.
39
discutir a respeito das formas simbólicas e seu sentido representativo para a cultura humana e
para a essência do homem. Cassirer distingue as formas simbólicas, em sua obra Ensaio sobre
o homem, em linguagem, ciência, mito, religião, história e arte. Estas instâncias podem
representar, segundo o autor, os mundos em que o ser humano se situa, suas formas de
expressão. São todas atividades humanas, que partilham de um processo evolutivo que muda
conforme o desenvolvimento da cultura, embora não possamos dizer que elas sempre estejam
relacionadas, quer dizer, formas simbólicas diferentes trafegam por considerações e
significados diferentes entre si.
Na experiência humana não encontramos, de maneira alguma, as várias atividades
que constituem o mundo da cultura estando em harmonia. Ao contrário, vemos o
atrito perpétuo entre forças conflitantes. O pensamento científico contradiz e
suprime o pensamento mítico. A religião, em seu mais alto desenvolvimento teórico
e ético, vê-se na necessidade de defender a pureza de seu próprio ideal contra as
fantasias extravagantes do mito e da arte. Assim, a unidade e a harmonia da cultura
humana parecem ser pouca coisa mais que um pium desiderium ? um embuste
virtuoso ? que é constantemente frustrado pelo curso real dos acontecimentos. 31
De modo sintético, o que podemos afirmar acerca disso é que as formas simbólicas se
sustentam em crenças e premissas básicas, que possuem o sentido funcional de justificá-las. A
ciência, por exemplo, que tem como objetivo principal o conhecimento dos fenômenos
naturais, se sustenta através de um método; este método, por sua vez, não possui validade para
outras manifestações culturais, como a religião. Podem haver relações, mas como nesse
exemplo, temos formas de expressão que existem e se expressam por motivos diferentes. Não
poderíamos compará-los, pois são mundos distintos: enquanto determinada forma de
expressão defende uma idéia alegando que a mesma é muito genuína e verdadeira, uma outra
simplesmente não pode entendê-la.
Nos próximos tópicos, analisaremos as formas simbólicas na distinção proposta por
Cassirer, já citada acima. Arte, história, ciência, linguagem, mito e religião serão abordadas,
uma a uma, como formas simbólicas que são, na função de especular a respeito de suas
contribuições para a cultura em geral. Depois de traçado este caminho, talvez possamos estar
mais próximos de entender o homem, seus símbolos e sua civilização.
31 CASSIRER, 2005, p. 118.
40
5.2. O caráter mítico-religioso
"Desejo ser um criador de mitos, que é o
mistério mais alto que pode obrar
alguém da humanidade."
(Fernando Pessoa)
A decisão de começar a tratar das formas simbólicas pelas crenças mítico-religiosas
não é uma decisão exclusiva de nossa pesquisa. Cassirer fez a mesma escolha em seu Ensaio
sobre o homem; e o que podemos dizer a respeito desta decisão, é que antes mesmo de haver
uma linguagem comum, nas primeiras tribos e comunidades humanas, a crença no divino já se
mostrava presente. Trata-se de uma manifestação simbólica muito antiga, e um tópico
essencial para refletirmos a respeito da insegurança do homem perante seu próprio ser e estar.
Diferentemente da linguagem, que se trata de uma forma simbólica que tem como
finalidade a comunicação ? e para isto é necessária uma coerência lógica entre os termos
utilizados em sua expressão ?, os mitos e as religiões não se inteiram somente desta condição.
Possuem uma lógica própria, que nada tem a ver com a lógica formal, muito pelo contrário, se
formos analisar friamente as crenças dos antigos povos e até mesmo as crenças religiosas da
contemporaneidade, correríamos um grande risco de encontrar, em sua história e tradição,
grandes doses de nonsense32, ou seja, estaríamos diante do absurdo.
Tanto no mito quanto na religião, temos fenômenos que estão muito mais relacionados
com os sentimentos do que com a razão (embora nas religiões mais complexas tenhamos
crenças mais bem-estruturadas), e esta é uma observação muito importante, visto que estamos
diante de uma sociedade e de uma tradição que sempre mantém a razão frente às emoções,
talvez porque uma escolha racional seja muito mais compreensível do que aquela onde
sentimentos estão envolvidos. Se perguntarmos para um homem por que é que ele prefere
andar de carro a andar de ônibus, teremos uma resposta objetiva, racional; agora, se
perguntamos por que ele crê num deus onipotente, ou por que ama determinada mulher, este
não poderá responder com total objetividade; pois a fé e o amor ? seguindo os exemplos
32 O termo nonsense é utilizado para designar aquilo que não possui sentido formal, embora carregue um
valor artístico. Movimentos da história da arte como o surrealismo e o dadaísmo se utilizam de símbolos e
formas artísticas que a princípio não possuem um sentido que possa ser relacionado ao real; para tais
manifestações, utiliza-se este termo.
41
dados ? são forças movidas mais pelos sentimentos do que pela razão33. Posso dizer que creio
em Deus, pois tenho temeridades em relação ao "outro mundo"; também posso dizer que amo
uma mulher porque ela seria uma boa esposa, ou porque gostamos de coisas semelhantes, nos
damos bem juntos, etc. Mas neste caso, estou citando características que não podem
solucionar o mistério dos motivos da fé ou do amor, por exemplo. Aqui, temos sentimentos
muito fortes envolvidos, e isto ainda é bastante enigmático para nós, seres humanos. Cremos,
amamos, nos inclinamos, mas não sabemos exatamente o porquê de tal coisa34.
Quanto a uma crença religiosa, não poderíamos justificá-la, a não ser pela doutrina
moral que lhe é interna; diante disto, não poderíamos ficar a favor, nem contra. Trata-se
apenas de uma questão de crença ou descrença. Segundo Cassirer,
A religião não é só um enigma no sentido teórico, mas também no sentido ético.
Está repleta de antinomias teóricas e contradições éticas. Promete-nos uma
comunhão com a natureza, com os homens, com os poderes sobrenaturais e com os
próprios deuses. No entanto, o seu efeito é precisamente o oposto. Em sua aparência
concreta ela se torna a fonte das mais profundas dissensões e lutas fanáticas entre os
homens. A religião alega estar de posse de uma verdade absoluta; mas a sua história
é uma história de erros e heresias. Oferece-nos a promessa e a perspectiva de um
mundo transcendente ? bem além dos limites da nossa experiência humana ? e
permanece humana, demasiado humana.35
Mas apesar da crítica desferida pelo autor, é importante inferir que o que buscamos
aqui não é simplesmente criticar o mito ou a religião, formas de expressão inerentes ao
homem. Uma filosofia da cultura humana busca os princípios subjacentes da expressão, a
atividade simbólica enquanto tal, e neste caso temos um fenômeno onde os ritos e credos
mudam conforme as crenças envolvidas, mas os princípios geralmente permanecem os
mesmos.
33 Ou talvez possamos dizer que a crença religiosa esteja muito ligada à tradição (talvez gerada pela
própria religião) e isto lhe forneça desde princípio uma justificativa. Porque há na religião um princípio muito
forte de tradição, que passa de geração a geração e torna-se um semblante muito forte da Família e do Estado.
Portanto, caso quisermos justificar uma crença, talvez a tradição gerada por ela seja uma boa justificativa.
34 Estes exemplos nos são úteis para pensar a respeito das crenças e paixões de forma igualitária, quer
dizer, sem hierarquia entre elas. Se uma pessoa segue uma religião ou ama alguém que não aprovamos, nada
podemos contestar a respeito. Não há certo e errado no amor e na fé. São inclinações muito pessoais, que podem
ou não ter influência cultural, ou até mesmo propriamente intencional ? ou seja, se perguntamos para o Papa
porque ele escolheu a Igreja Católica e não a doutrina budista, talvez ele nos dê longas explicações sobre
tradição familiar, nacional, enfim, cultural; porém, jamais poderá explicar o real motivo de sua escolha.
