1. Introdução

Apesar da expressividade da responsabilidade do Estado na jurisprudência e doutrina, o tema encontra aspectos controvertidos como, por exemplo, na responsabilidade por omissão ser objetiva ou subjetiva; na adoção da teoria do risco administrativo ou do risco integral para se responsabilizar o Poder Público de maneira objetiva; como também na situação complexa nos danos causados a terceiros por agentes públicos no exercício da função ou de folga.

1.1 O agente policial na qualidade de agente público

Sobre o tema, é importante analisar o texto constitucional no que tange ao agente atuar "nessa qualidade" para se responsabilizar o Estado.

Para Maria Silvia Zanella Di Pietro, não basta o agente agir nessa qualidade, mas no exercício de suas funções:

"[...] que o agente, ao causar o dano, aja nessa qualidade; não basta ter a qualidade de agente público, pois, ainda que o seja, não acarretará a responsabilidade estatal se, ao causar o dano, não estiver agindo no exercício de suas funções".

Nesse sentido, exemplo de Toshio Mukai:

"Será de responsabilidade do Estado o ato praticado pelo médico de um hospital público, durante o seu horário de expediente nesse hospital. Não será de responsabilidade do Estado o ato praticado pelo mesmo médico funcionário do hospital público, em sua clinica particular".

Entretanto, para Amaro Cavalcanti, a expressão "nessa qualidade" deve ser entendida de modo mais abrangente, pois o fato de não agir no horário do expediente ou no exercício da função não justifica a irresponsabilidade do Estado.

"1), quandopratica o ato no exercício das suas funções e dentro dos limites de sua competência; 2), quando pratica o ato, mesmo com excesso de poder, masrevestido da autoridade do cargo, ou servindo-se dos meios dêste, isto é, meios de que não poderia dispor na ocasião, se não se achasse na posse do cargo; 3), quando o cargo tenha influído, como causa ocasional do ato".

Ainda com relação ao termo agente empregado pelo texto constitucional, o mesmo tem sentido amplo, pois abrange os agentes políticos, administrativos ou particulares em colaboração com o poder público. O escritor José dos Santos Carvalho Filho, no mesmo sentido, afirma que não se pode confundir com o termo servidor que é empregado em sentido restrito, pois é o vínculo de trabalho entre o indivíduo e o Estado.

Sobre o tema, Yussef Said Cahali:

"Sempre que a condição de funcionário ou agente público tiver contribuído de algum modo para a pratica do ato danoso, ainda que simplesmente lhe proporcionado à oportunidade para o comportamento ilícito, responde o Estado pela obrigação de indenizar".

Todavia, pode ocorrer, segundo Vilson Rodrigues Alves, que "o agente pratique o ato não no exercício do poder público, mas em decorrência dele, como se não estando em exercício do serviço público, comete o ato ilícito porque a exercitabilidade dele o propicia".

Verifica-se, nesse particular, a situação dos agentes policiais, porque possuem particularidades quando atuam com prejuízo ao particular, porquanto são investidos como autoridades do Estado ao se exporem uniformizados, bem como estão à disposição da sociedade em caso de flagrante delito ou qualquer emergência de pessoas que conhecem a condição de policial mesmo nos dias de folga.

Quando o policial encontra-se fardado, o entendimento majoritário é no sentido de que atuou na qualidade de agente do Poder Público, portanto o Estado é responsável. Nesse sentido, segundo Yussef Said Cahali: "em face da presunção de segurança que um policial fardado e armado, proporciona, o Estado é responsável se o agente, em se aproveitando dessa aparência, produz dano ao particular".

Nessa perspectiva, o julgamento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, cujo acórdão foi assim ementado:

EMENTA

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. FATO DANOSO PRATICADO POR POLICIAL MILITAR FARDADO. ALEGAÇÃO DE QUE NÃO SE ENCONTRAVA NA ESCALA DE SERVIÇOS - IRRELEVÂNCIA.

Somente é obrigatória a denunciação da lide se a parte autora, a parte ré e o denunciado houverem de litigar no mesmo plano processual. Se a pretensão autoral encontra-se ancorada nos princípios que norteiam a responsabilidade objetiva, e o pleito do denunciante contra o denunciado há de ser apreciado no plano da responsabilidade decorrente da culpa ou do dolo, descabe a denunciação, posto que não se pode obrigar a parte autora a submeter-se ao elastério probatório necessário à apuração da culpa ou do dolo do denunciado. Seria um atentado ao princípio da economia processual, com manifesto prejuízo, ante o retardamento da entrega da prestação jurisdicional. A farda é a marca ostensiva do estado, fazendo transbordar a condição de agente da autoridade pública do policial. Daí, sem relevância jurídica a argumentação de que o policial militar, embora fardado, não se encontrava na escala de serviço. É que o policial identifica-se e impõe-se perante o particular pela farda que ostenta. Mesmo nos seus dias de folga, está sempre à disposição de seus superiores ou da população para atender a certas emergências. Não se exige que o servidor público tenha agido no exercício de suas funções, mas nessa qualidade. Em face da presunção de segurança que um policial, fardado e armado, proporciona, o estado é responsável se o agente, em se aproveitando dessa aparência, produz dano em particular (PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS). (Classe do Processo : APELAÇÃO CÍVEL E REMESSA DE OFÍCIO APC5216999 DF Registro do Acórdão Número 127500 Data de Julgamento 04/05/2000 Órgão Julgador: 2ª Turma CívelRelator ROMÃO C. OLIVEIRA Publicação no DJU: 02/08/2000.)

