A historiografia contemporânea tem se destacado nos últimos anos por trazer para o campo das discussões acadêmicas e científicas, temas que à bem pouco tempo não eram vistos como relevantes para a construção de uma ideologia histórica. Entre esses novos paradigmas do pensar e do fazer histórico, algumas tendências historiográficas de menor prestígio vão ganhando expressão dentro dos grandes centros produtores da matéria escrita. Correntes como a História de Gênero e História do Cotidiano da Vida Privada tornam-se sinônimos de Micro-História, de História Local e de História de Identidade Cultural sem, contudo, se tratar de uma História feita em migalhas ou apartada dos imponentes acontecimentos de cunho político-social produtores de heróis, vilões e fatos macro-estruturantes da História Nacional.

Com a História do Cotidiano e da Vida Privada as reconfigurações sociais da humanidade passaram a ser descritas a partir de novas falas e novos olhares da própria população que viveu e construiu a história sem saber que o fazia e sem assim ter-se reconhecido, fato que se corrige quando o cotidiano, o imaginário, a mentalidade, a sexualidade...tornam-se fontes fundamentais para o minucioso trabalho do historiador em reconstruir e explicar as incógnitas lacunas que se formam entre passado e presente e que, invariavelmente, traduzem os fins das sociedades e dos padrões sócio-comportamentais que, se sobrepõem, ao longo do processo histórico.

Pessoas, comunidades, individualidades, fronteiras, comportamentos, conflitos, evolução, transformação, meses, anos, séculos, milênios e, mais, pessoas, comunidades,conflitos, evolução, anos, séculos, milênios e o historiador talvez se pergunte: O que teria dado origem ao mais complexo sistema de relações entre os seres vivos, isto é, a sociedade humana? O que teria dotado esta sociedade de padrões próprios de adaptação? O que teria proporcionado sua sobrevivência e modernização frente aos seus dois maiores inimigos, o próprio ser humano e o tempo?

Vários eventos que se sucederam na dinâmica do cotidiano dessas populações poderiam elucidar historicamente sua origem e desenvolvimento. No entanto, um desses eventos se coloca bastante oportuno para o debate em questão: O Casamento.

Como elemento social da vida privada, O Casamento tem sido tratado pela historiografia como um processo de longa duração, evidenciado nas mais remotas sociedades humanas com finalidades associativas que se reformularam, muito embora, tenha mantido algumas características estruturantes básicas, pelas quais, o mesmo oscilou entre relações pessoais ilegítimas (simples uniões ou associações conjugais estáveis ou não e concubinatos) e relações pessoais legítimas (matrimônio religioso e o casamento civil), que de uma maneira ou de outra, acabaram por fomentar o desenvolvimento demográfico, territorial, político e econômico das populações que historicamente se sobrepuseram.

Pela teoria do criacionismo, a célula inicial da humanidade teria sua gênese no dueto Adão e Eva, no qual, da costela de Adão, Eva surgiu para a ele se associar e suprir sua carência e necessidade de companhia. Tão logo, a finalidade maior desta união tornou-se a procriação que, por sua vez seria responsável pela multiplicação humana na Terra. A grosso modo, poderíamos entender que o propósito da união conjugal entre Adão e Eva teria sido simplesmente: procriação, formação familiar e ocupação territorial.

Verdade seja dita, Criacionismo ou Evolução, o fato é que, as primeiras associações conjugais entre homens e mulheres, firmemente, realizaram-se com fins à procriação, formação familiar e constituição privada do espaço. Logicamente, à medida que os grupos humanos se multiplicaram suas necessidades se transformaram, alterando concomitantemente todos os padrões organizacionais a eles atrelados, dentre os quais, o próprio Casamento.

Em pouco tempo o Casamento, enquanto união conjugal entre homens e mulheres, tornou-se um dos mais significativos instrumentos institucionais já criados pelo ser humano, posto que sua realização simbolizou a própria invenção da sociedade, pois como na Biologia a célula constituiu a menor porção ativa do organismo, as uniões seletivas entre homens e mulheres ao longo da história foram fundamentais para a caracterização da menor porção constituinte da sociedade, isto é, a família. Assim sendo, alguns autores chegam a citá-lo como aparato incomparável e fundamental para a formação do contexto concreto e imaginário das organizações e instituições sociais hoje visíveis no mundo.