Sugerimos que podemos pensar que o motivo se encontraria no largo de suas vivências e este não poderia ser
simplesmente resumido a uma "situação de escolha". Mesmo que isto comprometa nossa concepção de
autonomia, há coisas de viés bastante inexplicável na vida humana. A fé e o amor são exemplos bastante claros.
Estão carregados de esplendor e mistério.
35 CASSIRER, 2005, p. 122.
42
A religião possui uma função e esta função é expressa por Cassirer nas seguintes
palavras:
A religião (...) não tem qualquer meta teórica, é uma expressão de ideais éticos. (...)
Traz em si uma cosmologia e uma antropologia; responde à questão da origem do
mundo e da origem da sociedade humana, e deriva desta origem os deveres e as
obrigações do homem.36
Assim, através desta definição podemos pensar na religião através de seu caráter
teleológico, quer dizer, trata-se de um complexo que envolve várias crenças e que dá
respostas finais a "questões máximas" e essenciais para a vida humana. Talvez seja por esta
razão que há muitas culturas nas quais existem várias religiões e há somente um idioma, por
exemplo. Sua função é de grande importância para que o homem faça adormecer a dúvida que
é inerente a seu ser, quase da mesma forma que pode acalmar uma ânsia criativa através da
arte.
Porém, antes de haver doutrinas religiosas mais complexas, as principais crenças eram
míticas e estas possuem um caráter de certa forma absurdo, principalmente para culturas
contemporâneas que não costumam se relacionar com tais mitos; pois neles há uma lógica
própria, que nada tem a ver com uma lógica formal. Podemos pensar no mito do nascimento
de Dionísio, filho de Zeus com uma mortal, mais precisamente na parte em que Zeus necessita
fecundar o futuro filho em sua própria coxa, perante a morte da mulher que carregava a
criança em seu ventre. Nos dias atuais, com alguns avanços (não tão) recentes da biologia,
sabemos que isto não seria "possível", e talvez a crença em tal fecundação pareça cômico e
arcaico aos olhares contemporâneos. Mas um mito possui uma lógica própria, uma realidade
própria; pois no pensamento mítico, qualquer ser ou objeto pode ser benigno ou maligno,
fascinante ou ameaçador ? ou seja, os próprios objetos não se reduzem somente à "matéria
morta". Criavam-se idéias muito simbólicas a respeito de simples pedras ou nuvens, por
exemplo. Talvez os avanços científicos da modernidade tenham influenciado a humanidade a
afastar-se deste viés lúdico, mas isto não significa que devemos desprezar e rechaçar as
crenças míticas, mesmo sem antes buscar entendê-las ou apreciá-las. Tais crenças aproximamse
muito da criação artística.
É interessante também discutirmos a respeito da crença na magia, esta que também é
uma forma de expressão mística muito antiga, e que denota uma espécie de autonomia
36 CASSIRER, 2005, p. 156.
43
humana; pela primeira vez na história, o homem deixou de lado a crença nos deuses
transcendentais para lançar um primeiro contato ativo com o transcendental, através de um
poder atribuído a palavras e gesticulações mágicas que eram desferidas por ele próprio.
A fé na magia é uma das mais antigas e mais notáveis expressões da nascente
autoconfiança do homem. Com ela, já não se sente à mercê de forças naturais ou
sobrenaturais. Ele começa a desempenhar seu próprio papel, torna-se um ator no
espetáculo da natureza. Toda prática mágica baseia-se na convicção de que os
efeitos naturais dependem, em larga medida, de feitos humanos. A vida da natureza
depende da correta distribuição e cooperação de forças humanas e sobre-humanas.
(...) A magia não é usada para propósitos práticos, para sustentar o homem em suas
necessidades cotidianas. É destinada a metas superiores, a empreendimentos
ousados e perigosos. 37
A partir do momento em que o homem acredita na possibilidade de relacionar-se
"ativamente" com o sobrenatural, ele desenvolve um sentimento novo a respeito de suas
próprias possibilidades. Talvez esta seja uma das primeiras manifestações da autonomia
humana, e tal autonomia não está presente no mito ou na religião; nestas duas formas de
expressão simbólica, os feitos milagrosos e sobrenaturais são atribuídos somente aos deuses.
Crendo na magia, o homem recorre ao sobrenatural utilizando seu próprio corpo e espírito,
ambos humanos, integrados ao conhecimento e a fé.
Já as tradições religiosas mais complexas, tal como o cristianismo, ou até mesmo
crenças orientais como o budismo ou o taoísmo, estas apresentam, em sua maioria,
implicações psicológicas, sociológicas e éticas. Quer dizer, sociedades inteiras desenvolvemse
integradas aos hábitos e costumes de uma tradição religiosa; esta, por sua vez, expressa
seus ideais políticos e morais através de tais costumes. No cristianismo, por exemplo, a
poligamia ou o canibalismo são retratados como grandes desvios de conduta moral, embora
sejam práticas comuns a algumas tribos ditas "primitivas". Práticas. Comuns. Em sociedades
alheias à nossa.
Nas nações e sociedades onde há uma religião predominante (e isto se refere à maior
parte das grandes civilizações), os princípios morais da religião em questão são acoplados à
sociedade e estes exercem grande influência em todo seu desenvolvimento. Trata-se de uma
espécie de sentimento coletivo, onde todos os membros da sociedade participam
indiretamente. Embora o sentido originário da representação simbólica da religião seja, em si,
37 CASSIRER, 2005, p. 152-153.
44
a relação humana com o transcendente, fica muito mais marcante os aspectos social e moral ?
pois estes refletem muitos aspectos culturais intrínsecos à própria religião.
Cassirer fala sobre a existência de um "sistema de tabus", que acompanha toda crença
mística, e impõe ao homem inúmeros deveres e obrigações. Na perspectiva do autor, tais
deveres nada trazem de positivo, apenas de negativo, pois tornam o homem um ser passivo
diante de um "perigo transcendente". Porém, as religiões ditas "mais complexas" (que em
nossa perspectiva não quer dizer que sejam superiores a antigos ritos, muitas vezes ditos
"arcaicos") teriam uma proposta diferente; segundo as palavras do autor:
O sistema de tabus ameaça fazer da vida do homem uma carga que no fim se torna
insuportável. Toda a existência do homem, física e moral, fica esmagada pela
pressão contínua desse sistema. É aqui que a religião intervém. Todas as religiões
éticas superiores ? a religião dos profetas de Israel, o zoroastrismo, o cristianismo ?
propuseram-se uma tarefa comum. Elas aliviam o peso intolerável do sistema de
tabus, mas em compensação descobrem um sentido mais profundo de obrigação
religiosa, que em vez de ser uma restrição ou compulsão é a expressão de um novo
ideal positivo de liberdade humana.38
Esta superação, marcada pelas religiões ditas "superiores", refere-se provavelmente à
inserção da religião no processo civilizatório. Cultura e religião se entrelaçam em um
processo de fundamentação de hábitos, costumes e valores morais, e este atrelamento confere
sentido aos ideais defendidos pela religião e também à leis morais fundamentadas pelo estado
em prol do bem comum.
