Com uma desculpa esfarrapada, os visitantes saíram rapidamente, convencidos que algo de errado estava acontecendo lá dentro.

 

Depois de se despedirem, friamente como devia ser, Ágata, ao passar por um dos guichês do  balcão, entregou ao funcionário um bilhete, dizendo lhe, com ar de cumplicidade:

- “Sou a namorada do Karl; estou sem o celular e preciso muito falar com ele. Você poderia entregar-lhe esta nota?”

Ao que o funcionário, colhido de surpresa, respondeu;

- “ Imediatamente, senhorita. Será um prazer!”

Só quando voltaram ao carro, Ágata confessou o pequeno truque ao Dr. Antunes.

Ele não comentou nada, mas ficou satisfeito ao saber que o homem que procuravam estava no Banco.

Repassou imediatamente a informação ao Dr.  Calequim, que agradeceu.  Agora, era só estender a rede e esperar que o passarinho caísse.

 

Mas as coisas não andavam tão tranquilamente no Consulado da Província.

O professor Lientai, conselheiro sênior do Consulado, pessoa de relevo na comunidade, estava furioso, esbravejando tanto na sua sala, que os gritos eram ouvidos da rua.  A vítima de sua incontinência verbal era ninguém menos que o Cônsul Geral, o honorável  Hominton,  que tudo escutava de cabeça baixa, sem ânimo para reagir.

Nos Paises de linha dura, o pessoal diplomático de carreira, tanto nas embaixadas quanto nos consulados, tem perdido, ao longo dos anos, muito de sua autonomia e de suas regalias tradicionais.

Comissários políticos, dissimulados de alguma forma sob cargos de nomes obscuros, como  assistentes, vice adidos culturais, sub  assessores artísticos, conselheiros adjuntos, na realidade dispõem de amplo poder político e impõem rigor no comportamento, para evitar desvios, ideológicos ou de outra natureza. Claro está que também este pessoal não é  imune às tentações e assim, às vezes, algum deles é chamado de volta ou simplesmente desaparece  da representação diplomática sem deixar pistas..

 

É aí que entra novamente o nosso repórter, o Emiliano, sempre muito atento, capaz de captar a distância, por um gesto, um olhar, uma expressão qualquer, as mudanças de comportamento das pessoas – que ele observa constantemente, sem fazer-se notar.

Emiliano tornara-se amigo da Tchi Lai , uma garota muito reservada e quase invisível, que trabalhava no setor de documentação do Consulado. 

Saíra algumas vezes com ela e gostava muito de sua companhia, de sua modéstia, de seus conhecimentos de almanaque,  extensos, interessantes  e úteis, apesar de pouco profundos.

Naquela noite, enquanto Emiliano matutava ainda sobre as razões da explosão, o telefone tocou pegando-o distraído e deixando-o – sem saber por que – sobressaltado.

- “Boa noite, Emiliano!” – era Tchi Lai, com uma expressão  que,  apesar de aparentar normalidade, tinha uma inflexão diferente, como se ela estivesse aflita com algo importante – “você não me chamou mais, não apareceu no consulado e fiquei sem saber  o que lhe aconteceu. Estou com muita saudade de você!”

O tom era mais  intimo, suave, aveludado.

Um tom que em condições normais, Tchi Lai jamais usaria com ele.

-“Gostaria de bater um papinho . Estou me sentindo sozinha esta noite e uma boa conversa com você seria um colírio para os meus olhos....” 

Emiliano lembrou que haviam brincado bastante sobre esta frase feita de “colírio para os olhos” e imediatamente entendeu que havia no chamado dela um inconfundível pedido de socorro. 

– “Eu também estou com saudade, Tchi” – respondeu mais que depressa, para não deixar uma impressão de falta de interesse

– “Estava justamente pronto para sair, comer um lanche e espairecer um pouco. Que tal juntarmos o útil ao agradável e sairmos juntos, daqui a pouco ... 

- “Ótima idéia!” - atalhou Tchi, sem lhe deixar tempo para refletir melhor. Suas suspeitas se confirmaram. Ela precisava de ajuda imediata.

- “Pego o carro e estou com você em dez minutos. Vou tocar a buzina na porta do Consulado. Dá tempo de você ficar pronta?” 

“Sim, sim!” -  Agora a voz do outro lado se fazia mais e mais ansiosa e imperceptivelmente mais aguda. Emiliano concluiu, sem sombra de dúvida, que a situação era bem mais grave do que tinha imaginado. 