Esse entendimento acarreta em conclusões, em alguns casos absurdas, porque o agente policial pode atuar com interesse pessoal; porém se encontrar-se fardado, o Estado será o responsável por seus atos.

Com relação à arma de fogo do agente policial pertencer à instituição policial e se encontrar fardado em período de folga, na Apelação Cível nº 3574995 do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, não se mostra condição para se responsabilizar o Estado, porquanto foi analisado o contexto fático do evento danoso, ou seja, verificado se o agente policial agiu na qualidade de agente público.

EMENTA

TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO INAPLICÁVEL. MILITAR QUE COMETE CRIME DURANTE PERÍODO DE FOLGA.

Policial que, fardado e portando arma de fogo da corporação, pratica homicídio enquanto estava de folga. Hipótese em que a pessoa jurídica de direito público não se responsabiliza pelo ato praticado, uma vez que o agente não cometeu o crime na qualidade de policial. Apelação improvida. (APC3574995, Relator LUIZ CLAUDIO ABREU, 1ª Turma Cível, julgado em 11/09/1995, DJ 04/10/1995 p. 14.319.)

Em análise à matéria, o escritor Yussef Said Cahali: "em linha de princípio, entregando o Estado ao policial uma arma de fogo, responde a entidade pública pelos disparos por ele direcionados ou acidentais causadores do dano ao particular".

1.2.O agente policial em serviço

Esse instituto é verificado em outros ramos do Direito, como no direito do trabalho e nos servidores públicos e empregados públicos em sentido amplo. Todavia, quando se trata dos agentes policias, a situação é peculiar, porquanto o agente policial (civil e militar), quando identificado, representa a figura estatal independentemente de estar de serviço ou não, ou seja, as pessoas não conhecem a organização administrativa para saber se o agente policial está escalado (policial militar) ou está no plano de chamada (policial civil).

Assim, o cidadão diante de uma situação de perigo irá solicitar o auxílio do agente policial. Entretanto, entender que o agente policial quando identificado está de serviço pode levar a conclusões absurdas, bem como acreditar que o policial em serviço agiu sempre no interesse público.

Para compreender a matéria, é importante ao menos delinear o instituto; assim, o entendimento de Themístocles Brandão Cavalcanti sobre o que seja exercício de suas funções:

"Para que a responsabilidade do Estado cubra o ato do funcionário é preciso estabelecer a relação entre o ato e o serviço; em outras palavras, que tenha sido o ato praticado para o serviço ou, pelo menos, durante o serviço; daí a fórmula conhecida- no exercício de suas funções".

Sobre o assunto, serve de auxílio a Lei nº. 10.486/02 que dispõe sobre a remuneração dos militares do Distrito Federal, a qual prevê no artigo 24 a distinção do agente policial militar em serviço ou na manutenção da ordem e segurança para fins de reforma:

"Art. 24. O militar incapacitado terá seus proventos calculados sobre o soldo integral do posto ou graduação em que foi reformado, na forma da legislação em vigor e os adicionais e auxílios a que fizer jus, quando reformado pelos seguintes motivos:

I - ferimento recebido em serviço ou na manutenção da ordem e segurança pública ou por enfermidade contraída nessa situação ou que nelas tenha sua causa eficiente;

II - acidente em serviço;"

Verifica-se que o preceito legal acima diferencia o policial agir em serviço ou na manutenção da ordem e segurança pública. Assim, deve-se analisar o mesmo entendimento para se responsabilizar o Estado.

Importante, também, o Parecer nº 007/2002 – SPJ/Corregedoria Geral da Polícia Militar do Distrito Federal:

"O policial militar que, mesmo de folga, férias, etc, interfere em ocorrência policial militar, o faz impelido por uma obrigação ética e moral que lhe é imposta por ocasião da sua formação militar na caserna, como também, e principalmente, pelo dever legal que lhe impõe o art. 243, do CPPM e art. 301 do CPP".

