"Aqueles que passam por nós não vão sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós".(Exupéry)

Outro dia me perguntaram qual foi o acontecimento mais engraçado e qual o mais triste que vivi durante os quase dezoito anos em que fui professor.Foram muitas e muitas as situações engraçadas, respondi. Ainda bem que colecionei muito mais risos do que lágrimas durante as quase duas décadas, no magistério.
Risos e lágrimas... Emoções que temperam a vida daqueles que abraçaram o sacerdócio de ensinar. Quem é professor, sabe do que estou falando.
Mas a pergunta me pegou desprevenido, e um nó me subiu à garganta quando, como que num "flash", me lembrei de uma segunda feira de junho de 1992, lá em São José do Rio Preto. O acontecimento que narro a seguir, deixou sulcos profundos em minha lembrança. É sempre o primeiro do qual me lembro.

_ Bom dia, pessoal.
A frase sempre continuava com "Por favor, cada um coloque a sua carteira no devido lugar, sente-se e fique quietinho".
Não precisou. O silêncio da 6ª série A naquela manhã, me surpreendeu. Era o dia da última prova de História, do semestre, e dentro de alguns dias já estaríamos de férias. Mas senti que não era a prova o motivo do silêncio. Pensei: alguém chamou o professor Gilvan e a turma levou um belo sabão. Resolvi aproveitar o momento e deixei para perguntar o que estava acontecendo, depois, para não agitar o "caldeirão".
Abri meu diário e comecei a fazer a chamada, até que chegou a vez do Fábio. O Márcio e a "galerinha" responderam por ele:
_ Professor, o Fábio morreu!
Essa frase "ele morreu" fazia parte de uma brincadeira entre eles. Quando alguém chegava por último, ou não conseguia fazer o gol estando "de frente pro crime" ou quando alguém demorava a responder a uma pergunta na sala de aula, lá vinha o coro: " ele morreu, fessor!"
O Fábio era um menino magrinho, moreno, de olhos negros, cabelos crespos e maneiras gentis. Era muito calmo, mesmo quando alguém colocava o pé para ele tropeçar no corredor. Ele "catava graveto" e ria junto com os colegas. Algumas vezes tínhamos que protegê-lo dos mais atrevidos. Era um menino muito querido por todos nós.
Sem pensar e até achando um pouco engraçado, respondi:
_ De novo o Fábio faltou no dia da prova?
_ Não, professor, ele morreu!
_ Não tem problema, ele faz a prova outro dia, no período da tarde.
_ Mas, professor Carlos, o Fábio morreu!
Olhei para a carteira do lado direito, mais ou menos no meio da fila. Sobre o tampo, algumas flores amarelas que cresciam no terreno baldio ao lado do colégio. Havia também bilhetinhos carinhosos de despedida, feitos com todo o esmero. Peguei um deles para ler e num instante cheguei a pensar que eu mesmo é que estava sendo vítima de uma pegadinha da turma. Afinal, não seria a primeira vez!
_"Professor Carlos, por favor"... Era a secretária do colégio. Percebi que ela havia chorado muito e fazia um grande esforço para se controlar e me dar a notícia.
_Professor Carlos, o Fábio e um de seus irmãos, faleceram. A mãe deles também. O motorista deve ter dormido ao volante e também morreu. O carro bateu numa árvore quando estavam quase chegando aqui em Rio Preto. O menor está no hospital. Quase não se machucou, mas está em choque.
Ela continuava falando comigo quando uma onda de choque me atingiu. Um baque nos ouvidos me deixou subitamente surdo, atônito. Sentei-me à mesa e uma aluninha, aos soluços, me perguntou:
_ Professor, e a prova?
Aquela bola na garganta me permitiu apenas dizer um quase inaudível "não".
É isso: quando se está rodeado por crianças de doze anos de idade, a gente corre o risco de ter as cargas das canetas, invertidas. Eles gostam de bagunça, guerra de bolinha de papel, guerra de canudinho (que nojo!), pipoca, coca-cola, batuque na carteira do fundo, menino descalço olhando para o tênis pendurado na árvore. Foge à lógica chorar pela ausência súbita de um deles.
À tarde, minha esposa e eu fomos ao velório onde uma mãe e dois filhos dormiam lado a lado. Eu não pude mais ver o rosto do Fábio e dizer que ele deveria fazer a prova de História outro dia, no horário da tarde.

A carteira vazia do lado direito, no meio da fila, me fez, várias vezes, ficar voltado para a lousa escrevendo um pouco mais devagar.
A morte do Fábio me fez refletir numa frase: "nossos dias são como as estrelas cadentes. Mal as vemos enquanto passam; deixam depois que passam um sulco indelével na memória".
Quando olho pelo "retrovisor", vejo uma legião de ex - alunos... Eles continuam sendo meus alunos! Eu os tenho bem guardados na memória e no coração.