Pegou sua arma, o gravador, a máquina fotográfica e saiu da garagem a toda a velocidade.

Em dez minutos estava na frente da porta do Consulado. Nem precisou buzinar. Tchi estava na porta, impaciente como uma namorada diante do atraso do seu  amado. 

Ele ainda fez menção de sair para abrir-lhe a porta do carro, mas ela atravessou correndo o jardim e entrou rapidamente, dando-lhe um inesperado beijo.

–“Arre, chê! “ falou ele em voz alta, sem esconder a emoção  ” noite de sorte para gaúchos, esta!”  e brincou:

- “A amostra valeu, mas eu quero uma confirmação! Vai que de repente você  se enganou de gaúcho!....e eu estou me iludindo à toa!....”  

Tchi sorriu e juntou novamente seus lábios aos do Emiliano.

Ele percebeu que este  comportamento extravagante era motivado pelo stress extremo da garota. Ela sorria, mas estava a ponto de chorar; e implorou:

- “ Vamos sair daqui, depressa, vamos!”

Mas já havia atrás deles um carro preto,  de vidros escuros, desses veículos de aspecto agressivo, tipo entre gorila e orangotango, preferidos pelas empresas de segurança. Estava com os faróis apagados.

- Carro de defunto -  comentou Emiliano.

Atravessaram a avenida Brasil, emaranharam-se no labirinto dos Jardins, onde as ruas parecem dar sempre no mesmo lugar e, por muito que você vire, não consegue sair sem a ajuda de algum guarda.

Experimente perguntar a um pedestre qualquer : além de não saber o nome da rua em que se encontra, em nove vezes sobre dez ele não conseguirá lhe indicar a rota correta para sair do nó : mistérios da cidade grande!

De qualquer forma, o Emiliano despistou o carro preto e dirigiu-se à Marginal. Entrou no Shopping Vila Lobos e estacionou no segundo subsolo. 

Tchi estava realmente tensa, nervosíssima.

Emiliano, estranhou muito seu comportamento, porque estava acostumado a lidar com as secretárias orientais, sempre  imperturbáveis, donas de um  “aplomb” invejável, nunca perdendo o sorriso, a paciência, a segurança tranquila e sem espalhafato que as caracteriza.

 

Depois que se encontraram na frente de um suco gelado e caprichado, servido pelo mestre Armando,  depois que ela se desfez olhando profundamente nos olhos do Aureliano,  por um tempo que pareceu infinito, finalmente ela pôde começar a falar:

 

 - “Nos três anos em que servi no Consulado, percebi muitas atitudes estranhas, se não suspeitas,  de vários funcionários. A maioria deles foi sendo substituída, ao longo do tempo,  ou chamada de volta ao País, ou transferida para outras representações”.

Fez uma longa pausa, enquanto bebericava o seu suco ; e continuou:

 

 “Lientai, o conselheiro, é realmente a eminência parda do Consulado; é  ele que manda, que dirige, que puxa os fios, fazendo com que os funcionários se movimentem segundo um  plano estabelecido por ele, provavelmente de acordo com o governo central....”

Até ai, o Emiliano sabia.

- “Tchi Lai: - falou de repente, interrompendo-lhe  o fio dos pensamentos -   entenda que, a partir do momento em que cruzou o portão do Consulado, você está correndo um grave perigo; aquele carro que nos seguiu foi o primeiro ato de guerra da Província de Galkamour  contra você.”  A partir de agora, todo o cuidado é pouco; teremos que manter olhos e ouvidos bem abertos e não baixar a guarda um só instante...”

Parou, ao ver a expressão de medo no rosto da garota  e acrescentou, em tom de brincadeira: “para evitar novos perigos, eu a declaro minha prisioneira e não permitirei que você se afaste de mim por mais de três metros...” em nenhuma circunstância.

O rosto da menina desanuviou-se como se o sol tivesse voltado a brilhar, apesar da hora tardia – 10 da noite.

Decidiram jantar num restaurante não excepcional, mesmo porque àquela hora a maioria já começava a encerrar as portas. 

Enquanto esperavam a chegada dos pratos, sua conversa continuou; tão ansiosa estava Tchi para contar, quanto Emiliano para ouvir. 