Dentro da antiguidade greco-romana, o Casamento passou por um processo de transformação estrutural que definiu, daí por diante, seu reconhecimento moral e legal pelo Estado, uma vez que este promoveu, literalmente, sua publicização, a partir da elaboração de uma legislação específica relacionada ao Casamento, demonstrando, enfim, sua preocupação em torná-lo um ato público sancionado e adotado pela sociedade, o que direcionou e garantiu, em muitos casos, o surgimento e a sobrevivência de vários complexos populacionais durante a antiguidade.

Antes de ganhar status de acontecimento público, o Casamento apresentou uma dinâmica e uma lógica próprias que justificavam sua celebração dentro dos grupos familiares, os quais o encaravam como

"um ato privado, que dizia respeito à família, à sua autoridade, às regras que ela praticava e reconhecia como suas, não exigia a intervenção dos poderes públicos nem na Grécia nem em Roma. Ele era, na Grécia, uma prática "destinada a assegurar a permanência do oikos", cujos atos fundamentais e vitais marcavam, um, a transferência para o marido da tutela exercida até então pelo pai e, o outro, a entrega efetiva da esposa ao seu conjugue"(FOUCAULT, 2005, p. 79).

 

Neste caso, é possível perceber que para essas populações, o Casamento era tido, inicialmente, como um elemento norteador de transações econômico-comerciais privadas,realizadas entre famílias, sob o pressuposto da manutenção e continuidade da família, da cidade e da raça, sem ainda atrelar-se explicitamente a questão política.

Com o aumento da pressão política e estatutária sobre as organizações familiares, bem como, sobre as uniões conjugais, teve início o processo de transposição do poder da família sobre o Casamento, até então privado, para a esfera pública, fato crucial para o reconhecimento definitivo do Casamento enquanto uma instituição oficial e determinante do Estado, o qual transformou as antigas negociações familiaresque tinham em sua razão de ser a "transmissão do nome, constituição de herdeiros, organização de um sistema de alianças e junção de fortunas"( FOUCAULT, 2005, p. 81), em elaborados contratos comerciais.

Em sua longa trajetória de adaptação social, o Casamento (oficial) atravessou momentos conflitantes no que diz respeito a sua prática e objetivos e, assim, à certo tempo

"...passaria a ser mais geral enquanto prática, mais público enquanto instituição, mais privado enquanto modo de existência, mais forte para ligar os cônjuges e, portanto, mais eficaz para isolar o casal no campo das outras relações sociais" (FOUCAULT, 2005, p.84),

 

demonstrando, dessa forma, uma linha de paradoxos que, ora acentuou, ora extirpou a tênue linha limite existente entre o público e o privado, tornando a popular relação entre gêneros num sistema coercitivo de sobrevivência não mais dual e, sim coletiva.

No que concerne ao envolvimento dos cônjuges, tanto a notória realização de contratos para efetivar o enlace familiar, quanto a legislação que o tornou público, apontam para uma participação bastante simplificada da mulher dentro da negociação, como por exemplo,

"em documentos que datam do fim dos séculos IV ou III a.C., os engajamentos da mulher implicavam a obediência ao marido, a interdição de sair, de noite ou de dia, sem a sua permissão, a exclusão de qualquer relação sexual com um outro homem, a obrigação de não arruinar a casa e de não desonrrar o marido" (FOUCAULT, 2005, p. 83).

 

Tantas proibições eram orientadas por uma idéia que constantemente assombrava os pensamentos do marido, isto é, a possibilidade do nascimento de uma criança impura que rompesse os laços sanguíneos e políticos outrora firmados com o casamento. Neste sentido, dois fatores caracterizam o cotidiano matrimonial vigente: a tutela da esposa e a preocupação com o adultério.