Portanto, não é o simples uso da farda pelo policial militar que caracteriza a qualidade de agente público, isto é, o exercício da função, bem como não é a ausência dessa que exclui a hipótese de estar sendo exercida conduta estatal.

Desse modo, não obstante o referido parecer ter abordado o agente policial militar, tal entendimento deve abranger os agentes de todas as forças policiais do artigo 144 da Constituição Federal de 1988, de modo que o agente policial de folga, mas na manutenção da ordem e segurança pública, ou seja, na qualidade de agente público, que atue por força do artigo 301 do Código de Processo Penal ou na qualidade de agente público e realize conduta ilícita, deverá o Estado ser responsabilizado pelos atos.

Entretanto, deixadas de lado as divergências acerca das expressões, é importante analisar se o agente policial atuou com interesse público, independentemente de estar fardado, uniformizado, de folga ou em serviço.

No acórdão abaixo transcrito, as expressões em serviço e no exercício da função são consideradas sinônimas. A decisão assevera que, salvo nos casos de excludentes, não há como isentar a responsabilidade do Poder Público pela ação dos agentes policiais.

EMENTA

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POLICIAL MILITAR DISPARO DE ARMA DE FOGO RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO DANO MORAL INDENIZAÇÃO POR MORTE DO CONJUGE INDENIZAÇÃO DEVIDA A FILHO MENOR

Ação Ordinária. Indenização a vítima de mulher baleada por policiais militares, na janela de sua casa, durante tiroteio com marginais. A teoria da responsabilidade objetiva por risco administrativo, não admite a exclusão da responsabilidade do Estado, por ato de seus funcionários, no exercício das funções, senão por culpa da vitima (art. 37, parag. 6., da Carta Magna), o que não ocorreu na hipótese. E' justa a fixação de cerca de 150 Salários Mínimos, a titulo de dano moral, para cada um dos autores, marido e filhos da vítima, sendo até ridícula a fixação de 25 Salários Mínimos apenas. Por não ser o normal nas famílias pobres, nem estar provada sua afirmação, não ha' como condenar o Estado em adquirir sepultura para a vitima. E' justo estender a pensão aos dependentes da vitima, ate' vinte e quatro anos de idade, considerando suas atividades escolares. Não responde o réu por 13. Salário, se não provada a atividade trabalhista da vitima. Provimento parcial do primeiro apelo e provimento ao segundo recurso. (GAS) Ementa dos Embargos de Declaração providos parcialmente. Embargos Declaratórios. Omissão do acórdão. A ementa não e' parte integrante da conclusão do acórdão, sendo apenas síntese de suas razoes, tornando-se irrelevante, assim, que se refira à cerca de 150 Salários Mínimos (e não 450 Salários Mínimos) quando a conclusão fala em valor expresso em reais. Se a esposa-vítima do ilícito colaborava com as despesas da casa, e' justo que o cônjuge remanescente, com dois filhos menores para criar, receba pensionamento durante a sobrevida provável daquela, estimada em 65 anos. Em famílias de baixa renda, não é comum à contratação de empregada, constituindo-se enriquecimento sem causa a fixação de indenização para tal fim. Embargos parcialmente providos. (1996.001.04799 – APELAÇÂO CÍVEL/TJERJ DES. JORGE MAGALHAES Julgamento: 26/03/1997 DÉCIMA CÂMARA CÍVEL.)

Conclusão

A pacificação do entendimento sobre a responsabilidade do Estado na atuação do agente policial irá propiciar mais segurança para toda a sociedade, porquanto o policial mesmo no período de folga não hesitará em agir, pois terá certeza que estará amparado pela figura Estatal. Além disso, também terceiros prejudicados por ação ou omissão ilícitas dos agentes policiais na qualidade de agente público terão como ter seus prejuízos ressarcidos pelo Estado, que tem mais condições econômicas do que o agente público.

CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do estado. 1ª. ed. São Paulo: RT, 1982, p. 13.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 530.

MUKAI, Toshio. Direito administrativo sistematizado. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 527-528.

CAVALCANTI, Amaro. Responsabilidade civil do estado. vol. I. Rio de Janeiro: Borsói, 1957, p. 388.

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CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 8 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001, p. 418-419.

CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do estado. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 111.

ALVES, Vilson Rodrigues. Responsabilidade civil do estado por atos dos agentes dos poderes legislativo, executivo e judiciário. Tomo I. São Paulo: Bookseller, 2001, p. 120.

CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 524.

CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do estado. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 524.

CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do estado. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 524.

Ibidem. p. 522.

Apud CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do estado. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 105. CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Tratado de direito administrativo. vol. I. 3. ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1955, s. p.

LEI Nº. 10.486, de 04.07.02. Dispõe sobre a remuneração dos militares e dá outras providências. DOU de 04.07/02.

CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do estado