- Diga-me, Tchi : quem são aquelas três meninas que vivem no consulado (e talvez trabalhem lá) ? Vi que elas só saem juntas, em carro oficial, escoltadas por outro veiculo com chapa do corpo consular. Sabe me dizer quem são?

- É segredo, Emiliano; não  é permitido a ninguém falar com elas e vivem reclusas, num apartamento na ala reservada aos funcionários de carreira.

- Então, você não sabe nada a respeito...

- Não disse isso; muitas vezes, pelo menos uma vez por dia, eu tenho que subir à ala privada, para apresentar ao Professor  Lientai as cópias dos e-mails remetidos . Ele normalmente os verifica com extremo cuidado e assim, minha visita se prolonga – quero dizer, se prolongava – por uma hora, mais ou menos.

- E então?

- Então, era nesse momento que eu podia ver as meninas passando de um aposento a outro. Não são alegres ou desinibidas, como você poderia pensar.

-  Eu não estava pensando nada; tenho uma teoria e queria confirmá-la.

- São apenas funcionárias do governo central, que sofreram uma profunda lavagem cerebral. Não sabem mais  que é o certo e o errado; apenas recebem e executam ordens, como três robôs... .

- Mas então, para que servem?

- Oh, Emiliano como você é ingênuo, sob esta aparência de cínico e viajado...

- Eu chego até certo ponto; não me arrisco a criar uma teoria mais avançada...

- Bem, eu lhe explico: elas servem para levar recados, ou dinheiro, ou pequenos pacotes de alguma mercadoria, que não descobri o que é.

- E é só isso?

- Não, não, Emiliano. Elas são treinadas para enredar pessoas, em geral altos funcionários, suas esposas, amantes e quem estiver na mira do professor.

- Puxa! É assustador!

- Porque? Você tem algum rabo de palha?

- Não, não; Deus me  livre!

- As meninas até que são educadas, distintas, atraentes; trabalham sozinhas ou em conjunto – o que, concorde, aumenta a eficiência das operações .

- Mas você não deveria ter acesso àquelas informações...

- Não, é verdade. Eu sabia da existência de um grande arquivo,  com centenas de gravações, que podem comprometer a vida pública de muitas pessoas importantes

- E como você descobriu isso?

- Foi por mero acaso. Uma tarde, três meses atrás, o professor, estava ocupado, e pediu para esperá-lo na sala à esquerda do corredor.  Ele se enganou; queria dizer a direita. Entrei na esquerda, naturalmente. E descobri o tesouro; tive uns quinze minutos para xeretar a vontade. Vi coisas de arrepiar...

 

Enquanto a conversa fluía, Emiliano começou a sentir-se aflito, inquieto com alguma coisa. Correu rapidamente os olhos pelo salão e descobriu  dois homenzarrões, dois armários vestidos de preto, que esperavam evidentemente o momento oportuno para pegar a moça – e talvez ele próprio.

- Tchi – sussurrou-lhe no ouvido, como se estivesse  fazendo uma declaração de amor.  Saia calmamente e vá até a toalete feminina, no andar térreo. Fique lá não menos de dez minutos. Desça pelo elevador panorâmico da direita (cuidado, direita e não esquerda) até o segundo subsolo. Eu estarei na porta do elevador.

- Mas...

- Nada de mas, Tchi. O jogo está andando e a aposta é alta. É Você!

 

Tchi levantou, tão calmamente quanto pode, passou lentamente diante dos seguranças  e desceu pela escada rolante até o térreo. Eles a seguiam a distâncias, prontos para agarrá-la no momento oportuno.

Emiliano também saiu, mas foi para o elevador central e desceu diretamente ao segundo subsolo.  O carrão preto estava bem ao lado do seu antigo e inconfundível Corsa um-ponto-zero, azul claro desbotado.

Ficou ajoelhado, lidando com o carro dos seguranças, durante um bom tempo.

Quando acabou, saiu calmamente no seu carrinho e ficou na frente do elevador como combinado.  Tchi apareceu.... mas estava no elevador errado. O do lado esquerdo!.  Sem problema; Emiliano avançou, abriu a porta, puxou-a para dentro,  acelerou.  Os dois armários correram para pegar o carro e assim cortar o caminho do Corsa. Mas não chegaram a sair. Estavam com os quatro pneus arreados. 

-“ Gaúcho danado! – exclamou a garota, admirada e feliz

- Menina canhota! – respondeu o Emiliano, dando-lhe um beijo estalado na bochecha – quando isto acabar, vou colocar uma faixa no seu braço direito, para você aprender a distingui-lo e nunca mais errar....

