Canônicos e deuterocanônicos: diferenças que não separam

Faremos, a seguir, algumas considerações a respeito da diferença entre o cânon católico e “evangélico” ou protestante. Isso se faz necessário para entendermos o porquê da versão da bíblia usada pela Igreja Católica ser diferente da usada pelas Igrejas que surgiram a partir da Reforma Protestante. Notando, entretanto, que essa diferença não nos afasta, mas explicita problemas históricos que podem e devem ser compreendidos para gerar boa convivência.

1- Sete a mais ou a menos?

A primeira diferença entre as duas tradições se refere à quantidade de livros. Sobre a quantidade de livros o site “Catolicismo Romano” faz o seguinte comentário:

Há diferentes bíblias cristãs. O número de livros depende da tradição a qual uma versão se apoia. Para os católicos a Bíblia é composta de 73 livros, sendo 46 do Antigo Testamento e 27 do Novo. A Bíblia dos protestantes tem, invés, 66 livros: 39 do Antigo e 27 do Novo Testamento. (2017. Grifos no original)

Como se pode perceber a diferença reside apenas nos escritos do antigo testamento. E no antigo testamento é onde se localiza nossa questão sobre os “livros históricos”, sendo que na bíblia católica existem quatro livros históricos a mais que na tradição protestante. Ou seja: dos sete livros que aparecem a mais na bíblia católica quatro deles fazem parte dos livros históricos: Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus.

Os outros livros que aparecem na bíblia católica, mas não se encontram na versão protestante são dois escritos sapienciais: Sabedoria e Eclesiástico (ou Sirácida) e um profético: Baruc. Além disso existem divergências em relação alguns trechos de Ester e Daniel (Ester 10,4-16; Daniel 3,24-20; 13-14).

Há, algumas diferenças no conjunto de livros usados pelos católicos e pelos protestantes. Mas, vale notar, trata-se de uma diferença mínima: sete livros. Há, portanto, muito mais a nos unir do que a nos separar. Na contagem geral aparecem sete livros a mais na bíblia católica e sete a menos na versão evangélica. A diferença é de sete, a proximidade corresponde a sessenta e seis. Ou seja, o que temos em comum é muito mais.

Pode-se ressaltar, além disso, que em algumas edições protestantes aparece, como apêndice os livros Deuterocanônicos que, de acordo com Lutero: “podem ser lidos com proveito”.


2- Os Deuterocanônicos

Esses sete livros foram produzidos tardiamente em relação ao cânon e por esse motivo são denominados de “deuterocanônicos”, ou seja, escritos que foram incorporados posteriormente ao cânon. Alguns estudiosos dizem que esses escritos apareceram entre os séculos IV e II aC.

Por quê existe essa diferença? Essa deve ser a pergunta que muitos se fazem. A resposta, embora simples, depende da compreensão de vários séculos de história.

Os hebreus/judeus, ao longo de sua existência como povo, produziram inúmeros escritos sobre sua história, sobre sua fé e sobre a relação de sua fé com sua história. Ao longo desses séculos de história os judeus se espalharam por várias regiões, produziram textos em diversas línguas, sempre alimentando sua fé e preservando sua história/cultura. Chegou um momento em que havia muita coisa escrita e, consequentemente, muita divergência a respeito de sua propriedade para o uso litúrgico. Dessa forma, de acordo com Michuta (2012), no final do século I da era cristã (a partir do ano 70, na escola de Jâmnia, cidade próxima de Jerusalém) os rabinos passaram a discutir essa problemática, procurado uma solução para essa diversidade.

Uma das preocupações dos rabinos era a manutenção do culto e com isso a preservação de sua identidade político-religiosa. Sendo assim, podemos supor que os membros da comunidade de Jâmnia dessem preferência aos textos que valorizassem esse principio. Pode-se supor, além disso, que dessem preferência aos textos hebraicos e não aos produzidos a partir de outras culturas, como os textos gregos, de redação mais recente. Entre esses textos estavam os sete escritos que chamamos de “deuterocanônicos”.

