"Quando Cabral descobriu no Brasil
O caminho das Índias
Falou ao Pero Vaz para Caminha
Escrever para o Rei
Que terra linda assim não há
Com tico-ticos no fubá (...)"
(Rita Lee e Roberto de Carvalho)

OLIVEIRA JÚNIOR, Paulo Cavalcante de. Negócios de Trapaça: Caminhos e descaminhos na América portuguesa (1700 ? 1750). São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2002. 2v. il.

Pensar nos "descaminhos" do Brasil colônia da primeira metade do século XVIII - principalmente no Rio de Janeiro ? de uma maneira ao mesmo tempo acadêmica e também com um sutil humor, é o que Paulo Cavalcante fez com maestria em sua tese de doutorado publicada nesse livro.
É uma pesquisa calcada em vários documentos, usados como fontes primárias, Documentos oficiais, comunicações epistolares entre Colônia e Metrópole e entre Governadores, recolhidas no IHGB, na Biblioteca Nacional, no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e também no Arquivo Nacional de Lisboa.
Calcado nesses documentos e dialogando teoricamente com historiadores marxistas como Caio Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré, Fernando Novais, Edward Thompson, entre outros e sociólogos como Max Weber, Paulo Cavalcante mostra que o Brasil do século XVIII caminhou pelos "descaminhos" e que sem tais práticas "ilícitas" ? que eram de conhecimento geral ? fizeram o Brasil caminhar comercialmente e economicamente.

Paulo Cavalcante de Oliveira Júnior é formado em História pela UERJ, titulou-se Mestre em História Social pela UFRJ e Doutor em História Social pela USP. É diretor de Pós- Graduação da UNIRIO. Há uma curiosidade em seu currículo, por pouco Paulo Cavalcante não se torna médico, graduação que interrompeu na UFF em 1983.

A descoberta do ouro no final do século XVII foi um fator preponderante para a expansão da América portuguesa no início do século XVIII, embora a princípio a Coroa não desse a devida dimensão para a recente descoberta. Mas vai logo em seguida procurar controlar o fluxo dessa nova riqueza, assim como o vai e vem de pessoas ? escravos, libertos, religiosos, portugueses, nativos, etc. ? tentando instituir um sistema tributário, e que, no caso do ouro foi cambiante e modificado ao longo dos tempos.
Nesse contexto o contrabando, não só de escravos, mas de produtos como o sal, o fumo, a aguardente, o açúcar e agora o ouro ? primeiramente em pó, depois em forma de cordões e moedas (falsificadas) ? é só mais uma "atividade ilícita" e imiscuída no contexto da economia da América portuguesa.
A pressão maior e determinante para a intensificação dos descaminhos na América portuguesa durante a primeira metade do século XVII constitui-se a partir da tributação e dos rigores administrativos aplicados à extração de ouro e diamantes. (p.08)
Cavalcante ressalta ao longo da introdução de sua tese que o "descaminhador" ás vezes é quem era nomeado para combater os descaminhos e também havia governadores descaminhadores e membros do clero ? que não era submetido à justiça secular ? e que no combate aos descaminhos destacava-se a figura do governador Luís Vahia Monteiro.
É lembrado inclusive um clichê popular que pode ser aplicado à época e também aos tempos coevos que no Brasil há leis que "pegam" e leis que simplesmente são ignoradas e não saem do papel.
No primeiro capítulo Paulo Cavalcante descreve os descaminhos e seu contexto das oficinas dos quintos à cunhagem de moedas e que começa com a criação das casas de fundição, pra derreter o ouro que saía em pó e retirar o tributo que cabia ao Estado, só que a cada forma de controle introduzida era quase instantaneamente forjado um jeito de burlá-la. Mesmo ineficientes, essas manufaturas eram consideradas a forma mais eficaz de fugir do descaminho.
Surgem as fábricas de cordões, que aparentemente usados como meros adornos, era um meio de se livrar do quinto real. Esse descaminho foi comunicado à Corte pelo então governador Artur de Sá e Meneses.
Entremeando a invasão da Alemanha por tropas francesas e o Tratado de Ryswick, os navios portugueses ? por Portugal ser considerado uma nação neutra ? freqüentavam os portos Ingleses e Franceses, trazendo tabaco, laranjas, sal açúcar e madeiras brasileiras e também ouro oficial e ouro "descaminhado."