- Mas eu não errei de braço, Emiliano – choramingou ela - só errei de elevador!

 

Voltaram para o centro e depois a Santa Cecília, onde o Emiliano tinha alugado um modesto apartamento.

 

Deu um par de telefonemas e deixou a garota no apartamento de uma família conhecida, um andar acima do dele.

: – O pai dela está esperando para me dar uma surra – explicou. Fiquem com ela por um pouco. Eu volto já, já para pegá-la.

 

Desceu vagarosamente  o lance de escadas e ficou agachado no primeiro patamar, aguardando o que imaginava que aconteceria.

Quinze minutos depois, os brutamontes apareceram e trataram logo de arrombar a porta do apartamento. ,.

Um grupo policial, que Emiliano tinha alertado, não deixou que fizessem estragos.

Carregou-os para a delegacia, sem ficar ouvindo nenhuma justificação, nenhuma queixa, nenhuma ameaça – pois os dois se declararam funcionários do consulado e protegidos por imunidade diplomática.

Foram acusados de tentativa de invasão de domicílio e tentativa de sequestro. Ao ouvirem a palavra mágica, os dois assustaram-se e começaram a gritar:- Não fomos nós! Não fomos nós!  

 

 

 

Logo Emiliano aproveitou a deixa e descobriu, em menos de quinze minutos, onde estavam mantendo Claudia, sequestrada na Santa Casa menos de doze horas antes.

Uma caravana policial seguiu imediatamente para o Embu, no endereço que os dois grandões apavorados  tinham fornecido de graça. 

A moça estava lá, em boas condições, mas precisando de uma cirurgia urgente. Se não a tivessem localizado, estaria perdida. 

Eram duas da manhã, quando finalmente Emiliano resgatou a sua Tchi, levando-a para o seu apartamento .

Não tiveram muita chance de namorar.

Estavam os dois cansados, esgotados, agitados, cheios de pensamentos .

O dia seguinte seria muito melhor.

Desejaram-se a boa noite, como se fossem dois colegiais e adormeceram, em menos de dois minutos, virados cada um para  um lado.

 

Bem cedo, na manhã seguinte, a Dra. Ágata recebeu a visita do Emiliano. Ficou um pouco desiludida  ao saber do recente “caso” entre ele e a secretária do consulado, mas se comportou de maneira muito profissional.     

 

O Dr. Antunes chegou às nove, e a Dra. Ágata o recebeu com o costumeiro sorriso e a xícara de café quente.

Depois da cerimônia do café e de ter  aceso um cigarro, ele começou a falar com o Emiliano. Elogiou seu comportamento e agradeceu-lhe pelos resultados alcançados, que iriam diretamente para a sua ficha.

- Ficha? Que ficha? – reclamou o Emiliano

- Ue! Não foi você que me pediu ontem, com lágrimas nos olhos, um lugarzinho aqui na Chefatura?

- Eu não, doutor! Vade retro! - Emiliano estava já estava esconjurando o perigo.

Era tudo brincadeira, como sempre.

 

 Mas o problema básico, que traria uma porção de desenvolvimentos, estava ainda longe de ser resolvido.

 

Os dois  sentaram-se novamente frente a frente, sob o olhar sonhador da                                                               Dra. Ágata e tentaram fixar algumas premissas, partindo do que conheciam:

 

1)  A explosão havia sido um aviso:

    Alguém andava muito aborrecido, queria ser ouvido e atendido.

    Era uma maneira de ameaçar sérias consequências, caso as coisas não

    corressem como esperava. Mas que coisas?

2) O professor estava envolvido com a explosão, que poderia ter motivações

    políticas ou financeiras.                                                                                                                        

3) O rapto da Claudia estava relacionado com a explosão.

    Mas até ele acontecer, nada deixaria imaginar  que ela, ou qualquer um dos seus amigos, tivessem algo a ver com o assunto.

4) A perseguição ao Emiliano e à pequena Tchi Lai, provavam que eles estavam incomodando e alguém tentara – e ainda tentaria – silenciá-los.

5) Ainda precisaria descobrir o papel do holandês Karl, na trama.

6) Ainda precisaria descobrir qual era a trama!

 

Mas o Emiliano estava bem mais adiantado em suas reflexões.