Revestido por uma nova ótica matrimonial, o casamento público reformulou-se cada vez mais, e, no que se refere à convivência entre os cônjuges, foi exatamentenesta intimidade crescente que se assentaram as diretrizes para as mudanças comportamentais que ocorreram a partir de então, em que

"...mesmo continuando a dizer respeito à casa, à sua gestão, ao nascimento e à procriação dos filhos, valoriza cada vez mais um elemento particular no meio desse conjunto: a relação pessoal entre os dois esposos,(...)Em suma a arte de se conduzir no casamento se definiria menos por uma técnica de governo e mais por uma estilísticado vínculo individual" (FOUCAULT, 2005, p.150).

 

Desta forma, com o estabelecimento de um verdadeiro e explícito vínculo individual entre os esposos, estabeleceram-se também princípios de conduta dentro e fora do casamento que, no que se refere a mulher, tornaram ainda mais evidente sua subordinação ao marido e sua obrigação quanto à fidelidade, ainda que esta não fosse necessariamente recíproca, determinando aquilo que Michel Foucault chamou de doutrina do monopólio sexual.

A existência de um monopólio sexual masculino consolidou-se principalmente pela latente preocupação com a descendência e, neste caso, a exigência da fidelidade da mulher casada tinha mais haver com a legitimidade dos filhos do que com a moral pública estabelecida. Assim sendo, o adultério feminino não era de modo algum tolerado e, por fim acarretava na dissolução do matrimônio. No entanto, a intolerância quanto à prática da infidelidade conjugal feminina refletia também outro duro estigma da mulher na antiguidade: a propriedade que a mesma representava, pois, ao ser negociada por seu pai, além de ter, daí por diante, suas vontades e ações tuteladas pelo marido, a mulher tornava-se seu bem patrimonial, do qual ele poderia dispor livremente. Assim, para este homem, "o adultério era o insulto mais severo contra sua honra (...) e contra seu direito de posse" (VRISSIMTZIS, 2002, p.57), uma vez que feria categoricamente seu acesso exclusivo aosserviços e prazeres da conjugalidade, muito embora a poligamia fosse declarada entre os homens.

Transpondo agora a discussão para o período histórico conhecido nominalmente por Idade Média, verifica-se que o debate acerca do Casamento não difere tão acentuadamente daquilo ora proposto na antiguidade, a não ser, é claro, quando se tratam de novos ou reformulados aspectos estruturais inseridos em seu cotidiano.

Tal qual na antiguidade, o mundo medieval teve nas uniões matrimoniais sua principal referência para a organização e estruturação de sua sociedade. Para ele, uma sociedade era feita de estruturas estáveis capazes de nortear tanto a vida pública quanto a vida privada, quando estas, é claro, se diferenciavam. Por assim dizer, entendia-se que a cultura era o principal elemento social responsável por manter concreta e imaginariamente tais estruturas instituídas. Logo, era a reprodução de todo o sistema cultural que garantia e ordenava um padrão comportamental individual e/ou coletivo e as relações sociais durante a Idade Média.

Se para os homens e mulheres da antiguidade o Casamento figurava como elemento primordial de organização e reprodução da sociedade, no período medievala questão não foi tão diferente, afinal, de uma maneira ou de outra, seus objetivos mantiveram-se ao longo do tempo e, portanto, podemos dizer que o mesmo desempenhou uma função essencial dentro daquela sociedade quando promovia:

"...regulação,oficialização, controle e codificação:a instituição matrimonial se encontra, por sua própria posição e pelo papel que ela assume, encerrada numa firme estrutura de ritos e interditos..."(DUBY, 2001, p. 11-12),

 

de ritos porque tratava-se (igualmente à antiguidade) de publicizar um ato privado e de interditos por determinar e normatizar o que seria reconhecido como legítimo e ilegítimo de acordo com a ordem estabelecida.