Assim, o pensamento mítico-religioso acompanha o homem no próprio
desenvolvimento cultural, e podemos dizer que é muito natural (ou seja, cultural) que o
homem desenvolva certas crenças e fundamente escolhas através delas. Portanto, não se trata
propriamente da crença pessoal de cada homem ? quer dizer, crer ou não nos deuses é
também uma escolha pessoal, mas há um fator social que está muito presente, em relação à
religião. Pois é possível visualizar nos costumes de um povo vários fatores relacionados à sua
crença, como uma identidade cultural que está na estrutura da cultura enquanto tal, e não na
escolha pessoal de cada membro da sociedade.
É importante lembrar que o interesse deste tópico está em salientar características e
tentar compreender o caráter mítico-religioso do homem, segundo as concepções simbólicas
contidas na obra de Cassirer e na própria reflexão antropológica ? perspectivas essenciais para
38 CASSIRER, 2005, p. 178-179.
45
a presente pesquisa. Não buscamos entrar em discussões profundas acerca das possíveis
controvérsias que incumbem a religião em suas diversas manifestações.
4.3. Linguagem e comunicação
"Comparadas entre si, as diferentes línguas mostram
que jamais se chega pelas palavras à verdade, nem a
uma expressão adequada; não fosse isso, não haveria
tão grande número de línguas"
(Friedrich Nietzsche)
Sempre que falamos no ser humano, a linguagem conceitual da fala pode nos vir à
mente como uma das principais características humanas. A comunicação é algo de muito
importante para todos os animais, mas em todo o reino animal não há uma espécie sequer que
possa ser comparada com a espécie humana, em termos de uma "complexidade
comunicativa". Pois os homens não falam simplesmente das coisas, mas falam sobre as
coisas, em perspectivas distintas, por vezes mergulhadas em rodeios e devaneios ? posturas
que podem enriquecer em detalhes o objeto da discussão, ou então criar certas confusões de
comunicabilidade.
Talvez a complexa comunicação desenvolvida pelos homens tenha se tornado uma
espécie de afastamento em relação às coisas mesmas. Pois o homem envolve-se tão
profundamente com os conceitos que fundamenta sobre as coisas, que às vezes parece
esquecer delas próprias. Porém, é uma forma de expressividade muito característica da
espécie humana e tem uma função bastante profunda: ela confere significados nominais às
coisas, e permite o homem discutir e especular sobre as mesmas; a partir da linguagem, então,
é possível dizer que as coisas possuem um significado que pode ser repensado e "alargado".
Trata-se de uma problematização a respeito do "significado do significado".
Na obra Linguagem e Mito (1924), Cassirer traz importantes reflexões a respeito das
funções comunicativas e conceituais da linguagem. Conforme as palavras do autor:
A linguagem nunca designa simplesmente os objetos como tais, mas sempre
conceitos formados pela atividade espontânea do espírito (?). A linguagem surge,
aqui, como o veículo da conquista de qualquer perspectiva espiritual do mundo,
46
como o meio que o pensamento deve cruzar antes de se achar a si mesmo e de poder
conferir a si mesmo uma forma teórica.39
Portanto, a partir da formulação de conceitos, temos as coisas próprias reduzidas a
aspectos objetivos. Ao primeiro passo, as palavras designam sentimentos em relação ao que
vivemos, e tais sentimentos são reduzidos em tais conceitos em busca de uma objetividade.
A objetividade, fator de bastante importância para o fenômeno da fala, é contraposta
por uma subjetividade poética, que parece fazer parte da natureza artística do ser humano.
Pois antes de formular frases bem construídas em prol da necessidade da comunicação, os
homens já cantarolavam melodias; as mesmas são anteriores ao significado, pois não
necessitam do mesmo para serem belas. A beleza é também uma necessidade humana ? isto
mesmo, uma necessidade ?, e talvez seja a razão oculta de boa parte de suas inclinações.
Trataremos disto com mais atenção no último tópico deste capítulo, a respeito da criação
artística.
Mas a objetividade da linguagem tem uma função de bastante importância, que é uma
função social, que muito contribui para o desenvolvimento da cultura ? pois a mesma depende
de uma troca de informações para evoluir. Desta perspectiva, pode-se dizer que a cultura
trata-se de um complexo que reúne conhecimento, teorização, inspiração e historicidade de
um mesmo povo.
Tão variadas são as culturas e suas formas de expressão lingüísticas, que as mesmas
apresentam também diversas línguas (idiomas). Por assim, de uma cultura para outra, temos
diversos idiomas e uns muito diferentes dos outros. Talvez esta seja uma explicação primária
para a causa da união e da discórdia entre os povos: a divergência lingüística. Se uma cultura
não pode entender as razões de ser de outra cultura em função dos diferentes costumes, o
idioma talvez seja a primeira barreira que impeça um primeiro entendimento. Outras formas
simbólicas, tais como a história e a ciência, também contribuem para tal afastamento, mas
idiomas alheios impedem primeiras explicações e talvez, um acordo entre os povos:
A mais alta tarefa de todas essas formas [simbólicas], na verdade a única, é unir os
homens. Mas nenhuma delas pode causar tal unidade sem ao mesmo tempo dividir e
separar os homens. O que fora concebido para garantir a harmonia das culturas
torna-se a fonte das mais profundas discórdias e dissensões. (...) Sem a fala não
haveria a comunidade dos homens. No entanto, não há obstáculo mais sério a essa
comunidade que a diversidade da fala.40
39 CASSIRER, 2006, p. 51.
40 CASSIRER, 2005, p. 213.
47
Assim, é importante também analisarmos a linguagem como um obstáculo, quando
tratamos de culturas diferentes que não podem entender-se devido a um fator tão simplório.
Mas esta barreira de fato existe, desde os primórdios da civilização até os dias de hoje. E não
é um problema que poderia ser resolvido com a fundamentação de uma coisa como uma
"linguagem universal", por exemplo, pois a linguagem de um povo está ligada às suas raízes
culturais e históricas.
Mas pensando no homem em sua natureza simbólica, comum a todos, é importante
para a nossa pesquisa enfatizar o caráter da linguagem enquanto forma de expressão da
"essência humana", digamos assim. Neste sentido, o mais importante está em sua
movimentação funcional, ou seja, sua intenção de significar algo. Este é o sentido primário da
linguagem enquanto uma forma simbólica.
(...) a verdadeira unidade da linguagem, se é que existe tal unidade, não pode ser
substancial; deve antes ser definida como uma unidade funcional. Essa unidade não
pressupõe uma identidade formal ou material. Duas línguas diferentes podem
representar extremos opostos, tanto em relação aos seus sistemas fonéticos como aos
seus sistemas de partes da fala. Isso não impede que cumpram a mesma tarefa na
vida da comunidade que as fala. O que importa aqui não é a variedade dos meios,
mas sua adequação e coerência com o fim. 41
Neste ponto, falamos no homem em seu sentido universal. A grande variedade de
linguagens existentes deriva de povoados diferentes que buscaram, em tempos primitivos,
compreender o mundo; por fim, puderam fundamentar símbolos e compreender, cada cultura
a seu modo, que tudo tem um nome, e que este é o princípio para que nas coisas possamos
depositar o significado (que, com o desenvolvimento cultural, ganha complexidade e aumenta
seu viés conceitual).
