Calibre Corpus – ou Do Valor e Da Extensão[1]

 

Para esta crônica, apraz-me a oportunidade de refletir por meio de verdades comparadas, isto é: Quero comparar a verdade bíblica na filosófica. Em momento posterior, espero ainda inquirir a razão de ambas na atualidade do hipotético comportamento humano. Para tal propósito, creio que seja de bons modos iniciar este raciocínio – demasiado confuso e equívoco tal como todos os que, enquanto crônica, refleti - a partir de duas citações: 1- “Então disse Deus: ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança’ (...) ‘Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher’”[2] (Gênesis 1, 26-27 - )[3]; 2- “O homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são por aquilo que são e daquelas que não são por aquilo que não são”[4] (Protágoras)[5].

Partindo da hipótese de que o significado de toda e qualquer sentença situa-se na própria sentença[6], diremos que o pensamento expresso na primeira configura considerável oposição à segunda, de sorte que são logicamente incompatíveis. Assumindo como mecanismo de nossa reflexão o princípio do terceiro excluído segundo o qual a coisa é ou não é, averigüemos inicialmente aquela proposição que fora a primeira na ordem de minha listagem. Gostaria de começar declarando que procederei não a partir de uma leitura ilustrativa, tal como reivindica-nos Carreira das Neves, mas literal da mesma, ao modo de Saramago.

Quando nos é proferido “Então disse Deus (...)”, podemos, com efeito, perguntar: Disse para quem? Haveria então alguém junto a Deus e que não teria sido por ele criado? Mas isto equivale a ignorar a possibilidade de qualquer entidade capaz de linguagem refletir em alta voz, é dizer: quando alguém profere um pensamento, tal ato não necessariamente é destinado a alguém. Todavia, se da citação acima não se pode extrair tal conclusão ou pergunta, da continuação desta retiramos a legitimidade outrora ausente: “Façamos (...)”. Este termo sugere-me, ao menos a princípio, a existência de outra entidade – divina ou não já não o sei – que auxiliaria o onipotente em sua atividade produtiva de seres, em princípio, inferiores em natureza e condição.

Estes são os homens, seres feitos “à nossa imagem e semelhança’ (...) ‘Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher’”. Quem são as entidades que correspondem ao termo “nossa”? O que está por de traz da palavra, por hora, tão aparentemente confusa e injustificada, quando a leitura é literal e em conta levamos toda a fábula bíblica da citação? Se não buscarmos agir por conveniência, se nos permitirmos a lógica como parâmetro de adequação da vontade e do ato, teremos de prontamente admitir a ocorrência de uma entidade outra situada antes do tempo e do espaço; ao lado do senhor que pode, por ventura, nunca ser teu Deus. Que genealogia esta entidade além-Deus possui para com este próprio? Filha ou Filho; Esposa ou Esposo; talvez amante; um amigo, quem sabe?

Para todos os fins, passemos adiante. Quando digo: “este é homem”, como verificar se o é? Pela fisionomia – ou ainda: disposição dos elementos da sensibilidade; configuração objetiva ou fenômeno pura e simplesmente – não o poderia mais do que por meio de sua sexualidade, ou ainda, pela presença do órgão sexual masculino. O contrário disto, direi mulher; a união de ambos, andrógino; para sua ausência usemos o conceito “anjo”. Se afirmo que meu filho parece-se comigo, o faço por considerar primeiramente sua sexualidade, depois o restante de sua aparência. Em caso oposto, direi não meu filho, mas filha, andrógino ou anjo. Portanto, “criou (o) homem à sua imagem [e semelhança]” quase reivindica a Deus a posse do modelo divino correspondente ao sexo; escapando Deus de ser andrógino apenas porquanto o enunciado em questão não assevera semelhança da mulher ao mesmo. De onde o sexo da mulher? Seria da suposta outra entidade?

Depois desta modesta análise, indago-lhe: qual o sentido do vocábulo “façamos” na expressão divina “Então disse Deus: ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança’ (...) ‘Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher’”? Tratar-se-á de um fazer puramente artístico, de como quando se é pintor escolhendo as cores da imagem por sobre a tela? Ou ao menos supõe um fazer sexual onde homem e mulher são o resultado último de um zigoto divino? Dito de outro modo e substituindo todas estas perguntas por uma de equivalente acepção: Deus teria feito sexo? Envaidecido, teria até proibido aos homens e mulheres daqui o prazer que encontraram lá, tal como o ciúme e egoísmo impedem o relacionamento a três ou mais; as entidades superiores tomaram posse do amor; e o quiseram só para si.

Do observado, reconhecemos que, segundo a voz do primeiro enunciado, o homem é a imagem e semelhança de Deus. As conseqüências retroativas desta asseveração creio terem sido, para uma ínfima crônica como esta, suficientemente exploradas. Passemos agora ao segundo, aquele que é considerado puramente filosófico e atribuído à pessoa de Protágoras, o sofista do período Helênico: “O homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são por aquilo que são e daquelas que não são por aquilo que não são”. É relevante salientar que a compreensão precisa e vigorosa ou mesmo incerta e tíbia deste pensamento não se me apresenta como possível, dado que muito do que conhecemos sobre este suposto sofista nos é apresentado sob a óptica de três principais hipóteses na pressuposição do tempo e do espaço: Platão, Aristóteles e Sexto Empírico.