Num artigo disponível no site abiblia.org Luiz da Rosa (2005) explica essa diferença e a formação do cânon, dizendo que:

Os judeus tinham uma coleção de livros que eles sustentavam serem inspirados por Deus e nos quais viam a expressão da vontade divina, uma regra de fé e de prática. […]. Esses livros incluem todos os nossos livros protocanônicos. Os livros eram distribuídos entre três divisões: Lei, Profetas e Escritos. Essa divisão parece testemunhar a crença numa cronologia dos escritos. […] Podemos concluir que o grupo [dos escritos] se formou entre o século IV e o fim do século II. (ROSA 2005)

A igreja cristã, primitiva, utilizou-se dos mesmos escritos sagrados dos judeus. Mas também utilizou os escritos que os judeus não haviam incluído em seu cânon, justamente os textos gregos, entre eles os nossos Deuterocanônicos. Como diz Luiz da Rosa (2005): “A Igreja Cristã se desenvolveu no ambiente da Diáspora. Na prática, a Bíblia da Igreja foi a Bíblia grega”.

A versão grega (textos hebraicos traduzidos para o grego e livros produzidos em grego) era usada pelos judeus da Diáspora e passou a ser a base de escritos sagrados usados pela igreja primitiva. Essa pode ser apontada como uma das características da Igreja nascente, sua identidade e mecanismo de separação do judaísmo. Ainda sobre a formação do cânon cristão o mesmo Luiz da Rosa (2017) faz o seguinte comentário, sintetizando todo esse processo:

O Antigo Testamento tem uma história própria. A lista dos livros que o compõe foi definida pela comunidade dos judeus certamente no final do primeiro século, quando havia uma grande tensão com os cristãos, comunidade que estava nascendo. Os cristãos também se apoiavam nos mesmos livros usados pelos judeus, afinal os primeiros cristãos eram judeus. Existem 7 livros do Antigo Testamento que foram escritos em grego e todos os outros em hebraico. Temos evidências que esses livros eram usados no tempo de Cristo. Todavia, provavelmente para marcar a diferença entre os dois grupos, os judeus decidiram aceitar em sua lista apenas os livros escritos em hebraico, excluindo do cânon os 7 livros escritos em grego. Os cristãos, todavia, continuaram aceitando esses livros na própria lista, até o período da Reforma, quando não foram mais aceitos pelos Protestantes. É por isso que a Bíblia católica tem 73 livros enquanto que a evangélica tem 66. (ROSA 2017)


 

3- “Úteis e bons para leitura”

No movimento da reforma, Lutero traduziu a Bíblia para o alemão. Na ocasião, justamente para caracterizar a ruptura com a Igreja católica, utilizou a bíblia dos judeus. Entretanto se ao fazer sua tradução Lutero não acolheu os escritos deuterocanônicos como inspirados, também mas não os desprezou. Esses escritos foram inseridos à parte, com uma observação do próprio Lutero dizendo que não são escritos inspirados, mas que podem ser lidos com proveito.

De acordo com dom Estêvão Bettencourt (2017), Lutero tinha consciência de que os deuterocanônicos “faziam parte de todos os códices das Sagradas Escrituras” e, por esse motivo quando fez a tradução da bíblia para o alemão:

não se pôde furtar à conveniência de os traduzir como os demais livros sagrados. Os deuterocanônicos, portanto, estão incluídos na edição germânica da Bíblia que Lutero deu ao público em 1534, com o título «Bíblia, das ist die gantze Heilige Schrift deutsch» (Wittenberg), isto é, «Bíblia, ou seja, a Sagrada Escritura inteira traduzida». O tradutor, porém, colocou-os no fim do volume, fazendo a observação prévia: «Apokrypha, das sind Bücher, so nicht der heiligen Schrift gleich gehalten, und doch nützlich und gut zu lesen sind», isto é, «Apócrifos, ou seja, livros não equiparados à Sagrada Escritura, mas úteis e bons para a leitura». (BETTENCOURT, 2017)

A decisão de excluir os deuterocanônicos, como se nota, não foi de Lutero, mas dos protestantes posteriores. Entretanto, do ponto de vista católico, a definição do cânon não ocorreu de forma definitiva e nos primeiros anos, mas no concílio de Trento, depois confirmado pelo I concílio do Vaticano:

A controvérsia e as divergências teológicas acerca do Cânone, enfatizando perspectivas diferentes na compreensão do conceito de revelação, refletiram-se, ao longo da história do Cristianismo, na flutuação entre uma lista curta (cânone judaico) e uma lista longa (cânone alexandrino), arrastando-se até 1546 a.D., onde no concílio de Trento a decisão tomada privilegiou o cânone alexandrino que inclui os livros deuterocanônicos. Esta mesma decisão acabaria por ser ratificada, no ano 1870 a.D., no concílio Vaticano I. [...]

