CALAMIDADE PÚBLICA OU AUSÊNCIA DE GOVERNABILIDADE?


Ao ser instado a apresentar, com seriedade, um artigo jurídico-político e crítico, envolvendo questões de governabilidade, senti a considerável responsabilidade dessa experiência intelectual, que é no fundo, uma aventura, tanto mais arriscada, quanto múltiplas são as tentações e as mazelas atuais às quais nos estão sendo impostas, porém, sempre fui impulsionada aos desafios, tanto que, este modesto artigo, remeteu-me a refletir sobre Democracia e efetividade de um Estado Democrático, quiçá, um dia, organizado e estudado o tema, certamente, poderei escrever com a seriedade exigida.

Parece-me sólida, tanto quanto intrigante, a indagação: - Calamidade Pública ou Ausência de governabilidade, isso porque, estamos sofrendo a fúria (como prefere os ambientalistas e religiosos) da natureza, particularmente, prefiro denominar como reação a uma ação ou omissão pública; pois iniciamos 2011, com o avassalamento das torrenciais chuvas, que provocaram uma das maiores catástrofes naturais do mundo; ocorrida na região serrana do 1Rio de Janeiro, com aproximadamente, 846 (oitocentos e quarenta e seis) mortes, não foi apenas o citado Estado-membro, que vem sofrendo com as chuvas, São Paulo registrou 23 (vinte e três) casos de óbito e a cidade de Franco da Rocha ficou isolada; Minas Gerais decretou situação de emergência para 70 (setenta) cidades e, recentemente, Santa Catarina computou 100 (mortes).

Bem! Não obsto a "fúria" da natureza, tão pouco, que os fenômenos ambientais configuram fatos de força maior, supervenientes, entretanto, longe estão de ser catalogados como imprevisíveis, sempre me curvando aos que defendem o contrário, tenho que a responsabilidade estatal é objetiva, pois a conduta fora omissiva, tendo o Estado (União, Estados-membros, DF e Municípios) o dever constitucional de ação, sendo mais do que um simples dever, um verdadeiro mandado constitucional.
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1Fonte de Pesquisa: A mesma cena e cada vez mais dor sob os destroços. Isto é. São Paulo, ano 35, nº. 2149, p. 46, 19 jan/2011.

A inércia estatal não pode ser aplacada pela teoria privada dos atos e fatos jurídicos de força maior e/ou força da natureza, inoperantes frente aos efeitos jurídicos produzidos pela omissão estatal.

Ora, os registros históricos, informam que catástrofes como essas, ocorreram, exemplificativamente, em 1966 (Rio de Janeiro ? 250 mortes), 1967 (Rio de Janeiro ? 300 mortes), 1967 (São Paulo ? 436 mortes), 1974 (Santa Catarina ? 199 mortes), 1983 (Santa Catarina ? 49 mortes), 1988 (Rio de Janeiro ? 184 mortes), 2001 (Rio de Janeiro ? 60 mortes); 2008 (Santa Catarina ? 133 mortes), 2009 (São Paulo ? 29 mortes) e 2010 (Rio de Janeiro ? 256 mortes), 2010 (Pernambuco e Alagoas ? 41 mortes), logo, não há como isentar o Estado de sua responsabilidade objetiva, no campo do direito privado tem-se:


"Art. 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo".


Referida norma infraconstitucional é apenas a reprodução de preceito constitucional de conteúdo obrigatório, inserto no artigo 37, §6º, afirmando a responsabilidade do Estado, que por intermédio de seus representantes, ainda que com culpa, provocaram danos à coletividade, pois têm o dever constitucional de agir.

São previsíveis as chuvas, a degradação do solo é perceptível, o desgaste ambiental é sensitível, portanto, compete aos Administradores Públicos, que assumiram o munus público, zelar pelo bem comum, adotando atos de governabilidade, agindo como Chefes de Poderes, injustificáveis a ausência de fiscalização e planos de contingência, a ocupação irregular das encostas, a falta de zoneamento e planos diretores eficazes, estudos sobre a pluviosidade das regiões e as composições dos solos, o mapeamento de áreas de risco, a inexistência de educação ambiental, a falta de seriedade com obras de saneamento básico, o descaso com as áreas de preservação permanente, a inexistência de desassoreamento dos rios e a falha na repartição de receitas tributárias, vinculadas à realização de tais atos.