Quanto ao momento em que um indivíduo se insere nesta situação de tratar as coisas
por nomes, Cassirer exemplifica de maneira bastante simples, remetendo o homem à primeira
fase de sua vida de e seus primeiros contatos com o mundo conceitual:
O nome, no desenvolvimento mental da criança, tem uma função de primeira
importância a desempenhar. (...) Ao aprender a dar nome às coisas, a criança não se
limita a acrescentar uma lista de sinais artificiais ao seu conhecimento prévio de
objetos empíricos prontos. Aprende antes a formar conceitos desses objetos, a entrar
de acordo com o mundo objetivo. (...) Suas percepções vagas, incertas e flutuantes e
seus sentimentos confusos começam a assumir um novo aspecto. Pode-se dizer que
41 CASSIRER, 2005, p. 214.
48
eles se cristalizam em torno ao nome como um centro fixo, um foco para o
pensamento. (...) A avidez e o entusiasmo pela fala não têm origem em um simples
desejo de aprender ou de usar nomes; marcam o desejo de descobrir e conquistar um
mundo objetivo. 42
Este novo relacionamento com o mundo, então, é uma nova forma de entender as
coisas de maneira abstrata, porém objetiva. Pois demarcando um objeto através de um
conceito, o homem percebe que todas as coisas podem se relacionar através deste mundo
conceitual, ou seja, deste mundo simbólico. Um símbolo lingüístico abarca muitas
características em um único conceito, e o mesmo pode ser muito variável e mutável ? como é
característico de uma forma simbólica.
Para finalizar este tópico, citamos um parágrafo completo de Susanne Langer, pois o
mesmo consiste em uma reflexão bastante oportuna para pensarmos na linguagem em uma
abordagem largamente antropológica:
A linguagem é, sem dúvida, o produto mais momentoso e ao mesmo tempo mais
misterioso da mente humana. Entre o mais claro grito animal de amor, ou
advertência, ou ira, e a mínima e mais trivial palavra de um homem, permeia um dia
inteiro da Criação ? ou, em uma frase moderna, um capítulo inteiro da evolução. Na
linguagem, temos o uso livre e consumado do simbolismo, o registro do pensar
conceitual articulado; sem a linguagem, parece não existir nada semelhante ao
pensamento explícito. Todas as raças de homens ? até os habitantes dispersos e
primitivos da selva profunda, e os canibais animalescos, que viveram durante
séculos em ilhas afastadas ? dispõem de sua linguagem completa e articulada.
Parece que não há linguagens simples, amorfas ou imperfeitas, tais como se
esperaria naturalmente encontrar em conjunção com as culturas inferiores. Povos
que não chegaram a inventar tecidos, que vivem sob tetos de galhos dobrados, que
não precisam de vida privada, que não se importam com a sujeira e assam os
inimigos para o jantar, hão de conversar, não obstante em seus festins bestiais, em
uma língua tão gramatical quanto o grego e tão fluente quanto o francês.43
Tal passagem denota um sentimento de igualdade entre os homens, e parece contribuir
muito para a nossa reflexão. Pois aqui não estamos hierarquizando os homens em seus
aparatos culturais; muitas vezes enfatizamos alguns aspectos, mas estes possuem a função,
nesta pesquisa, de aproximar-nos das culturas e não percebê-las de maneira tão alheia. Porém,
nosso objetivo é sempre atingir a compreensão do homem em sua totalidade.
42 CASSIRER, 2005, p. 217.218.
43 LANGER, 2004, p. 111-112.
49
4.4. Futuro e passado, história e memória.
"A história do mundo é o juízo do mundo"
Friedrich W. Hegel
Para refletirmos a respeito do homem enquanto um ser simbólico, na perspectiva de
que estes símbolos possuem uma dinamicidade relativa ao próprio desenvolvimento da
civilização humana, é muito importante discutirmos sobre a história da humanidade. A
natureza histórica e cultural do homem são aspectos muito fortes da natureza humana
enquanto tal. Pois é através do desenvolvimento da cultura que o homem caminha, sob os ares
de uma evolução simbólica (esta, muito mais dinâmica que o lento processo orgânico de
evolução).
De forma muito mais autônoma e significativa, portanto, que o restante da natureza, o
homem coordena o desenvolvimento de sua história, como um escritor ou um desenhista
fazem seus trabalhos. Para os animais, tudo está largado a um destino comum, coordenado
por princípios naturais. Portanto, existe uma história natural, que consiste no desenrolar dos
princípios universais e necessários do universo; e existe a história humana, que está
relacionada aos feitos do homem no decorrer de seu desenvolvimento cultural.
É oportuno que pensemos que está muito claro para o pensamento antropológico que o
homem também é parte da história natural de todas as coisas, assim como é parte integrante
da natureza. Porém, talvez a partir do momento em que sua autonomia simbólica lhe fez capaz
de criar e fundamentar uma coisa como a escrita, ainda em tempos muitos primitivos da
civilização44, seu destino mudou radicalmente, e houve uma ruptura (simbólica, conforme
apontamos) entre história natural e história humana.
Também nos parece importante pensar a respeito da função da história para o homem,
e cabe-nos apontar a idéia de que a história não está, simplesmente, fadada à demarcação de
fatos ocorridos em determinada época. Há um sentido simbólico muito mais profundo, que se
trata da compreensão da evolução cultural do homem. A perspectiva de que, através do estudo
44 A escrita está mais como um exemplo referencial, já que é de muita importância para a cultura humana
e demarcou um grande salto na produção cultural dos homens. Porém, é muito importante lembrarmos que há
muitos estudos em Arqueologia que se utilizam de símbolos pré-históricos, deixados por povos muito antigos,
para apontar idéias e circunstâncias em que viviam estes antigos homens.
50
da história, podemos observar que o homem passou por muitas compreensões equivocadas e
que estes erros podem servir de aprendizado para as próximas gerações.
Conforme já havíamos citado anteriormente, Kant afirma que o homem possui um
"potencial infinito" que transcende ao individual, e que flui através da sucessão de gerações.
Faz parte da natureza humana, portanto, que indivíduos depositem seu trabalho e energia em
prol de gerações futuras, pois assim será formado o quadro histórico e cultural da raça
humana. Segundo as palavras de Kant:
(...) as gerações passadas parecem cumprir suas penosas tarefas somente em nome
de gerações vindouras, preparando para estas um degrau a partir do qual elas possam
elevar mais o edifício que a natureza tem como propósito, e que somente as gerações
posteriores devam ter a felicidade de habitar a obra que uma longa linhagem de
antepassados (certamente sem esse propósito) edificou, sem mesmo poder participar
da felicidade que preparou. E por enigmático que isto seja, é, entretanto, também
necessário, quando se aceita que uma espécie animal deve ser dotada de razão e,
como classe de seres racionais, todos mortais, mas cuja espécie é imortal, deve
todavia atingir a plenitude do desenvolvimento de suas disposições.45
O que Kant busca afirmar nesta citação, é que a compreensão do desenvolvimento da
história humana só pode encaminhar a humanidade para o "melhor", embora tal afirmação
possa estar um tanto equivocada, dependendo da perspectiva tomada.
Se formos pensar que o estudo da história realmente nos fornece dados que auxiliam a
nossa compreensão em direção a uma abertura da mente, devido à sucessão de paradigmas
correspondente à sucessão de épocas, talvez realmente a humanidade esteja se dirigindo rumo
ao "melhor", como afirma Kant; porém, se recorrermos ao fato de que existem culturas muito
análogas ao redor do globo terrestre, e que não podemos dizer que uma é mais evoluída que a
outra pelo simples fato de que elas não partilham da mesma realidade, aí a direção da
humanidade para o "melhor" ou o "pior" talvez não mereça ser mencionada. Mas as duas
perspectivas são importantes para seguirmos adiante.