A compreensão destes acerca do enunciado filosófico em questão parece, sob o ponto de vista de Dumont, em certa medida, divergir da interpretação de alguns intelectuais mais recentes, cita-nos como exemplo E. Zeller. Cumprida com esta cautelosa admoestação, para as finalidades então assumidas por minha pessoa nesta crônica, assumirei a interpretação daqueles e não deste último, para quem o homem de quem fala Protágoras seria não outra coisa senão o homem em sentido transcendental – uma proposta semelhante temos o juízo de gosto e de conhecimento em Kant –. Portanto, o sentido atribuído à expressão “o homem” reza aqui sua individualidade e relativismo.

De onde o relativismo? Esta é a pergunta por cuja resposta procurarei e da qual penso obter o que preciso para expor algumas inviabilidades lógicas do seu contrário e com isto justificar o comportamento do cidadão brasileiro, ao passo que também este serve-me como munição argumentativa para a conclusão que ei de satirizar saborosamente! Tal relativismo é oriundo de uma interpretação – equivocada ou não – segundo a qual o homem é a medida de todas as coisas pela razão de que o fenômeno, enquanto percepção – outra coisa não poderia ser –, processa-se não apenas do mundo ao homem, mas deste àquele. Não estando nada para além desta condição, basta que parte do homem seja impressa no mundo para que o fenômeno daí resultante seja relativo a cada qual.

Deste modo, o critério mais rigoroso de definição das coisas que são e que não são é o ser e o não-ser para o homem enquanto medida. Assim, temos que, a fortiori, concluir que não há espaço para uma verdade ou falsidade absoluta, um ser e um não-ser com idêntica qualidade e pretensão. Os candidatos a coisas da sensibilidade o são por meio desta mesma sensibilidade, que projeta no mundo uma qualidade puramente humana; as digitais da percepção do espírito, que, quando somadas às causas do mundo, apresentam-me o objeto como síntese. Somemos agora a tudo isto a superpotencialização das capacidades humanas, tal como sugerido pelo filósofo escocês David Hume em Uma Investigação Acerca Do Entendimento Humano, seção II[7].

Desta atitude de multiplicar ao infinito aquilo que é do homem, retiramos o amor humano e o amor de Deus; a sabedoria humana e a onisciência de Deus; a bondade humana e a bondade de Deus; a presença humana e a onipresença de Deus; a força humana e a onipotência de Deus (...), e em uma mistura contemporânea – mas nem tanto – de deuses gregos com o deus cristão, retiramos a modesta raiva dos homens e a imperiosa ira de Deus; o ciúme e inveja dos homens e a inveja e ciúme de Deus; o belo rosto dos homens e a fulgência da face de Deus. Só não multiplicaram a proporção do pênis: eis o do homem, de onde surgiu teu filho; eis o de Deus, de onde surgiu o Universo Inteiro – M31, VyCma, Titanic, jubarte, macaco, homem e, incluso, o filho do homem.

Agora que estamos em posse da compreensão de que o Big Bang não passou de ejaculação divina, caminhemos rumo ao fim desta “lambreca” pontuando as últimas questões para uma consideração final de tudo. Ontem, dia 06 de janeiro de 2012, às 09h e 10min, o endereço eletrônico “ http:// www.band.com.br/ noticias/ mundo/ noticia/ ?id=100000478319 ”  trazia-nos uma reportagem segundo a qual, na Suécia, um estudante de filosofia de 19 anos, então denominado de Isak Gerson, havia instituído uma nova congregação religiosa formalmente reconhecida pelo governo, a saber: a “Igreja do Kopimismo”, que não outra coisa prega senão o direito religioso de Ctrl + C, Ctrl + V (copiar, colar). Brincadeira ou não, vejo aí o desvelamento de uma resposta ao problema.

Somente no Brasil temos de Igrejas Evangélicas: Igreja Adventista do Sétimo Dia; Igreja Anglicana; Igreja Batista; Igreja Batista do Calvário; Igreja Calvinista; Igreja Episcopal Apostólica; Igreja Episcopal Reformada; Igreja Evangélica Congregacional do Brasil; Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil;  Igreja Evangélica Luterana do Brasil;  Igreja Metodista;  Igreja Presbiteriana do Brasil;  Igreja Presbiteriana Independente do Brasil;  Igreja Presbiteriana Unida do Brasil. Não bastasse, ainda temos aquelas nada criminosas: Assembléia de Deus; Congregação Cristã no Brasil; Exército de Salvação; Igreja Batista Aliança; Igreja Batista Independente; Igreja Cristocêntrica - Casa de Oração; Igreja de Nova Vida; Igreja do Evangelho Quadrangular; Igreja Metodista Wesleyana; Igreja Pentecostal Brasil para Cristo; Igreja Pentecostal Deus é Amor; Igreja Sara Nossa Terra; e (quase inequivocamente), aquela que jamais poderia estar ausente: Igreja Universal do Reino de Deus .

