Buscando Estrelas


Era conhecida como Ritinha sonhadora. Moça bonita, no auge da juventude, encantos naturais que fascinavam os homens e causava inveja nas mulheres. Mas parecia não se dar conta disso. Todo o dia de manhã ia até a padaria onde comprava um litro de leite e cinco pães e voltava pra casa cantarolando, totalmente alheia ao fato de que chamava tanto a atenção.
Ritinha era diferente das outras meninas de sua idade que só pensavam em arrumar namorado ou então trabalhar para ter seu próprio dinheiro, às vezes sua mãe até chegava a ficar brava dizendo que ficaria encalhada se não mudasse seu comportamento, mas isso pouco importava, pois Ritinha tinha bem definido o que queria fazer de sua vida.
Durante horas ela ficava debruçada sobre livros e mais livros; aquele era seu mundo, não havia limites, ela poderia ser o que quisesse, ser quem quisesse. Fadas, duendes, dragões, príncipes, reis, assassinos e detetives, tudo aquilo fazia mais sentido para ela do que os noticiários de jornais onde só havia o bandido e nunca o mocinho; onde só havia os dragões e nenhum caçador.
Assim era a vida de Ritinha: de manhã os afazeres de casa, à tarde ia para a escola e nos momentos de intervalo entre uma coisa e outra, sua principal atividade era descobrir os vários mundos novos que estavam ali, bem ao seu alcance, bastava que virasse uma página.
Seu pai chegou a pensar em levá-la a um psiquiatra mas, ao ver a satisfação estampada nos rosto da menina a cada novo livro que ganhava o fez refletir e chegar à conclusão de que aquilo só podia ser uma coisa boa, além do quê, a estava tirando das más amizades e dos riscos de um namoro inconseqüente.
Foi num domingo que algo diferente aconteceu. Como fazia sempre, Ritinha e seus pais foram à missa, depois compraram um frango assado no açougue da esquina e voltaram pra casa, onde fizeram a farta refeição do dia sagrado, com direito à macarronada e batata frita. Depois do almoço, ela sequer esperou a digestão e já estava em seu quarto com um livro aberto.
Foi quando um vento forte abriu a janela de seu quarto causando um grande tumulto e derrubando vários objetos, então uma luz de brilho intenso invadiu o seu quarto, cegando-a temporariamente. Por mais estranho que parecesse, Ritinha não estava assustada e, devagar se aproximou da janela. O que viu fez com que seu coração disparasse: um lindo bosque com uma grama tão uniforme que mais parecia um tapete gigantesco, havia também uma cachoeira linda com água cristalina caindo de uma grande altura e ao redor havia o canto dos pássaros. Ela não teve dúvidas, sequer pensou em deixar recado para a mãe e, num instante, já estava fazendo parte daquela paisagem que mais parecia uma pintura. Aquele lugar era incrível, parecia um sonho. Tentou elaborar algumas teorias que como aquilo era possível, mas achou que não valeria a pena.
Deu alguns passos inseguros, como que para se adaptar ao lugar, havia um cheiro de folhas de eucalipto no ar e ela se sentiu insustentavelmente feliz como nunca havia lhe ocorrido antes. Sentiu vontade de correr como uma criança e o fez, deixou de lado toda a timidez que as pessoas carregam consigo e rolou pela grama, saiu pulando e cantando em direção à cachoeira.

Olhou para trás em direção à sua janela, porém não a viu mais. Ficou um pouco apreensiva, afinal como faria para voltar? Mas a sensação de angústia logo passou e ela voltou a se sentir feliz por estar ali, naquele lugar tão belo. Continuou a caminhar, sem direção, mas a cada vez que sua visão ia se descortinando a paisagem que surgia era ainda mais encantadora, seus olhos podiam vislumbrar uma cadeia de montanhas cobertas por uma vegetação rala, alternando infinitos tons de verde, era sem dúvida a vista mais linda que já havia visto.
De repente um som lhe chamou a atenção: eram cavalos e eram muitos, parecia uma tropa. Num movimento instintivo ela procurou algum lugar para se esconder, desajeitadamente se encolheu atrás de uma árvore bem fina e ficou torcendo para que eles passassem por ali sem percebê-la.
Nem todos os livros que já havia lido poderiam tê-la preparado para aquela cena que estava vendo: um exército gigante de cavaleiros vestidos à época medieval, com armaduras e espadas, ostentando um enorme estandarte com um símbolo de um grande dragão vermelho. Estavam concentrados e não havia outro som que não fosse os cascos dos cavalos batendo no chão.
Ritinha sequer piscava, sua cabeça estava a mil, tentava de todas as formas imaginar o que aquilo significava, onde estava ou quem seriam aqueles homens. Sentiu suas pernas formigarem devido à posição desajeitada em que se encontrava, na tentativa de se ajeitar, ela se apoiou no galho da árvore, que era muito fino e não suportou o seu peso, deixando-a exposta diante daquele poderoso exército.