Como uma forma de expressão simbólica, talvez possamos dizer que a História é a
memória cultural da humanidade: traz ao presente tudo o que o ser humano já foi no passado,
e influencia seus pensamentos e reflexões acerca do futuro. Porém, o objeto da história é
principalmente o que diz a respeito do passado. Retomamos Cassirer:
Se um físico está em dúvida quanto aos resultados de uma experiência, pode repetila
e corrigi-la. Encontra seus objetos presentes a qualquer momento, prontos para
45 KANT, 2003, p. 7-8.
51
responder às suas perguntas. Mas com o historiador o caso é diferente. Seus fatos
pertencem ao passado, e este foi embora para sempre. (...) [O historiador] não pode
confrontar os próprios acontecimentos, e não pode entrar nas formas de uma vida
anterior. Só pode abordar seu tema de maneira indireta. Precisa consultar suas
fontes. Estas, porém, não são coisas físicas no sentido usual do termo. Todas
implicam um movimento novo e específico. O historiador, como o físico, vive em
um mundo material. No entanto, o que ele encontra logo no início de sua
investigação não é um mundo de objetos físicos, mas um universo simbólico ? um
mundo de símbolos. Qualquer fato histórico, por mais simples que possa parecer, só
pode ser determinado e entendido por uma análise prévia dos símbolos. Os objetos
primeiros e imediatos do nosso conhecimento histórico não são coisas ou eventos,
mas documentos ou monumentos. Só através da mediação e da intervenção desses
dados simbólicos podemos apreender os dados históricos reais ? os acontecimentos
e os homens do passado.46
Perante esta afirmação, fica um pouco mais claro o que queremos dizer quando
falamos em um "fato histórico"; trata-se, pois, de um fato simbólico, isto é, não somente um
fato que causou revoluções no mundo físico, mas na forma simbólica do homem conceber o
mundo. Ou seja, não adianta que o historiador simplesmente pesquise, por exemplo, quantas
milhares de pessoas migraram para a cidade de Caxias do Sul no período de vinte ou
cinqüenta anos, se não levar em conta as transformações culturais ocorridas na cidade desde
então. De onde eles vieram? Por que motivo vieram? Há algo de especial na cidade? Se há, tal
coisa fora encontrada? Talvez seja muito difícil sabermos estes parâmetros sob linhas
individualizadas, correspondentes a famílias ou sujeitos; porém, o que importa para a
construção do fato histórico é o efeito sócio-cultural de tal manifestação. Somente assim
poderemos abranger o coletivo e sua complexidade de transformações.
Mais difícil ainda é interpretar o conteúdo simbólico de fatos ocorridos há muito
tempo, não cinqüenta anos, mas talvez quinhentos anos, ou então cinco mil. Os documentos,
monumentos, registros materiais pesquisados, estes não são simplesmente "matéria morta".
Tratam-se de mensagens vivas do passado47, as quais precisam ser compreendidas pelo
historiador em toda sua complexidade simbólica, pois possuem uma linguagem própria, talvez
muito alheia ao que podemos entender de imediato, mas que precisam ser decifradas para que
seja possível entender sua relevância cultural e sua importância enquanto símbolo de uma
geração passada.
Por fim, é importante anotarmos que o homem estuda a história não simplesmente para
resgatar fatos que foram significativos somente no passado. A busca pela história do homem é
também uma busca relativa ao autoconhecimento:
46 CASSIRER, 2005, p. 284-285.
47 Ibidem, p. 289
52
A arte e a história são os mais poderosos instrumentos da nossa indagação sobre a
natureza humana. Que saberíamos sobre o homem sem essas duas fontes de
informação? Ficaríamos dependentes dos dados da nossa vida pessoal, que só nos
podem proporcionar uma visão subjetiva e que, na melhor das hipóteses, não passam
de fragmentos dispersos do espelho partido da humanidade. 48
Portanto, o estudo da história se revela um instrumento indispensável para chegarmos
a compreender os fenômenos culturais e sociais, e a partir disto, sugerir novas visões a
respeito do homem, um homem que não está somente aí, à nossa frente, mas que também é
resgatado do passado para ser direcionado a um futuro, por assim dizer, "melhor". Pois os
questionamentos a respeito do passado e do futuro se integram na vida existencial do homem,
que vive o presente sempre nestes três tempos: resgatando sua memória, projetando-se para o
amanhã, e agindo conforme suas possibilidades perante o agora imediato. O homem existiu, e
ele esteve ali. O homem existe, e ele está aqui. O homem existirá, e ele também estará lá.
5.5. Ciência e o princípio metódico de conhecimento
"A ambição da ciência não é abrir a porta do saber
infinito, mas pôr um limite ao erro infinito"
(Bertold Bretch)
A ciência aparece na obra de Cassirer como o princípio mais elevado de expressão da
cultura humana, pois se trata de algo que é de certa forma recente e que só pôde se
desenvolver sob condições especiais, essencialmente metodológicas. Desde os tempos
modernos, o conhecimento científico serve de base teórica para um grande número de
façanhas humanas, tais como a medicina, a física, a metereologia e a arquitetura. Tais
exemplos denotam objetivos bastante distintos e mesmo assim partilham de um método
científico para se realizarem, e agem desta forma em muitas culturas ao redor do globo
terrestre.
A concepção de ciência que é comum aos ocidentais surgiu na era dos grandes
pensadores gregos, por volta do Século V a.C ? antes de tal época, a mesma não existia em
seu sentido específico ? e só passou a fazer parte, efetivamente, da sociedade e cultura
humanas, a partir do Renascimento (Século XVI d.C), onde a mesma necessitou ser
48 CASSIRER, 2005, p. 334.
53
"redescoberta", devido às fortes opressões que sofreu por toda Idade Média. E logo que
pensadores e pesquisadores voltaram a pensar nas possibilidades que o conhecimento
científico poderia exercer sobre a vida humana e suas relações para com o mundo e com a
sociedade, tantas foram as descobertas que a mesma logo tornou-se um princípio
"incontestável" para a sociedade ocidental.
Até os dias de hoje, vemos na ciência a resposta para muitos problemas que envolvem
o ser humano e o mundo com o qual ele se relaciona. Para exemplificar, podemos falar sobre
a área da saúde, na qual as pessoas da sociedade atual depositam uma credibilidade
exacerbada, na medicina científica, nos fármacos químicos, nas avançadas técnicas da
fisioterapia. São poucas as pessoas que utilizam outras metodologias para curar uma doença,
como tomar um chá para a cura de uma gripe. As cidades possuem longas farmácias e nelas
muitos comprimidos. É muito comum que as pessoas estejam se utilizando destes métodos
para a cura, sendo que a medicina alternativa é cultuada por poucos e apresenta resultados não
tão rápidos ? e a sociedade contemporânea se demonstra cada vez mais pragmática.
Citamos a medicina como um mero exemplo; são diversas as áreas que se encontram
envolvidas com o conhecimento científico. A cultura ocidental o concebe como a garantia de
um mundo constante, de soluções pragmáticas e bem estruturadas. E por ser, digamos assim,
o "atual paradigma" de grande parte das sociedades do mundo contemporâneo, Cassirer a
concebe como a forma simbólica mais elevada entre as outras:
Não existe nenhum segundo poder no nosso mundo moderno que possa ser
comparado ao do conhecimento científico. Este é proclamado como o ápice e a
consumação de todas as nossas atividades humanas, o último capítulo da história do
gênero humano e o tema mais importante de uma filosofia do homem.49
Podemos ver que o próprio autor demonstra credibilidade nos princípios cognitivos da
ciência. Ela está aqui como um "último produto", como uma "última invenção" da
humanidade. Se é mais elevada do que outras formas simbólicas, pelo simples fato de ter
como função o conhecimento do mundo e das coisas, talvez seja algo complicado de
concordarmos e mantermos adiante, pois a ciência não nos trouxe somente o "conhecimento
do mundo", mas novas formas de lidar com o mundo.