A imputação de responsabilidade ao Estado tem amparo constitucional, o argumento de que as execuções de tais atos se sujeitam ao princípio da reserva do financeiramente possível, não pode ser aceito como defesa à contumácia estatal.

Os direitos ao meio ambiente, à moradia, assistência aos desamparados, embora sejam de segunda geração, constituindo 2normas de conteúdo programático, não se sujeitam à arbitrariedade. O administrador não tem discricionariedade, para deliberar sobre a oportunidade e conveniência de implementação de políticas públicas, discriminadas na ordem social constitucional, mormente, quando urgentes, pois tal restou deliberado pelo Constituinte e pelo legislador que editou as normas de integração.

A discricionariedade conferida ao Poder Público não pode afrontar a constituição, sob pena de atentar contra o próprio Estado Democrático de Direito.

Saliente-se, não se ignora que, a efetivação dos direitos sociais subordina-se ao inescapável vínculo financeiro, ou seja, às possibilidades orçamentárias do Estado, daí, competir ao Administrador Público, detentor dos encargos de que se tornou depositário, por efeito de expressa determinação constitucional, a realização de atos de gestão, de planejamento, adoção de medidas educativas, preventivas e fiscalizatórias, a pactuação de parcerias, convênios, a interação entre os entes federativos, a fomentação de orçamentos participativos, a melhor distribuição das receitas tributárias, enfim, a observância das competências constitucionais, inseridas nos artigos 21, 22, 23, 24 e 30.

Por oportuno e corroborando as argumentações aqui lançadas, não posso deixar de mencionar o Min. Celso de Melo, que em brilhante magistério, cuja oportunidade ímpar me foi conferida a assisti-lo, no julgamento do Recurso Extraordinário 482.611, proveniente de Santa Catarina, declarou:
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2 Normas de conteúdo programático: São normas constitucionais que veiculam políticas públicas.

"O fato inquestionável é um só: a inércia estatal em tornar efetivas as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela Constituição e configura comportamento que revela um incompreensível sentimento de desapreço pela autoridade, pelo valor e pelo alto significado de que se reveste a Constituição da República. Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem
a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos".

Assim, entendo, por isso mesmo, que se revela acolhível à imputação de responsabilidade objetiva ao Estado (União, Estados-membros e Municípios), pela catástrofe assistida, notadamente, em face de sua omissão inconstitucional.

Uma vez consumado os danos irreparáveis e/ou de difícil reparação, o Estado decreta calamidade pública, permitindo a dispensa de licitação, art. 24, IV, da Lei nº. 8.666/93, para execução de obras, contratações, remoções e aquisições; editam-se medidas provisórias, nos termos dos artigos 62, §2º, 154, II, da Constituição Federal, abrem-se créditos orçamentários suplementares, como se estas medidas caracterizassem a pronta e preparada atuação governamental, a "verdadeira" concretização do princípio da eficiência, determinado no artigo 37, caput, da Carta Política, quando, ao revés, presencia-se o desrespeito com a Ordem Constitucional, o enfraquecimento do Estado Democrático de Direito.

Isso posto, calamidade pública, sim, mas, originada pela ausência de governabilidade, na típica hipótese de omissão inconstitucional, resultando no descomprometimento do núcleo básico, que qualifica o mínimo existencial da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, artigo 1º, III, da Magna Carta.

Entretanto, apenas um fato, nesse triste cenário, deve ser enaltecido, qual seja a solidariedade do Povo Brasileiro, que chora as suas mortes e ao mesmo tempo, em meio aos destroços, comemora a vida, ou pelo menos, o que dela restou!


São Paulo, 28 de janeiro de 2011.


Patrícia da Conceição Pires
Advogada e Professora
Ex-Assessora Jurídica do Município de Itapecerica da Serra
Especialista em Direito Constitucional e Administrativo
Especialista em Direito Processual Civil




BIBLIOGRAFIA:

A mesma cena e cada vez mais dor sob os destroços. Isto é. São Paulo, ano 35, nº. 2149, p. 46, 19 jan/2011.

Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei nº. 10.406, de 10.01.2002: contém o Código Civil de 1916/coordenador Cezar Peluso. 4 ed. rev. e atual. São Paulo: Manole, 2010.

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