Os homens pararam na hora e viraram-se para ela, continuavam em silêncio porém seus olhares agora demonstravam certa apreensão, como se temessem por alguma coisa, ou como se algum segredo estivesse prestes a ser revelado.
Diante daquela situação, Ritinha não conseguia sequer esboçar reação, não sabia o que dizer, aliás, não sabia nem se deveria dizer alguma coisa. Foi quando um dos cavaleiros se adiantou e seguiu em sua direção. Parou o cavalo a poucos metros diante dela e desceu.
Ela o observava encantada. Com medo, mas encantada. Não sabia onde estava e nem o que estava acontecendo, mas aquele homem diante dela tinha uma expressão tão marcante e exercia um fascínio que chegava a dar medo. Era belo e forte e suas vestimentas não deixavam dúvidas: era um cavaleiro da idade média, tinha certeza disso. Mas ? ela se perguntava ? o que eu estou fazendo diante de um cavaleiro? Como vim parar aqui?
- Quem é você?
A voz do homem era mais marcante que seu olhar, seus gestos e postura completavam a perfeição daquele ser humano ímpar, Ritinha jamais vira um homem tão perfeito nem nos seus mais remotos sonhos.
- Já não sei mais ? respondeu ela usando todas suas forças na tentativa de estabelecer um diálogo normal na mais anormal das situações.
- Está perdida?
- Acho que sim, não sei como vim parar aqui.
- Suas roupas são estranhas, não me parece que você seja dessa região ou até mesmo desse país.
- De fato não sou. Pra falar a verdade não sei nem que lugar é esse.
- Você está na Inglaterra e permita que eu me apresente: Arthur a seu dispor.
Foi como se ela levasse um choque: seu coração disparou, as pernas fraquejaram, a boca ficou seca. Era incrível mas ela estava diante do grande rei Arthur, como isso era possível?
- Rita ? conseguiu murmurar.
- Estamos em uma grande e honrada missão, já faz três dias que andamos sem parar e vamos descansar. Esse bosque parece apropriado. Mas não há nenhuma casa ou acampamento há mais de dois dias daqui. Como você veio parar aqui?
- Não sei, eu simplesmente pulei a janela do meu quarto! Ainda estou meio atordoada com tudo isso.
- Somos um grupo de mais de cem homens e nunca tivemos uma mulher na jornada antes, mas acho que você pode nos fazer companhia hoje à noite.
Sem dizer uma palavra, ele fez sinal para os homens para que preparassem o local para descansarem. Ritinha estava impressionada com tamanha disciplina, ninguém questionava e nem havia algazarra e ela se perguntou se o motivo seria ela, talvez eles estivessem acanhados por sua causa.
Mas logo pôde perceber que a causa não era essa, quando o grupo se dispersou ela pôde notar que estavam transportando alguma coisa extremamente importante e valiosa. Um grupo de mais ou menos dez homens continuava montado ao redor do que parecia um enorme baú. Ali ninguém conversava ou desviava o olhar. Aqueles homens eram o exemplo máximo de concentração e ela o exemplo máximo de curiosidade.
Arthur fez uma caminhada ao redor do bosque e depois voltou, conversou com alguns de seus amigos, desembainhou a espada e se livrou da armadura. Parecia tenso e cansado, mas seu olhar demonstrava uma intensa satisfação, como se tivesse acabado de realizar um grande feito.
Todo acampamento havia sido montado no mais absoluto silêncio e no menor espaço de tempo possível, ao término do trabalho, Arthur caminhou em direção à Ritinha e sentou-se ao seu lado como se fosse dizer alguma coisa, mas permaneceu em silêncio por um longo período.
Ritinha, sabendo ser aquela uma oportunidade única, quebrou o silêncio e arriscou uma conversa:
- Desculpe se pareço inconveniente, mas você disse que estava em uma missão.
- Sim.
- Posso saber do que se trata?
Ele a fitou em silêncio, seus olhos penetrantes pareciam ler sua alma e adivinhar todos os seus pensamentos. Somente depois de algum tempo foi que respondeu:
- A senhorita usa termos muito inadequados ao se referir ao seu rei e, é também muito curiosa, seu nome é estranho, suas roupas são estranhas, por que acha que eu responderia a essa pergunta?
Ritinha se sentiu envergonhada por se mostrar tão atirada e por ter sido advertida daquela forma.
- Desculpe ? conseguiu dizer segurando o choro.
- Não se incomode, os protocolos são realmente muito chatos. Mas não posso dizer o que acabei de encontrar. Vivi toda minha vida em busca de um grande tesouro, que poderia ser de grande valor e não deveria nunca cair em mãos erradas. Acostumei-me a procurar e não encontrar, a voltar sempre de mãos vazias para casa, mas com a esperança de sair novamente à procura. Alguns chegaram a me dizer que era sonho e que eu jamais o encontraria, mas eu nunca desisti. Agora, finalmente eu o encontrei. Está comigo e o sentimento que predomina no meu coração é de frustração.