Pois com a era do conhecimento científico também brindamos a era do homem, o
momento em que as crenças míticas ficaram em segundo plano e deram lugar às habilidades
49 CASSIRER, 2005, p. 337.
54
dos homens enquanto pesquisadores e investigadores do mundo. Aos poucos, o homem travou
novos conhecimentos a respeito da constituição dos seres vivos e da matéria "morta". Corpos
celestes, animais e fenômenos naturais foram categorizados, e o próprio universo foi
submetido a teorias onde sua origem e seu destino são debatidos e explicados, através do
conhecimento científico. Razão e experiência uniram-se em uma jogada contornada por
problemas de método. E o método, primeiramente apoiado por René Descartes (1596-1650) e
Francis Bacon (1558-1626), fora adotado como princípio básico para o conhecimento. Sem
um método, o homem não teria como justificar sua pesquisa. Tal metodologia fora discutida
até os dias de hoje sob diversas perspectivas, mas mesmo assim seu primado permanece:
prova disto é a presente pesquisa e todas as regras descritivas e metodológicas pelo qual ela se
situa. A finalidade disto está na objetividade, pois sem a mesma o entendimento entre
pesquisadores e estudiosos poderia se complicar. Mas não estamos em posição de questionar
isto no momento, e sim discutir idéias a respeito do caráter classificador e metodológico que o
homem desenvolveu a partir da ciência.
A ciência só pode ser "válida" através da objetividade; porém, isto não quer dizer que
o homem passou a ser um "ser objetivo" a partir da ciência. Antes dos conceitos científicos, já
havia conceitos míticos e lingüísticos, que estavam para uma função representativa e
explicativa dos fenômenos. A ciência pôde transitar por conceitos mais complexos, mas isto
não quer dizer, propriamente, que esteja mais próxima dos fenômenos enquanto tais. Todo
conhecimento é um conhecimento simbólico. Trata-se de uma construção humana,
semelhante à arquitetura da própria linguagem:
Todos os sistemas classificatórios são artificiais. A natureza, como tal, contém
apenas fenômenos naturais e diversificados. Se colocarmos esses fenômenos em
conceitos de classe e leis gerais, não estaremos descrevendo fatos da natureza. Todo
sistema é uma obra de arte ? resultado da ação criativa consciente.50
Isso quer dizer, tanto nomes lingüísticos quanto nomes científicos são determinados
para corresponder a uma mesma função, ou seja, são o resultado e o produto de um mesmo
"instinto classificatório".
Analisando a ciência como uma forma simbólica equiparada às demais formas do
expressar-se simbolicamente, podemos citar também seu caráter paradigmático, que é também
parecido com o que ocorre na arte ou na religião, por exemplo. Pois há sempre um símbolo
50 CASSIRER, 2005 p. 341.
55
que está para representar o cerne sustentador do campo de expressão ? neste caso, a ciência,
que tem o método ou o princípio classificatório como cerne. É muito importante deixarmos
claro que este cerne não é, por sua vez, constante e perene. Ele só está onde está por que uma
espécie de mito foi criado ao redor dele, quer dizer, neste caso, muitas pessoas crêem em
determinadas premissas científicas e isso acaba por constituir um paradigma científico. Tal
paradigma é substituído por outro conforme as necessidades históricas e as novas descobertas
científicas. Este fato acontece também em outras formas simbólicas, mas como a ciência tem
como função o conhecimento, é importante citarmos este caráter "aberto" que ela possui ?
assim como todas as outras formas de expressão que estão por envolver o mundo construído
pelo homem, este complexo animal.
A autoridade científica torna a própria ciência problemática para nossa discussão. Pois
o próprio Cassirer a trata como se a mesma estivesse no alto de uma pirâmide onde estariam
as outras formas simbólicas. Com isto não podemos concordar, pois antes da abordagem
cassireriana, nos interessa investigar o homem a nível cultural; e se pensarmos que a ciência
se trata de um paradigma no qual estamos inseridos, talvez seja necessário expormos uma
concepção que contrarie os postulados científicos. Para isto temos Paul Feyerabend (1924-
1994), que na obra Contra o Método (1970) expôs em diversas perspectivas uma descrença
científica. Citemos uma passagem:
O mero fato de que [a ciência] existe, é admirada e tem resultados não é suficiente
para fazer dela uma medida de excelência. A ciência moderna surgiu de objeções
globais contra visões anteriores, e o próprio racionalismo, a idéia de que há regras e
padrões gerais para guiar nossos assuntos, assuntos de conhecimento até, surgiu de
objeções globais ao senso comum (...). Devemos abster-nos de nos ocupar com
aquelas atividades que deram origem à ciência e ao racionalismo em primeiro lugar?
Devemos ficar satisfeitos com seus resultados? Devemos admitir que tudo o que
aconteceu depois de Newton (ou depois de Hilbert) é perfeição? Ou devemos
admitir que a ciência moderna talvez tenha falhas básicas e possa estar precisando
de uma mudança global?51
A idéia que Feyerabend defende é de que a ciência não pode ser vista como uma
medida superior às outras formas de conhecimento, e tal afirmação é útil no contexto em que
dialogamos para podermos pensar que seu rigor metodológico nem sempre é genuíno ou
verdadeiro. Porém, também não estamos em posição de simplesmente questioná-la, apenas
51 FEYERABEND, 2007, p. 289.
56
equilibrá-la entre as demais formas simbólicas, de modo que possamos compreender que a
mesma tem a credibilidade da sociedade por meio de um consenso social.52
Mas a ciência é um complexo que se dedica tanto à observação dos fenômenos
mundanos (como a botânica ou a física) quanto a operações simbólicas abstratas, como ocorre
com a matemática. Esta, por sua vez, é uma ciência que opera unicamente através de símbolos
funcionais. É oportuno pensarmos que, como qualquer forma simbólica, os conceitos
envolvidos percorram as mudanças históricas da humanidade sempre em seu sentido
"elástico" e flexível; ou seja, como são produtos do trabalho humano, devem estar tão abertos
à mudança e à contradição quanto o homem está ? embora seja muito difícil que um círculo
de pessoas compreenda esta flexibilidade; na maioria das vezes, um conceito é tratado como
um símbolo que, depois de definido, se encontra fechado. Não podemos concordar com isto
pois estamos tratando propriamente de um ser que expressa uma abertura contrária à tal
concepção.
Cassirer expressa, na seguinte passagem, em quê consiste o trabalho do cientista, e
qual sua importância perante as outras formas simbólicas:
O cientista sabe que ainda existem vastos campos de fenômenos que ainda
não foi possível reduzir a leis estritas e a regras numéricas exatas. Mesmo assim,
continua fiel a este credo pitagórico geral: acha que a natureza, tomada em seu
conjunto e em todos os campos especiais é "um número e uma harmonia". Diante da
imensidão da natureza, muitos dos maiores cientistas podem ter tido aquela
sensação especial que foi expressada em uma frase famosa de Newton. Eles podem
ter pensado que, em seu próprio trabalho, eram como uma criança que caminha
pelas margens de um imenso oceano e apanha ocasionalmente um calhau cuja cor ou
forma atraem seu olhar. Tal sentimento modesto é compreensível, mas não
proporciona uma descrição verdadeira e completa do trabalho do cientista. Este não
pode atingir seu objetivo sem uma estrita obediência aos fatos da natureza. Esta
obediência, porém, não é submissão passiva. A obra de todos os grandes cientistas
naturais (...) não foi uma mera coleta de fatos; foi uma obra teórica, ou seja,
construtiva. Essas espontaneidade e produtividade [sic] são o próprio centro de todas
as atividades humanas. É o mais alto poder do homem, e designa ao mesmo tempo o
limite natural do nosso mundo humano. Na linguagem, na religião, na arte e na
ciência, o homem não pode fazer mais que construir seu próprio universo ? um
universo simbólico que lhe permite entender e interpretar, articular e organizar,
sintetizar e universalizar sua experiência humana.53
Perante esta afirmação, a ciência parece equiparar-se às outras formas simbólicas: trata-se de
um dos meios utilizados pelo homem para compreender o mundo ao seu redor, e por envolver
52 Nos dias atuais, há variados estudos em Filosofia da Ciência que denotam o caráter provisório do
paradigma em que a ciência se encontra, e por assim é importante dizer que atualmente boa parte dos cientistas
têm consciência de que suas metodologias não podem passar de medidas provisórias de conhecimento.