Fundamentalmente, o Casamento medieval ia ao encontro de interesses de cunho patrimonial, econômico e às vezes político, uma vez que, privilegiavam-se as negociações e associações familiares em detrimento do dispensável amor. Aqui, tanto quanto na antiguidade era a "comunidade familiar, assim criada que era considerada como a célula social, e não o casal" (D'HAUCOURT, 1994, p.100), pois correspondia diretamente aos fins patrimoniais (e em certo ponto territoriais) criados pelo enlace entre as famílias, dando conta dos constantesacordos comerciais que contextualizavam os futuros matrimônios, o que por várias vezes garantiu, ora a aliança entre famílias de grandes proprietários, ora até mesmo a paz.

Visando maior controle e melhor aproveitamento das sanções provenientes da prática matrimonial, o Estado na antiguidade não apenas o retirou da esfera privada, como também promoveu sua institucionalização, dotando-o, obviamente de uma normatização própria. Por conseguinte, um processo de transformação e adaptação similar é evidenciado na Idade Média, porém, nela o embate incorporou um terceiro agente: o cristianismo. Assim, pode-se afirmar que durante o período medieval o cotidiano do casamento além do envoltório familiar e jurídico foi remodelado a partir da discussão litúrgica, o que segundo Georges Duby, caracterizou a cristianização da instituição matrimonial.

O poder familiar era exercido no momento da escolha dos cônjuges. Logo, o casamento constituía-se num ato além da escolha do noivo e da noiva, era, pois, uma campanha coletiva de toda a família e, conseqüentemente, a escolha da noiva era feita por todos os interessados: "o pai, a mãe, os "amigos carnais" (parentes)" (D'HAUCOURT, 1994, p.104). Em tese é como se estivéssemos falando de um único casamento com cônjuges diversos, já que todos interferiam e corroboravam na decisão final.

O aparato jurídico impunha-se antes e depois da contratação do matrimônio. Antes, em função dos acertos contratuais e comerciais a ele atrelados e, depois por conta das regras de moral e de conduta impostas aos dois esposos. Muitas destas regras, estavam ligadas a uma preocupação constante: fazer do casamento um elemento de equilíbrio social e, para tanto, visavam garantir os interesses e os objetivos dos grupos familiares que então surgiam, neste caso, as determinações jurídicas e morais, em geral, eram muito mais agressivas às mulheres que aos homens, principalmente quando buscavam afiançar a legitimidade dos herdeiros e a subordinação absoluta da esposa em relação ao marido. Muito embora, se condenasse jurídica e moralmente o adultério feminino, quando se tratava do esposo, as regulamentações não eram verdadeiramente tão coercitivas, dando mostras de que a moral, então vigente, não era tão real, mas forjada, posto que, admitiam-se às regulamentações do matrimônio a prática de atividades que feriam a ordem oficial, fato exemplificado na afirmativa de que a sociedade medieval em questão

"...não é estritamente monógama (...).O campo da sexualidade masculina, nos limites da sexualidade lícita, não se restringe absolutamente ao quadro conjugal. A moral aceita, aquela que todos fingem respeitar, obriga evidentemente o marido a satisfazer-se apenas com sua esposa, mas não o força nem um pouco a evitar outras mulheres..." (DUBY, 2001, p. 16-17).

 

Pelo que se percebe, a sociedade medieval, tal qual a antiga, via com naturalidade e ainda tolerava e permitia o adultério por parte do esposo sem maiores sanções. No entanto, o adultério da mulher era coibido com o divórcio e/ou o repúdio pelo marido.

A cristianização da instituição matrimonial revela seu primeiro diferencial, com relação ao casamento defendido jurídica e familiarmente, ao destoar quanto aos objetivos propostos. Enquanto, a família e o Estado estavam preocupados com contratos, herdeiros, patrimônios, estratégias políticas e econômicas, a Igreja dirigia sua discussão para o comportamento conjugal, cuja finalidade estava, basicamente, em duas questões: aprimeira era sacralizar o profano, isto é, normatizar e abonar os contatos sexuais provenientes das uniões conjugais, o que forçou a Igreja a aceitar o casamento como um mal menor e, assim,