- Veja, Dr. Antunes – dizia ele, agitado – há vários pequenos fatos que permanecem como pontos escuros numa tela já difícil de interpretar: 

 

- Alguém programou tudo; comprou os explosivos, contratou um especialista,

   montou a bomba, implantou-a, acionou o dispositivo; alguém  que precisaria

   estar ao mesmo tempo em dois ou três lugares, monitorando pessoas, 

   acompanhando conversações. Ora, não pode ser uma só pessoa.

   Não era um indivíduo só; foi um  grupo,um conjunto, uma organização.onitorando pessoas, acompanhando conversaçntratou                                                                               

 

- Alguém avisou a Santa Casa a respeito da explosão, imediatamente depois de ela ter acontecido; as ambulâncias deviam estar prontas: foram acionadas com uma rapidez incomum. 

 

- Alguém, dentro do hospital, teve acesso aos arquivos, aos crachás, às ordens  de serviço e a todos os pormenores que acompanham a retirada de pacientes.

 

- Os plantonistas policiais da noite nunca foram tão ágeis, na apresentação dos relatórios de ocorrência. Alguém queria que a investigação corresse rápido, supostamente para evitar aprofundamentos.

 

- E por fim, alguém está acompanhando os meus passos, tenho certeza.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       

 

Neste momento Emiliano parou  para pensar melhor: - talvez eu esteja doente;  mania de perseguição, síndrome  de conspiração, egocentrismo exacerbado, sei lá! Pode ser apenas impressão minha, mas sinto sempre como se alguém estivesse me vigiando.

O Dr. Antunes olhou-o abismado. Emiliano tinha chegado muito mais longe do que ele poderia imaginar . O rapaz era bom, mesmo.

 

Entretanto, somando tudo, apesar das deduções impecáveis e brilhantes, estavam ainda na estaca zero – ou quase.

 

Seria preciso o conselho de algum especialista, gente acostumada a encontrar pistas mínimas, aquelas que escapam às pessoas despreparadas.

 

Um  deles estava agora mesmo diante da desordenada mesa do Dr. Antunes.  

- Prazer em conhecê-lo, Dr. Abraão – adiantou-se o Diretor - O senhor possui magníficas referências, e espero que possa fazer um bom trabalho.

- Obrigado, respondeu o outro, secamente e sem rodeios – li os boletins da ocorrência e gostaria de começar imediatamente a análise do carro.

- Quanto tempo acha que vai demorar o seu relatório, doutor?

- Entre 48 e 72 horas. Mas devo preveni-lo que mesmo no sábado e domingo, continuarei examinando os fragmentos e todo o resto que a técnica recolheu.

Preciso de autorização para ficar nas dependências da chefatura fora do expediente.

- Fique totalmente à vontade, Dr.Abraão. E conte com a nossa colaboração.

 

 

A sexta feira já estava escoando e não havia senão nuvens, na cabeça do D. Antunes – e do Emiliano, agora totalmente envolvido na investigação.

 

O cerco ao Karl não surtira efeito nenhum; ele não se encontrava em lugar algum, muito menos no Banco. A vigilância foi redobrada no endereço dele, mas não havia razões suficientes para pedir um mandado de busca ou montar uma operação de invasão nos endereços mais conhecidos, onde ele poderia se hospedar. 

 

 

 

 

 

Antunes concluiu que, com o bilhete da Dra. Ágata, haviam alertado o rapaz, dando-lhe uma chance de desaparecer antes que a armadilha pudesse ser acionada.

 

O dilema era grave: de um lado, teriam que esperar pacientemente, como o gato diante da saída do esconderijo – mas sem saber quantas outras saídas ele poderia usar; do outro, contentar, com alguma ação, a insistência das autoridades numa solução rápida; com o grande  perigo de tomar uma atitude errada, que poderia por tudo a perder.

 

Antunes pediu o endereço do general Irrutie, pai do Benito e se dirigiu para lá.

 

Custou um pouco de tempo para ser atendido, mas afinal o general em pessoa veio recebê-lo.

- Quero apresentar-lha as minhas sinceras condolências, General.

A frase de circunstância soou mais falsa ainda, naquele ambiente e diante daquela pessoa.

O General era um homem de sessenta e poucos anos, alto, robusto sem ser gordo, cabelo cortado curtinho, como qualquer soldado raso; pele curtida pelo sol, pelos exercícios e pela atividade militar, que não havia abandonado, mesmo depois da reforma.  