53 CASSIRER, 2005, p. 358-359.
57
profundas construções teóricas e/ou empíricas, acaba por fundamentar conceitos mais
complexos. Talvez seja esta a "elevação" que Cassirer propunha nos primeiros momentos em
que falou sobre ciência e método.
4.6. A Arte, expressão genuinamente humana.
"Sempre que a arte acontece, isto é, quando
há um início, um abalo atinge a história,
a história tem início ou volta a iniciar-se"
Martin Heidegger
Por fim, decidimos deixar a arte como a última forma simbólica a ser discutida, pois a
mesma aparenta ser a primeira forma de expressão propriamente humana. E antes de
entrarmos em comentários de Cassirer ou de outros autores que pensaram sobre a criação
artística, parece-nos importante tecer um pequeno comentário livre de referências, tal como a
criação artística "pura" o faz.
Nos tópicos anteriores, ao comentarmos a respeito das outras formas simbólicas,
sempre buscamos, de forma ou de outra, delimitar sua função, a fim de descobrir um princípio
que denotasse uma necessidade humana. Portanto, podemos resumir, em poucas palavras, que
a função da linguagem é a comunicação e a definição conceitual; da história, o resgate da
memória de gerações passadas, seus hábitos e costumes; da ciência, o conhecimento das
coisas mundanas, organizadas em categorias e classificações; da religião, acalmar ou resolver
certos anseios sobre o futuro, ou então, de certa forma, atribuir à vida um sentido
transcendente; mas e quanto à arte? Fica muito difícil definir uma função para esta forma de
expressão. Pois a arte não necessita de conceitos para existir. Anterior ao mito e à linguagem,
a arte seria como uma "forma de expressão originária", de onde teriam surgido todas as outras
formas simbólicas. Trata-se do primeiro impulso do ser humano e o mesmo não necessita de
significação ? embora através da arte seja possível expressar sentimentos e pensamentos
carregados de significado. Talvez este seja o maior mistério da arte: não possuindo uma
função necessária, ela pode transitar entre todas as formas simbólicas e ser a chave para
encontrarmos a real autonomia do ser humano.
Pois através da arte, o homem pode expressar sentimentos e emoções que envolvam
sua própria pessoa, ou então a cultura e a sociedade em que ele se insere, ou parte da história
58
do mundo. Ou, então, nada disso. Nada disso. Através da arte, caso o homem queira, ele é
capaz de expressar o nada, e isto pode ser muito profundo sem precisar de um conceito. Sem
precisar significar algo propriamente justificado. E talvez pareça contraditório, pois a
autonomia do homem é sempre expressa através da arte, já que esta é obra direta dele mesmo.
Mas aqui, na arte, também há espaço para o contraditório. Pois o homem, em toda sua
ambigüidade e abertura, em seu caráter simbólico, racional, emocional, transcendental ? todos
estes aspectos podem ser reais através da arte. Pois a mesma jamais necessitaria de uma
justificativa. Como já foi dito, ela pode significar coisas muito profundas, como um ensaio
filosófico significa, mas também pode nada significar. Perante isto, ela esboça horror e
maravilha. Talvez nela possamos encontrar a real natureza do homem ? pois ela está como
condição de possibilidade para a cultura (que é um agregado de criações humanas, ou seja,
produtos propriamente artísticos), e demonstra-se muito mais genuína e essencial. A arte é um
princípio existencial do ser humano!
E, além disso talvez seja através da arte que uma coisa como a filosofia seja possível,
pois também há um princípio artístico no questionamento filosófico. Pois a filosofia surge do
questionamento em relação às coisas dadas, enquanto a arte por muitas vezes "ignora" as
coisas dadas em função de criar algo inteiramente novo, e propor uma "outra realidade". A
filosofia não age propriamente assim, mas esta forma de agir talvez tenha inspirado muitas
obras filosóficas.
Mas e Cassirer? Por um momento, o viés artístico propriamente humano nos fez
esquecer de nosso principal referencial teórico? Não. De certa forma, Cassirer poderia
concordar com tais apontamentos, embora ele considere a arte como uma expressão simbólica
equiparada às demais. Porém, na passagem seguinte, ele expressa um valor que só a arte
possui:
A linguagem e a ciência são uma abreviação da realidade; a arte é uma
intensificação desta realidade. A linguagem e a ciência dependem de um único e
mesmo processo de abstração; a arte pode ser descrita como um processo contínuo
de concreção.54
A partir desta afirmação, o que podemos visualizar é o fluir da autonomia humana, a
real expressão antropológica, fundado em um "processo de concreção" que pode ser anterior
ou até mesmo acompanhar a conceituação.
54 CASSIRER, 2005, p. 235.
59
Quanto ao sentimento proporcionado pela arte, parece-nos oportuno citar a seguinte
passagem:
O que sentimos na arte não é uma qualidade emocional simples ou única. É o
processo dinâmico da própria vida: a oscilação contínua entre pólos opostos, entre
alegria e pesar, esperança e temor, exultação [sic] e desespero. Dar uma forma
estética a nossas paixões é transformá-las em um estado livre e ativo. Na obra do
artista, o papel da própria paixão foi transformado em um poder formativo. 55
Mais uma vez, é o processo criativo e autônomo do homem que está em jogo. Na arte,
o homem se vê capaz de dar uma nova forma às coisas, perante perspectivas únicas,
individuais, personificadas. É a intencionalidade humana expressa em seu estado mais
genuíno e claro, um princípio autônomo que reverbera sobre o próprio sujeito:
O olho artístico não é um olho passivo que recebe e registra a impressão das coisas.
É um olho construtivo, e só por meio de atos construtivos podemos descobrir a
beleza das coisas naturais. O sentido da beleza é a susceptibilidade à vida dinâmica
das formas, e esta vida não pode ser apreendida sem um processo dinâmico
correspondente em nós mesmos. 56
Quanto à beleza (e ainda não havíamos falado dela), trata-se de um primado
existencial presente no homem. Há beleza tanto na natureza quanto nas obras artísticas, mas a
mesma só pode ser compreendida pelo homem, e isto faz parte de seu sentido sentimental e
emocional, categorias que acompanham o seu caráter artístico.
Há também aqueles autores que atribuem à arte um sentido social ou político.
Pensamos que a arte não está simplesmente desvinculada a estes sentidos, mas estes mesmos
não se tratam de "condições necessárias" da arte. Cassirer diz algo a respeito:
Nada no mundo físico ou moral, nenhuma coisa natural e nenhuma ação humana é
por sua natureza e essência excluída do domínio da arte, porque nada resiste ao seu
processo formativo e criativo. 57
O autor confere à arte, portanto, domínio do foco moral ou não. Isto quer dizer que ela
pode expressar-se moralmente ou ficar alheia a isto ? pois se assim ficar, não deixará de ser
arte, apenas estará expressando-se sem um direcionamento moral.