"...ela o adota, o institui- e facilmente, uma vez que foi admitido, adotado e instituído por Jesus- mas, com a condição de que sirva para disciplinar a sexualidade, para lutar eficazmente contra a fornicação..." (DUBY, 2001, p. 18),

exemplificando, portanto, que sua aceitação estava mais vinculada à sexualidade e, neste caso, direcionada particularmente aos cônjuges em detrimento dos interesses e vontades da família e do Estado. Contudo, é fato que ao longo do tempo os interesses dos três segmentos (Família, Estado e Igreja) imbricaram-se de modo, mais uma vez, a cooptar para um processo de adaptação social do matrimônio, pois,

"...a visão da Igreja sobre o casamento como a pedra fundamental de uma sociedade cristã estável era geralmente aceita. Isso era em parte uma questão de interesse próprio, pois a aristocracia,aburguesia e os camponeses mais abastados tinham todos interesses de propriedade a considerar, juntamente com a necessidade de alianças e fusões de famílias e interesses..." (RICHARDS, 1993, p. 44),

 

fato que pode ser definido tecnicamente comocooperação entre o poder civil e o poder religioso. A segunda questão relaciona-se ao caráter essencial do casamento que, através da disciplinação sexual, estava unicamente admitido com vistas ao fim maior da procriação. Neste ponto, a similaridade com o casamento antigo é bastante presente, posto que, um de seus maiores objetivos estava na geração de herdeiros legítimos e, da mesma forma que no período medieval, não há citação de relevância do amor quando dos acertos contratuais entre as famílias dos cônjuges, dando mostras de que, tanto no mundo medieval quanto no mundo antigo, casamento e amor/prazer não estavam, necessariamente relacionados entre si, ocorrendo muito esporadicamente, e, ainda assim, na era medieval o casamento existia para a formação da prole, agregação de riquezas e para a contenção sexual.

Ainda no século IX de nossa era, teve início o processo de sacralização do casamento, o qual, após longos séculos de padronização estrutural, viu-se diante de novas proposições, forçando-o a mudanças que convergiram diretamente aos crescentes interesses da Igreja sobre as uniões conjugais legítimas, as quais, concomitantemente, conduziram a um maior controle sobre a vida cotidiana da sociedade. Tão logo, as negociações e contratações familiares foram incrementadas pelas novas diretrizes determinadas pela Igreja, em que,

"...a sacralização envolvia também o cumprimento de novas regras elaboradas para aumentar o efeito estabilizador do casamento sobre a sociedade: o cumprimento das determinações de monogamia, indissolubilidade do casamento, a proibição do casamento até o sétimo grau de parentesco consangüíneo..." (RICHARDS, 1993, p. 35).

 

Neste último ponto, isto é, na questão do casamento consangüíneo há uma divergência com relação à antiguidade, pois, lá ocorria a defesa e a prática de casamentos entre parentes próximos para que se evitasse a dissolução patrimonial. Também é fato que, com a sacralização do casamento, evidencia-se, conseqüentemente, a idéia de consentimento por parte do casal que se unia, muito embora, raramente fosse um elemento norteador das negociações. De qualquer forma, é importante mencionar que a sacralização matrimonial encontrou no século XII seu expoente mais significativo, por conta, tanto das regulamentações que se popularizaram, quanto da solidificação de suas estruturas básicas que, serviram de fundamento para o modelo de casamento realizado nas sociedades moderna e contemporânea. Vale ressaltar que, já no século XII, "a Igreja havia efetivamente assumido o controle legal, moral e organizacional do casamento" (RICHARDS, 1993, p. 35), o que contribuiu irrestritamente para seu domínio, tanto dos elementos concretos, quanto dos elementos imaginários que faziam parte do universo matrimonial.

Para a figura da mulher no casamento, existe quase uma nulidade de ruptura entre a antiguidade e a medievalidade. Nesta última, a mulher ainda era doada e recebida como um objeto de propriedade, um ser notória e obrigatoriamente passivo, em que sua principal virtude consistia na obediência e submissão ao marido e, quando

"...solteira, era identificada sempre como "filia de", "sóror de". Casada, passava a ser personificada como "uxor de". Filha, irmã, esposa: os homens deviam ser sua referência"(MACEDO, 2002, p. 20).