O semblante era altivo, sério, inteiramente condizente com a sua condição de comandante militar. 

Não parecia ter sofrido muito com a morte do filho. Dava a impressão de tê-la aceita estoicamente,  sem queixumes, sem lágrimas, sem dor.

Antunes tentava adivinhar se esta atitude, mostrada de forma  tão evidente, tão clara, não seria apenas uma máscara, uma aparência.

Ao cabo de algumas observações, acabou deduzindo que naquele corpo não habitava alma nenhuma. Era apenas um quartel vazio. Não era permitida a entrada de nenhum sentimento. 

Assim, teve que mudar a técnica que imaginara para obter alguma nova informação. Limitou-se às perguntas óbvias; onde o rapaz morava, qual o grau de intimidade que o pai mantinha com ele, quais os comentários, observações que lhe transmitira, de que falavam quando estavam juntos, e gostos, tendências, vontades, carreira, futuro...

Não teve o menor sucesso. Ou o pai não queria dizer nada ou – mais provavelmente – nada sabia do filho, nem queria saber.

Viviam na mesma casa, mas totalmente alheios um ao outro.

O General teve apenas um momento de indecisão: foi quando o Antunes citou, incidentalmente, a nome do Karl, dizendo saber que tinha sido um velho amigo da família, mas sem citar o Benito. 

Passado aquele momento, o General voltou à sua impassibilidade, como se estivesse passando em revista sua tropa. 

 Mas Antunes tinha notado e registrado o instante e queria aprofundar o assunto.

 

O sábado e o domingo passaram sem novidades; a Dra. Ágata foi visitar uma família de conhecidos dela no interior, deixando o celular a disposição, caso acontecesse algo de novo. 

 

O Emiliano, com muito cuidado, levou a Tchi Lin para um passeio ao Litoral.

Tudo correu normalmente, sinal que criminosos também são gente e têm direito ao repouso semanal remunerado.

 

O Dr. Abraão reapareceu na terça feira seguinte, conforme prometera. Não se  esperavam dele  grandes novidades; mas ele sentou, pigarreou e começou seu depoimento:

- “ Trabalhei dois dias sobre os destroços do carro e diversos fragmentos.  Reconstruí a dinâmica da explosão, calculei a quantidade de explosivo, o    

local onde a bomba foi colocada, e outros pormenores que constam do meu relatório. 

Em minha opinião, não houve exagero, erro, ou imperícia no manuseio da bomba.  Ela explodiu com a potência certa, no momento certo, atingindo as vítimas exatamente como previu quem a armou.

Não posso evidentemente apontar os mandantes, mas pelo tipo de montagem, sei quem a realizou. Esta bomba tem o nome, o sobrenome e o DNA do  Garcia, o especialista em implosões, que com certeza o senhor conhece. Não é, doutor Antunes?

Antunes tremeu, ao lembrar daquele homenzinho baixo, atarracado, desagradável,  com cara de rato,  óculos remendados. Sabia que não era flor que se cheire.

Recolheu o relatório, que leria comodamente mais tarde, e se despediu do Dr. Abraão,  agradecendo a eficiência do serviço e pedindo-lhe que remetesse a fatura à Dra. Ágata, para o pagamento.

Garcia, trazido numa viatura por ordem da Chefatura, apareceu com o olhar de quem sabia perfeitamente do que se tratava.    

O Dr. Antunes não estava para brincadeiras, estava nervoso, irritado e a simples presença desse  monstrinho na sala desagradava-lhe.

Cortando toda possível polidez, atalhou firme, olhando-o nos olhos:

- Quero todas as informações possíveis sobre a explosão de quarta feira.

Garcia revirou os olhos e começou a dizer que não sabia nada de nada.

- Escute aqui, Garcia – podemos fazer isso de duas maneiras. Pela fácil, você fala, nos não brigamos e você volta para as suas bombinhas. Pela difícil, batemos tanto em você que vai parecer um daqueles coitados, que estavam lá no momento do estouro. Qual vai ser?

Surpreso e assustado, o Garcia cantou a missa inteira.

O contato dele era um homem alto, forte, de maus bofes, cara amassada, duas mãos que pareciam loucas para bater em alguém.

O homem pediu-lhe o serviço, pagou em dinheiro vivo  trezentos mil reais e retirou o pacote com todas as instruções. Não havia como errar.