55 CASSIRER, 2005, p. 244.
56 Ibidem, p. 247.
57 Idem, p. 258.
60
Além do mais, o foco da nossa pesquisa é antropológico e portanto interessa-nos muito
pensar na criação da arte enquanto tal, isto, é, no sentido da produção artística para o homem,
do que atribuir à mesma significações externas posteriores à própria criação artística do
homem. O que queremos dizer é que, mesmo sem significado, a arte é muito significativa. É
uma ação muito espiritual, que passa por margens rasas ou águas profundas, na sombra ou no
sol. Cassirer expressa a profundidade da criação artística na seguinte passagem:
Não podemos entender a obra de arte submetendo-a a regras lógicas. Um manual de
poética não nos pode ensinar a escrever um bom poema. A arte surge de outras
fontes, mais profundas. Para entendermos estas fontes, devemos primeiro mergulhar
nos mistérios da nossa vida inconsciente. O artista é uma espécie de sonâmbulo que
deve seguir seu caminho sem a interferência ou o controle de qualquer atividade
consciente. Despertá-lo seria destruir seu poder.58
E o que seria, portanto, "despertá-lo"? Talvez possamos dizer que, toda vez que
tentamos atribuir um conceito à uma obra que por assim dizer "não tem um conceito",
estamos, de certa forma, "tentando despertar o artista", ou "despertar o sentido da obra
expresso pelo artista". Porém, muitas vezes não pensamos que o próprio artista possa pensar
que a obra não possua um sentido formal a não ser a expressão enquanto tal, seja as cores
distribuídas por uma tela, sejam notas formadoras de uma canção.
Talvez o aspecto fundamental da arte seja expressar a beleza sem necessitar de um
conceito, tal como diria Kant 59; talvez, seja seu poder de dar início a uma história e um
"mundo", tal como diria Heidegger 60; o próprio Cassirer a define, em seu Ensaio Sobre o
Homem, como "manifestação genuína de nossa vida interior"61. Talvez não seja tão simples,
pois a arte também é uma estranha mistura entre razão e sentimentos. Nossa concepção se
mantém reservada em seu aspecto originário de expressão, querendo ou não significar algo
objetivo ou subjetivo. A arte tem este poder e talvez seja melhor não a expor a certos
reducionismos.
58 CASSIRER, 2005, p. 263.
59 Immanuel Kant, em sua "Crítica da Faculdade de Julgar", publicada em 1790.
60 Martin Heidegger, na obra "A Origem da Obra de Arte", de 1950.
61 CASSIRER, 2005, p. 276.
61
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Seria possível falarmos, pura e simplesmente sobre considerações finais? Isto é, uma
conclusão? Pois o que fizemos no decorrer deste trabalho foi analisar o homem sob diversas
perspectivas, e talvez poderíamos pensar que pouco a pouco as alternativas foram se
esgotando e por fim formulamos uma idéia mais concisa do quê consiste o homem ? este
estranho animal. Mas seria cedo demais para se falar em uma conclusão. Acreditamos (e isto
se trata de uma questão de razão e sentimento) que a natureza do homem nos reserva maior
abertura e não será num estudo filosófico formal que poderemos encontrá-la, ou pelo menos,
não em uma pesquisa como esta, pois necessitaríamos investigar muito mais, até chegar ao
ponto de desistirmos do ensaio ? aí, por fim, poderia nos parecer que o sentido do homem
fora encontrado, embora apenas haveríamos desistido da investigação ou esgotado
possibilidades de reflexão.
Para uma breve recapitulação ou rememoração do que vimos: no primeiro capítulo
tratamos dos principais referenciais da pesquisa, vida e obra de Ernst Cassirer e um histórico
das concepções antropológicas na história da filosofia. Decidimos incluir o histórico, pois o
mesmo foi de utilidade para pensarmos sobre a questão antropológica sob diversos pontos
distintos. No segundo capítulo, a distinção entre natureza e cultura se fez necessária e se
estendeu em um debate que envolveu diversas referências, pelo fato de tratar-se de uma
questão bastante complicada. Mas por fim, chegamos à conclusão de que a natureza humana é
de fato cultural e isto pareceu o mais oportuno a se pensar, após entrarmos em acordo com
diversos autores, incluindo o próprio Cassirer. Já no terceiro capítulo, a teoria das formas
simbólicas foi introduzida e comentada, de forma que desde então pudéssemos conceber o
homem como um "animal simbólico", sem esquecer que tal definição não exclui suas
particularidades culturais, apenas atribui ao símbolo a formação da cultura humana. E por fim,
no quinto capítulo, as formas simbólicas, na divisão clássica proposta por Cassirer (mito,
religião, linguagem, história, ciência e arte) foram comentadas uma a uma, de modo que
deixamos a arte por último para expressar que ela é, de fato, uma característica comum a
todas as outras formas simbólicas de expressão e que talvez esta seja a chave para uma nova
62
filosofia do homem, situado em seu viés artístico. Porém, tal afirmação exigiria uma nova
investigação e, por assim dizer, talvez nossa pesquisa não tivesse um término.
Portanto, o que estamos a propor são estas "considerações finais", muito inconclusas
por essência, mas que se articularam através de vários conceitos propostos por Cassirer e
outros filósofos, e pensamos que tal pesquisa possa contribuir para futuros ensaios filosóficos
e novas formas de pensar sobre o ser humano enquanto tal. Bem como afirmamos em nossa
introdução, o objetivo principal desta pesquisa é desenvolver reflexões próprias para uma
Antropologia Filosófica, e talvez preparar o terreno para futuras filosofias sobre o homem. Se
o objetivo foi ou não alcançado, é algo bastante difícil de dizer, mas temos certeza que
reflexões oportunas foram construídas e especuladas.
Este poder que é inerente ao homem, o poder de transformar natureza em cultura e
assim estabelecer idéias e leis surgidas de sua autonomia sob um novo mundo, o mundo
humanizado, talvez tenha tornado o homem um ser mesquinho e arrogante, que em muitas
vezes não se dá conta de que o restante da natureza não poderá sempre estar "sob seu
controle", lhe proporcionando condições de bem-estar e bem-viver. Mas talvez seja
importante, além de não desistir da natureza, não desistir do homem: pois talvez o primeiro
passo seja investigar sua essência, para depois fazer análises a respeito de suas ações perante a
sociedade que ele mesmo construiu e perante a natureza que sempre lhe abrigou. Pensamos
que, se este processo for contínuo e construtivo, chegaremos à filosofias que envolvem a
educação e a conduta moral, e desta forma talvez possamos elaborar uma verdadeira filosofia
do homem, o caminho entre sua natureza e sua civilização.
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REFERÊNCIAS
CASSIRER, Ernst. Ensaio Sobre o Homem (An essay on man, 1944). São Paulo: Editora
Martins Fontes, 2005.
_____________. Linguagem e Mito. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006.
_____________. A filosofia das formas simbólicas. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001.
FEYERABEND, Paul. Contra o Método. São Paulo: Editora Unesp, 2007.
LANGER, Susanne K. Filosofia em Nova Chave. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.
KANT, Immanuel. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São
Paulo: Editora Martins Fontes, 2003.
LAZZAROTTO, Danilo. Antropologia ? uma teoria da evolução cultural. Porto Alegre:
Editora Sulina, 1976.
LIMA VAZ, Henrique Cláudio. Antropologia Filosófica. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
MONDIN, Battista. O homem ? quem é ele? São Paulo: Editora Paulus, 2003.
PORTUGAL, Henrique M. D. O homem em Cassirer. Londrina: Editora UEL, 1996.
RABUSKE, Edvino. Antropologia Filosófica. São Paulo: Editora Vozes, 1986.
SCHELER, Max. A Posição do Homem no Cosmos. Rio de Janeiro: Editora Forense
Universitária, 2003.
______________. O homem e a história. In: Visão filosófica do mundo. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1986.