 

Sua identidade, portanto, estava sempre a reboque do homem a quem ora pertencesse e/ou ora devesse submissão e obediência irrestrita e inconteste. Pelo que se tem, logicamente, o discurso dos religiosos sobre o matrimônio inferiorizava as mulheres e privilegiava os homens e seus direitos, para os quais o casamento não passava (segundo Hincmar de Reims, um arcebispo do século IX) de uma "associação entre pessoas desiguais" (MACEDO, 2002, p.25-26). Para a Igreja Medieval instituída,

"...os cônjuges estabeleciam uma "relação sentimental"(...), na qual a direção ou o governo cabia ao homem, restando à mulher a submissão (...). O marido deveria ser indulgente (...). Em contrapartida, a esposa deveria reverenciá-lo, obedecê-lo..." (MACEDO, 2002, p. 26),

esta era a concepção generalizada defendida entre os clérigos medievais, papéis distintos para mulheres e homens. Para este último, o descumprimento das regulamentações morais, legais e litúrgicas sempre encontravam, diferentemente da mulher, tolerância na sociedade, tanto que, apesar da proibição, a poligamia (isto é, o adultério masculino) era vastamente praticada, da mesma maneira como a sociedade antiga a consentiu. Na desconfiança e no risco do adultério, os homens "reservavam-se o direito de castigar a mulher como uma criança, um doméstico, um escravo. Era um direito de justiça inquestionável, primordial, absoluto" (MACEDO, 2002, p. 28), era o direito do marido em nome da honra familiar, pela qual tinha autonomia para prender e corrigir com punições físicas os excessos de sua esposa, sua propriedade, autonomia que, aliás, lhe foi legada por séculos de tradição.

Agora, na Idade Moderna, a instituição matrimonial revigorou-se com o advento de novos conceitos e práticas relativas, principalmente, ao comportamento dos cônjuges que, apesar de repaginarem os elementos constitutivos do casamento, não foram suficientes para abalar as estruturas descritas e identificadas até aqui.

A transposição da sociedade medieval para a sociedade moderna deu-se por meio da reformulação do poder político e econômico, presentes na Europa Ocidental. Assim, foi através ora de guerras, ora de casamentos bem contratados que se assentaram as características básicas do Antigo Regime. Mas, voltando um pouco mais o olhar para a questão matrimonial, pode-se dizer que nos primeiros anos do Absolutismo, os casamentos não diferiram, de forma relevante, daqueles já exemplificados na antiguidade e na medievalidade. Em sua essência, tenderam a conservar os objetivos sociais, econômicos e políticos outrora descritos e, desta forma, foram símbolos e instrumentos (às vezes diretos, às vezes indiretos) da unificação territorial, da centralização política, da formação do sistema de dominação implantado, da hierarquia social imposta pelos três famosos estamentos do período, do entrelaçamento entre nobreza e burguesia e, também, agentes de formação daquilo que Norbert Elias chamou de Sociedade de Cortes.

Da mesma maneira em que na Antiguidade os acordos e contratos matrimoniais firmados entre famílias proporcionaram o surgimento de novos complexos populacionais, na Idade Moderna, algumas nações usaram da mesma artimanha tanto para assegurarem a paz, quanto para garantirem a unificação territorial e a centralização política por meio da união entre famílias e conservação/ampliação de território, o que em vários casos colaborou para a formação dos imponentes Estados Nacionais.