"Contrabando e descaminho existem no seio dessa ordem de interesses, constituem a outra face do lucro do exclusivo metropolitano". (p.40)
A indistinção entre o público e o privado favorecia esse tipo de atividade,aqui chamada por Cavalcante não de roubo ou contrabando, mas de uma "prática social encoberta pelas formalidades oficiais." (p.42)
Há todo tipo de "descaminho", não só nas casas clandestinas, mas também nas "oficiais" de fundição ? onde por muitas vezes os ofício de fundidor e ensaiador não eram bem definidos - chegando até a ser quase anedótica a forma de se evitar falsificações de moedas que serviam mais como um "incentivo" à falsificação.
Outro fato importante é que mesmo mercadores franceses não estando diretamente ligados ao processo de desvio, é considerável a presença de ouro das Minas em circulação na nação gaulesa. Parte desse ouro entrou na França através do excedente comercial entre Portugal e Inglaterra. O ouro encontrado na frança tinha um alto teor de paládio.
O segundo capítulo intitulado Os caminhos da terra e os descaminhos das gentes, começa afirmando que toda vereda aberta, toda expansão bandeirante só foi possível devido à convivência violenta e dura escravidão empreendida aos nativos que contribuiu em grande escala para dizimar a maioria dos índios.
Aqui são apresentados os caminhos e os percalços e intercorrências que os viajantes experimentavam percorrendo esses caminhos terrestres e fluviais em um movimento promovido conforme os hábitos e passos indígenas.
Natureza e índios impunham-se como códigos cuja decifração parcial realizou-se ao longo do processo que formou o prático do sertão, o sertanista, o bandeirante ou, como diziam os jesuítas das missões do Guairá, "los portugueses de San Pablo". (p. 82)
Era preciso um novo caminho de Minas para o Rio de Janeiro. Donos de terra comerciantes e coroa uniram-se para descobrir e abrir este novo caminho ? mais rápido e mais rentável ? só que os particulares não pagaram quando o caminho ficou pronto. O novo caminho facilitava o transporte da produção das minas através de um acesso mais rápido a alguns portos fluminenses, em especial o porto da Estrela.
Além do caminho antigo e do caminho novo havia uma terceira via, a dos currais de São Francisco usada por excelência para o contrabando. E para tentar conter a combinação caminho e descaminho, foi proibido a abertura de novas veredas nas matas, pois apesar de melhorar o escoamento da produção aurífera, a manutenção e a fiscalização dessas novas picadas dependia dos roceiros e das paróquias ? que como é demonstrado mais adiante eram veículos para o descaminho.
Roceiros e clérigos facilitavam os descaminhos, mas não estavam sozinhos nessa "contravenção". Os guardas responsáveis pela fiscalização, faziam novos descaminhos com o ouro apreendido de outros descaminhadores. Há até um curioso caso das barras de ouro do Tesouro do Mato Grosso que simplesmente se esvaíram sem chegar a Lisboa e o Governador do Rio de Janeiro Gomes Freire atribuiu ? em epístola enviada ao Conselho Ultramarino ? a culpa por tal sumiço aos cupins.
Um personagem importante e que é citado em todo restante da obra é o Governador do Rio de Janeiro Luís Vahia Monteiro que tentava destrinchar e eliminar toda rede de descaminhos, uma tarefa inglória e que nem usando artifícios até pouco éticos como a violação de correspondências não obteve sucesso.
A confluência dos descaminhos : o circuito do mar é o tema abordado no terceiro capítulo, e que começa com a chegada a minas do bibliotecário de el-rei Martinho de Mendonça de Pina e Proença que chega com a missão de implementar um novo método para a arrecadação dos quintos reais pois os descaminhos cresciam na mesma proporção que a descobertas de novas fontes de ouro e diamantes.
A justiça em um ambiente tão convidativo à desordem era praticada na medida do possível e era recomendado o perdão a criminosos que descobrissem ouro ou que apesar de terem participado, denunciassem descaminhos. Eram usados também espiões e informações privilegiadas eram compradas.
O tabaco é citado como a principal moeda de troca no tráfico negreiro, apesar de sua baixa qualidade. A Bahia, por sua condição privilegiada, fez a ligação direta entre Salvador e os portos africanos excluindo Lisboa da rota negreira o que segundo Verger foi o embrião das desavenças que resultaram na independência do Brasil.