Quando o Dr. Antunes ia apertá-lo para saber mais detalhes, Garcia falou:

- Ele é do consulado da província de Galkamour...

- Tem certeza?

- Sim, certeza absoluta, ele tem um carrão preto enorme e entra e sai de lá a todo instante. Mas, doutor, quero  que fique claro o seguinte: não vou repetir isso em juízo, nem que vocês me torturem. Essa informação morre aqui, entre nós.

- Muito bem, Garcia. Obrigado pela sua colaboração, tão espontânea e carinhosa.

- Posso ir, então?

- Pode ir. Mas não se afaste demais. E se tiver que sair de São Paulo, venha

   primeiro aqui, para nos avisar. Entendido?

- Entendido, doutor, obrigado. Até logo, doutor.

 

Já fazia quase uma semana que o Dr. Antunes andava às voltas com os fantasmas da explosão.  Julgou que tinha chegado a hora de visitar as meninas no hospital.

Desta vez foi a pé, apesar do calor, procurando inutilmente caminhar pela sombra . A careca dele sofria com o sol alto. Ele suava e se queixava.

Por fim, em vinte minutos chegou.

Logo viu os plantonistas à porta do quarto das duas vítimas. Vitor, Anselmo e... Jamil

-O que faz você aqui, Jamil? Porque não está na chefatura?

A Dra. Ágata pediu-me para vir dar uma força, caso alguém venha tentar alguma coisa contra as meninas.

O investigador parecia sem jeito, mas sustentava bem o olhar de desaprovação do Dr. Antunes.

Este, vendo logo que alguma coisa não estava como devia, desistiu do ataque e deixou o assunto cair, temporariamente.

Entrou no quarto sozinho, deixando todos de fora. As moças estavam ainda em fase de recuperação, enfaixadas e com diversos curativos.

Sou o Dr. Antunes, da Chefatura – disse com a voz menos agressiva que encontrou. – Não precisam ficar assustadas. Venho em paz -  sorriu...

- Qual das duas é a Claudia?

- Eu, disse ela, com uma vozinha insegura e frágil

- Prazer , mesmo se gostaria de conhecê-la em circunstância menos desagradáveis...

- E você deve ser a Ana, obviamente – complementou.

Apesar da tentativa de deixar as meninas a vontade, não conseguiu obter uma resposta adequada. O medo pairava no ar.

Antunes explicou que elas eram vítimas e poderiam, com as lembranças daquela noite, trazer um pouco de luz sobre as causas daquele acidente – e frisou a palavra, quase querendo afastar o fantasma do atentado, da tentativa de homicídio.

Só no fim da entrevista – Antunes evitou cuidadosamente a palavra “depoimento” – houve uma surpresa, que revirou todo o caso.

Ana disse que Cláudia e um rapaz conhecido, o Karl, tinham saído da boate por quinze ou vinte minutos – ela pensou que tivessem ido “namorar” – e voltaram afogueados e desarrumados – o que confirmou sua dedução.

 

Já era tarde, não valia a pena estender a conversa. Antunes já tinha quase tudo o que queria.

 

Despediu-se das duas, que respiraram aliviadas, e prometeu que não as incomodaria mais – por uma semana ou duas...

 

A melhor ação do bom pescador é a inação.

Quando o pescador se agita, o peixe some.

Mas quando o pescador pára, o peixe vem, mansinho, querendo ser pego.  Mistérios da pescaria!...  

 

O Dr. Antunes não era tão bom pescador quanto o gaúcho Emiliano.

Prova está que a novidade seguinte veio justamente do Emiliano, pacientemente deitado nos assentos de cimento do pátio da Santa Casa, numa “campana” tão estranha quanto sem esperanças.

O fato é que ele estava esperando a chegada de uma moça, chamada Maria do Carmo, irmã de um motorista de ambulância.

Recapitulando, quando a Claudia havia sido raptada, a ambulância que a levou era do interior e foi fácil provocar uma confusão nos papéis, induzindo a portaria a liberar a saída. 

A polícia descobriu o local para onde a moça tinha sido levada  – e a trouxe de volta. Foi uma questão de mera sorte. Quem a vigiava não era de confiança e foi bastante ver a cor dos carros de polícia, para se mandar, abandonando a vítima.

Mas nada havia sido comentado a respeito dos mandantes desse rapto. 

Através deles, a investigação se estenderia à sua causa e aos objetivos dos criminosos.