Espanha e Inglaterra são dois grandes exemplos da força política implícita no casamento. Em 1485, o casamento de Henrique Tudor com Isabel de York, pois fim a Guerra das Duas Rosas (conflito sucessório pelo trono inglês que perdurou por 30 anos), celebrando não apenas a união entre suas famílias, mais também, dando início a dinastia dos Tudor, com a qual o Absolutismo Inglês encontrou seu maior expoente. Um processo similar ocorreu na Espanha, quando o casamento entre Fernando de Aragão com Isabel de Castela, na segunda metade do século XV, uniu os tronos de Aragão, Leão e Castela, a partir do qual teve início a formação do Estado Espanhol. Séculos depois, o mesmo artifício foi empregado por D. João VI em 1817 no Brasil, em que, através de uma estratégica manobra política, D. João visando resgatar o poder e a imponência da dinastia dos Bragança na Europa, contratou o casamento de seu filho D. Pedro de Alcântara com D. Carolina Leopoldina Josefa, herdeira da Áustria. A união foi responsável pelo restabelecimento dos laços políticos e familiares entre as dinastias dos Bragança e Habsburgo, demonstrando, mais uma vez, uma antiga finalidade do contrato matrimonial.

Apesar da reprodução de vários elementos concretos e imaginários, o casamento no período moderno foi o que mais incorporou a prática do amor entre os cônjuges e o que mais se desvinculou das limitações sexuais impostas pela Reforma Gregoriana (1050-1215). O amor foi elevado ao casamento pelo pensamento romântico que tendia a suplantara realidade social com um discurso cortês, embora, na prática ainda não fosse elemento decisivo para a escolha dos conjugues, estando esta, da mesma forma de outrora, atrelada aos pais e a família que, para firmarem contrato, levavam em consideração a manutenção do status quo (pela união de riquezas e estratégias patrimoniais) e a descendência legítima dos filhos. Os conjugues, por sua vez, viveram um processo de erotização e aproximação, pelo qual a limitação única da procriação tornou-se proscrita, tendo os esposos, a partir daí a liberdade de se envolverem, desde que não impedissem a procriação, a qual, continuava a ser uma das finalidades principais do casamento e, conseqüentemente,do sexo.

A mulher não foi tratada de forma tão inovadora, pois seu caráter submisso e seu dever de obediência foram mantidos pelas sociedades notoriamente paternalistas das quais tenho tratado até aqui. Neste sentido, a propósito do Brasil Colonial, mesmo sendo este um cenário de moral ambígua, é marcante o envoltório masculino e católico descritos dentro dos casamentos legítimos. A função feminina pós-matrimônio seguia dois caminhos: o primeiro equivalia a se tornar propagadora do catolicismo e o segundo se caracterizava pelas atividades domésticas, em que

"...seu principal cuidado deve ser instruir e educar os filhos cristãmente, cuidar com diligência das coisas da casa, não sair dela sem necessidade nem sem permissão de seu marido, cujo amor deve ser superior a todos, depois de Deus"(DEL PRIORE, 2003, p. 28).

Fica claro, portanto, que a liberdade da mulher estava condicionada a duas permissões: uma do marido e outra da Igreja, para a qual, o casamento figurava como um elemento de equilíbrio social, devendo apresentar-se livre de paixões e conciso de obediência e subordinação da mulher, que, quando não mais capaz de se render às tiranias do casamento e da Igreja, num "mecanismo de resistência à exploração e ao sofrimento (...) respondem com adultérios"(DEL PRIORE, 2003, p.32) , conspirando para o medo masculino: do filho ilegítimo e da a desonra no seio da sociedade.

Com o discurso elaborado até aqui, tem-se mostrado o casamento como uma instituição que se infiltrou em todas as sociedades já conhecidas ou vividas pelo ser humano. Tendo, da mesma forma, resistido a rupturas sociais,econômicas e culturais que levaram tais sociedades à decadência, o enlace matrimonial também esteve presente na transição de uma sociedade para outra, corroborando em vários momentos para seus processos de reorganização e consolidação. Diante disto, podemos perceber, como já foi exposto no próprio título deste capítulo, que o casamento, enquanto elemento norteador e formador de sociedades, pode de fato, ser entendido como um processo de longa duração, haja vista a evidênciade sua reprodução elementar em todos os períodos históricos outrora tratados. Notoriamente, os processos de longa duração, por corresponderem a extensivos períodos de tempo, estão ligados a diferentes processos de transição social, econômica e cultural, que os torna plurais e incógnitos, revestindo-os de uma emblemática significância e,por esta mesma razão uma pergunta pode se impor à elaborada até aqui: como se configuraram os elementos concretos e/ou imaginários que constituíram a estrutura básica do casamento e mais, porque se reconfiguraram?