De uma maneira geral o mundo protestante acabou por rejeitar os livros deuterocanônicos na lista dos livros considerados inspirados, optando antes pelo cânone judaico. (COIMBRA, 2011, p. 215)


 

4- Uma questão de escolha

É fato que toda escolha depende dos motivos que nos levam a fazer essa escolha. É, portanto, compreensível que os cristãos da reforma, posteriores a Lutero, tenham suprimido os deuterocanônicos. Afinal de contas, aquele era um momento para se demarcar território definindo as diferenças e nesse processo esta sendo sedimentados os elementos da separação.

Mas também é compreensível que nos dias atuais nos façamos a seguinte pergunta: onde pode nos levar a leitura da palavra de Deus a partir dessas diferenças? Será que não seria mais acertado caminhar com aquilo que nos une ao invés de brigar pelo que nos separa? Talvez seja interessante observar a lição dos anciãos de israel que procuraram Davi. Mesmo Davi tendo sido perseguido por Saul (cf. 1 Sm 19), quando foi procurado pelos anciões foi capaz de unir-se a eles pelo bem de Israel (cf. 1Cr 11,1-3).

Não podemos negar as divergências. Mas insistir nelas é o mesmo que perseverar e manter o Cristo dividido, condenado por Paulo (1 Cor 1,10-17). E no caso dos livros históricos, a bíblia católica tem a mais os livros: Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus. Mas, como já vimos, são doze os livros comuns: Josué, Juízes, Rute, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis, 1 e 2 Crônicas, Esdras, Neemias e Ester.

Assumir esta ou aquela postura em relação a este ou aquele escrito bíblico é uma questão de escolha eclesial. Mas não deixa de ser, também, uma questão pessoal. Além disso, e sem a mínima intenção de menosprezar ou relativizar a palavra de Deus, precisamos e podemos ter certeza de que Deus não depende da bíblia para se comunicar conosco! Somos nós, e não Deus, que dependemos dos escritos sagrados para ouvir a mensagem divina.


 

Referências

A BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1985

CARNEIRO, Neri P. Tudo é história. Disponível em: https://www.webartigos.com/artigos/tudo-e-historia/147511. Acesso em 6/7/2017.

CATOLICISMO Romano: Quantos livros tem a bíblia católica? Disponível em: http://www.catolicismoromano.com.br/content/view/5802/29/

COIMBRA, Humberto. O cânone bíblico: introdução à História da sua formação. In: CADMO - Centro de História da Universidade de Lisboa. Lisboa: V. 22. 2011. p. 205-223 Disponível em: <https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/33016/1/Cadmo22_artigo13.pdf?ln=pt-pt> Acesso em 26/07/2017

MICHUTA, Gary. Existiu um concílio de Jâmnia? in. Apologistas Católicos. Postado em 30 de dezembro de 2012. Disponível em: <http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/deuterocanonicos/553-existiu-um-concilio-de-jamnia> acesso em 20/07/2017

ROSA, Luiz da. O Cânon bíblico. In: abiblia.org. Postado em 13 de dezembro de 2005. disponível em: <http://www.abiblia.org/ver.php?id=1171&id_autor=2&id_utente=&caso=artigos> acessado em: 25/07/2017

ROSA, Luiz da. Existe algum órgão fiscalizador, entidade ou sociedade dos livros que comprove que a bíblia foi escrita há tanto tempo assim?. In: abiblia.org. Postado em 25 de julho de 2005. disponível em: <http://www.abiblia.org/ver.php?id=9952> acessado em 27/07/2017

 

Neri de Paula Carneiro

Mestre em educação, filósofo, teólogo, historiador

Rolim de Moura - RO