"(...) contrabando e descaminhos surgem como parte indissociável desse processo de "formação do Brasil no Atlântico Sul", formação essa visceralmente implicada com os "circuitos africanos de troca". (p. 139-140)
Aparece outro grande descaminho que é o comércio com a Costa da Mina e que avisado dessas subversões pelo governador anterior Luís Vahia, apontava a ligação por terra e com a via marítima através do porto de Parati e com o porto de Salvador através dos currais de São Francisco. Há também a evasão através de Pernanmbuco para todos os portos da América chegando até São Tomé e Cabo Verde.
Há a formação de várias "companhias de contrabando" com membros residindo não só no Brasil ou em Portugal, mas até na Inglaterra e a dificuldade em combater os descaminhos era tão drástica que a coroa chegou ao cúmulo de entregar a responsabilidade pelo combate a tão ilícita atividade ao seu provável beneficiário. Era dar "banana aos macacos". Todo e qualquer tipo de tributo ? quintos e afins e até os dízimos ? eram descaminhados.
A conflituosa gestão de Luís Vahia Monteiro; entre o controle total e o governo possível, mostra a luta incessante e incansável do então governador da província do Rio de janeiro contra os descaminhos e seus artífices.
O porto do Rio de Janeiro era a principal via de saída de metais preciosos para a Europa e a entrada de produtos trazidos pelas tropas também era uma via de comércio negreiro onde escravos eram trocados por ouro em pó, aguardente e como em Salvador por tabaco.
Vahia mantém uma correspondência epistolar com diversos setores, principalmente com o secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte Real expondo sua luta no combate aos descaminhos. Combate esse cada vez mais difícil pois entre os envolvidos em tão bem armada fraude estavam os mais variados tipos de homens, dos mais variados segmentos da sociedade.
Os beneditinos ? que não respondiam à justiça comum e sim ao foro eclesiástico ? não só facilitavam a saída de ouro descaminhado com também escondiam em seu mosteiro descaminhadores, que ali estavam seguros, pois não era permitido invadir o monastério. Na primeira metade do século XVIII, todas as ordens religiosas instaladas no Brasil tiveram um período de grande crescimento econômico.
Vahia Monteiro não teve só problemas com as ordens religiosas, mas também com a Câmara, onde queria tirar desta instituição a administração dos contratos, incluídos aí os do vinho e da aguardente. Não eram transparentes as transações monetárias da câmara, não se sabia de fato o que entrava na fazenda real e o que saía da câmara. E o saldo final do combate é a tentativa de superposição do governador ao poderes da câmara e uma batalha por tributos na qual não houve um absoluto vencedor e todos foram vencedores e vencidos guardadas as devidas proporções.
Percebe-se neste capítulo que com descaminhadores distribuídos em todos os setores, inclusive no administrativo, que combater os descaminhos não era uma prioridade da coroa portuguesa, que via no descaminho, um outro caminho e por isso as denúncias e ações de Luís Vahia Monteiro não encontravam eco às vezes.
"E aqui se apresentam os dois limites extremos do poder do Estado: o risco de sublevação e o prejuízo ao comércio." (p.228)
"De certa maneira, foi assim que a coroa portuguesa encarou o problema, reconhecendo a sua incapacidade para eliminá-lo, a impossibilidade de um controle total." (p. 232)
Vahia Monteiro adoece e posteriormente falece antes de ser enviado de volta a Portugal e sua viúva reivindica posteriormente as propinas que eram devidas a Vahia e a abertura de uma devassa por conta do furto dos papéis de seu falecido marido.
Paulo Cavalcante consegue em sua obra nos mostrar um novo manancial de objetos a pesquisar na América portuguesa. Brilhantemente nos foi mostrado que caminhamos pelos "descaminhos" e que sem eles a economia colonial seria até por não dizer inviável.
Com o já referido sutil toque de humor que começa a se mostrar já no título Negócios de Trapaça, a obra vai mostrando todas as mazelas e os ditos e interditos na administração colonial. Somos apresentados a uma vasta gama de dados e informações que trazem uma nova visão sobre o ciclo do ouro, mais humana e menos "maquiada" do que era o comércio aurífero na América portuguesa.
Negócios de Trapaça é um livro que após sua leitura desperta um interesse por pesquisar e descobrir outras faces não apresentadas pela "história oficial" do período colonial. Indubitavelmente é uma obra ímpar e de admirável pioneirismo.