Na discussão historiográfica proposta neste capítulo evidenciou-se que, desde os tempos mais remotos de nossa existência, homens e mulheres repetidas vezes se associaram, às vezes de forma socialmente legítima, outras de forma socialmente ilegítima, para a qual criou-se o termo concubinato. Deixando este último de lado, viu-se que grandes porções territoriais e grandes reinos surgiram com base no enlace de famílias promovido pela união matrimonial. Assim, podemos configurar, concretamente, três elementos básicos que constituíram a estrutura fundamental do casamento: poder político, poder econômico e poder patrimonial.

Buscando poder político e dominação sobre os demais grupos sociais, famílias se uniamatravés da negociação do casamento de seus filhos e filhas, os quais se ligavam eternamente por um contrato matrimonial que garantia o status quo e aampliação do poder econômico e das riquezas da família que cedia e da família que recebia os esposos e, invariavelmente, poder político e poder econômico, eram sinônimos de ampliação patrimonial. Desta forma, os casamentos cumpriam com suas determinações básicas: centralização de poder, unificação e ocupação territorial e formação de descendência. Vale ressaltar que, só por estarem intimamente imbricados, estes elementos se conservaram intactos às mudanças estruturais pelas quais passou o casamento.

Os estágios de reconfiguração dos elementos fundamentais do casamento só foram possíveis porque as sociedades que se sobrepuseram ao longo do processo histórico, converteram-no num instrumento institucional, ou seja, fizeram do matrimônio um elemento norteador da organização da social, uma espécie de quarto poder. Para tanto, apesar de o adaptarem a novas necessidades morais e espirituais, submeteram-no aos mesmos fins e objetivos de outrora. Sendo assim, suas inovações estão diretamente ligadas aos elementos imaginários que a ele se associaram ora pela influência religiosa, ora pela influência moral, ora pela influência do novo social proporcionado pelo romantismo (ilustrativo do amor e do sexo) e pelo liberalismo (ilustrativo do comportamento conjugal) dos tempos modernos.

Por fim, é necessário entender que o casamento deve seu caráter reprodutivo, ao longo de diferentes sociedades, a três fatores: primeiro, ao seu processo de institucionalização (ocorrido no mundo antigo); segundo, ao seu posterior processo de cristianização/sacralização (ocorridos no mundo medieval) e terceiro, ao caráter tanto de oposição quanto de complementação de seus elementos constitutivos básicos (advindos com a Idade Moderna): os concretos- poder político, poder econômico e poder patrimonial, atrelados a seus objetivos imediatos (centralização de poder, unificação e ocupação territorial e formação de descendência) e os imaginários- romantismo, amor, sexo e liberalismo que, somados proporcionaram e caracterizaram sua reconfiguração.

Mas, a harmonia entre os elementos concretos e imaginários supracitados jamais esteve uniforme dentro das relações conjugais. Na verdade, em muitos momentos foi construída a duras penas e, principalmente, sob o âmago de renúncias e abdicações do gênero feminino em detrimento de elementos que, embora fizessem parte, não cabiam e não bastavam em si. Em absoluto poderia deixar de considerar que a assimetria de direitos e de comportamentos determinou inferioridades e disparidades históricas dentro do laço conjugal, e, sem pesares ou dúvidas, corroboraram, intensamente, a fim de mascarar e dificultar a dissolução das discrepâncias que fizeram da conjugalidade uma relação desigual durante muito tempo, talvez tempo demais. Por esta razão, no próximo capítulo deste trabalho, os sentidos das desigualdades conjugais serão discutidos e analisados, no plural, de modo a se desconstruir equívocos e a se renpensar conceitos absolutos recorrentes às relações entre marido e mulher.

Referências

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