Para a completude desta lista, cito a Católica e suas festividades pagãs como forma de conciliar a religião cristã à cultura e costumes locais[8]; por alto, todas as ramificações do Budismo[9], Taoísmo[10], Hinduísmo, Xintoísmo, Confucionismo, Wicca, Xamanismo, Seicho-No-le, Fé Bahá´í entre outras tantas que me fazem perder o fôlego e calar a voz. Qual o significado de tudo isto? 1- Um Homem feito à imagem e semelhança de Deus, ou 2- um deus feito à imagem e semelhança das necessidades e aflições hipoteticamente comuns de cada parcela de homem? Somos nós uma extensão da vontade destes deuses todos; ou cada deus listado um apêndice de nosso espírito angustiado por respostas nunca obtidas, razão de nossa limitação por perguntas não muito claras? Fato é que hoje existe um Deus para quem tem cabelos longos e para quem os tem curtos; para negros e para brancos; para ricos e pobres – sob a óptica do autor desta crônica: homens e mulheres de uma humanidade sem deus.

Minha opinião? Suponho que a hipotética humanidade nasceu crendo; aprendeu que poderia caminhar melhor nesta vida a partir disto; descobriu que se valer do ato puro e simples de crer como um modo de articular interesses é bastante eficaz: garante a paz e o sono dos teus filhos – darwinismo social parece-me uma justificativa formidável, apesar de não conveniente a muitos – ; agora é só escolher sua religião! Tem de todos os tamanhos, conforme a inconformidade e audácia do espírito de cada um. Nesta história de buscar um deus que caiba em nossos intentos, até eu que sou ateu tenho divindade feita especialmente para mim: O deus Inane! Meu Grau máximo de excitação na cópula carnal, com satisfação plena do meu desejo venéreo... e sem pecado.

 

Autor: David Guarniery

Idade: 26 anos

Início: 15:00

Término: 20:56

Tempo Gasto: 5h e 56 min

Dia: Sábado

Data: 07 de janeiro de 2012

Obra: Metáforas da Liberdade

Classificação: Crônica

In Memoriam:

*Ozanam Medeiro Moreira

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Brasil/ Paraná/ Cambé



[1] την αξία και την έκταση.

[2]ואז אלוהים אמר, תן לנו להפוך את האדם בצלמו וכדמותו שלנו. אלוהים ברא את האדם בצלמו, שנברא בצלםאלוהים ברא את האדם והאישה.

(A escrita em Hebraico se processa da direita para a esquerda. Não dispondo de recursos para tal, escrevi da esquerda para a direita, tal como o sistema da língua portuguesa determina) Exemplo de outra tradução, cito: “‘E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança (...) E criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou” (Gênesis 1, 26-27).

[3] Também expresso em:Gênesis 5, 1-2 / Mateus 19, 4 / Marcos 10, 6 / Coríntios 11, 7.

[4] Ο άνθρωπος είναι το μέτρο όλων των πραγμάτων, αυτά που είναι για αυτό που είναι και εκείνα που δεν είναι για αυτό που δεν είναι. Exemplo de outra tradução, cito: “O homem é a medida de todas as coisas, da existência dos existentes e da não-existência dos não-existentes” (Jean-Paul Dumont em Dicionário dos Filósofos, de Denis Huisman).

[5] REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia – Antigüidade e Idade Média. São Paulo: Editora Paulus 2005, p. 76-78.

[6] Esta questão esclarecida torna-se apenas sob a luz de minha própria teoria. Como aqui não me é propósito versar sobre a mesma, tampouco o caso de insistir com breve ilustração da referida, digo apenas que suponho eu ter ciência do problema da significação; bem com limito-me à afirmação sem maiores esclarecimentos.

[7] Na supracitada: “A idéia de Deus, significando o Ser infinitamente inteligente, sábio e bom, nasce da reflexão sobre as operações de nosso próprio espírito, quando aumentamos indefinidamente as qualidades de bondade e de sabedoria” (5º parágrafo).

[8] Para mais detalhes desta exposição, ler O Que Jesus Disse? O Que Jesus Não Disse? – Quem Mudou A Bíblia E Por quê?; Quem Jesus Foi? Quem Jesus Não Foi?, ambas as obras de autoria de Bart D. Ehrman. Também sugiro assistir ao documentário denominado Zeitgeist, onde processa-se uma investigação mitológica, social, cultural, histórica e astronômica da formação da idéia de deus ou divindade.

[9] Theravada; Soka Gakkai; Terra Pura; Gelupa; Agon Shu; Zen Budismo; Nova Tradição Kadampa; Honmon Butsuryu Shu; Ekayana Tendai Hokke; Mahayana; Tantrica. Para uma compreensão do processo histórico evolutivo do Budismo no mundo, ler Budismo: O Primeiro Milênio; O Budismo Na China de Daisaku Ikeda.

[10] Para uma introdução e compreensão geral das religiões, sugiro O Livro das Religiões, de Victor Hellern e companhia; bem como a enciclopédia de 5 volumes intitulada História das Crenças e Idéias Religiosas, de Mirceade Eliade.