- Não entendo. Deveria estar feliz!
- Mas o que vou fazer agora? Desde pequeno sou movido por essa busca e, agora que ela chegou ao fim, o que vou fazer? Aliás, nem posso tirar proveito do que encontrei, afinal minha missão é escondê-lo em um lugar seguro para que não seja usado nem profanado.
- Espere, pelo que entendi você está frustrado por ter conseguido alcançar o seu objetivo, é isso?
- Acho que pode ser colocado assim.
- Você seria um alvo fácil para editores de livro de auto-ajuda.
- Desculpe-me, mas não entendi.
- Deixe pra lá. Eu tenho alguma habilidade em prever o futuro e vejo que seu nome jamais será esquecido, vejo que você será um grande rei e um grande homem.
- Deixe de brincadeira menina, como pode prever o futuro se mal sabe onde está?
- É muito complicado para que eu explique agora. Mas, em relação ao que você encontrou, por que tem que ser escondido?
- Certos tesouros são tão valorizados que não há dinheiro no mundo que possa pagar. Foi um desses tesouros o que encontrei. Dei minha vida para encontrá-lo e agora darei minha vida para protegê-lo.
- Mas talvez um dia será encontrado por outra pessoa.
- Não! ? sua voz saiu mais forte - Meus homens são honrados e não irão revelar o seu esconderijo.
- Mas os homens são fracos e podem vacilar, ainda mais se tratando de um segredo tão valioso.
- Tem uma coisa que não se compra, menina: a honra de um cavaleiro. O tempo pode passar e corromper as pessoas, mas aqueles que receberem o treinamento com base nos verdadeiros valores, esses não serão corrompidos.
- Eu sei o que você encontrou.
- Nunca foi segredo de ninguém o que eu procurava.
- Como é o Graal?
- Simples. Único. Poderoso. Lindo.
- Realmente tem poderes?
- Acredito nisso. Essa é minha fé.
- Tentou usá-lo?
- Não sou digno.
- E vai abrir mão dele assim, sem sequer ter testado?
- Como assim testado? Não é uma espada que podemos ver se é resistente ou não. Além do mais, não estou abrindo mão de nada, essa busca já foi o meu prêmio; significou para mim o crescimento, me fez homem, me ensinou valores, me pôs em contato com minha essência. A cada noite, sozinho contemplando as estrelas, me encontrava comigo mesmo e aprendia com a natureza que a vida pode ser simples e que a felicidade está ao redor, basta esticar os braços e tocá-la. O meu caminho até o Graal foi mais importante do que encontrá-lo. Fui feliz enquanto tive meu objetivo.
- Mas você acaba de dizer que agora que o encontrou sua vida perdeu o sentido.
- Só me senti assim por alguns instantes, sei que agora meu objetivo será o de protegê-lo, viverei feliz fazendo isso até o último de meus dias.
Ficaram em silêncio por alguns instantes, a noite estava caindo rapidamente e as estrelas do céu estavam brilhantes de uma forma que Ritinha jamais havia visto. Ao longe parecia que uma estrela estava se mexendo, ela fixou o olhar e imaginou ser um avião, mas avião e Arthur não combinavam. A luz parecia ganhar força e se mover com velocidade, logo apareceu outra e mais outra. Arthur se levantou rápido como um gato e puxou sua Excalibur: o acampamento estava sendo atacado.
Centenas de flechas incendiárias rasgavam a escuridão da noite alvejando o acampamento improvisado. Gritos de homens enlouquecidos vinham da escuridão, assustando os cavalos ao mesmo tempo em que os homens de Arthur se uniam para defenderem seu tesouro.
Desesperada e sem saber o que fazer Ritinha, se encolheu atrás da pequena árvore e ficou rezando baixinho enquanto Arthur com toda bravura e coragem do mundo enfrentava os saqueadores brandindo sua Excalibur à luz do luar.
Sem pensar nos riscos, ela se levantou e saiu correndo para longe do confronto, mas, num gesto impensado olhou para trás procurando por Arthur, mas o que viu foi uma chama vindo em sua direção e ganhando velocidade e ficando mais intensa, não havia nada a fazer, ela era o alvo. Fechou os olhos e aguardou o impacto.
Curiosamente não sentiu nada, experimentou abrir os olhos e a claridade ofuscou sua visão. O sol ia alto e invadia seu quarto e Ritinha percebeu que estava debruçada sobre um livro, olhou para o relógio e viu que tinha passado duas horas dormindo.
Levantou-se, o coração ainda acelerado pelo susto de ser atingida por uma flecha.
Começou a se lembrar do que havia acontecido, tudo fora tão real, tão verdadeiro: Arthur, o Graal, Excalibur.
Voltou e pegou o livro que estava lendo: "Arthur ? a busca pelo Graal".
Convenceu-se de que tudo não havia passado de um sonho guiado pelo seu subconsciente, que já estava induzido pelo livro. Mas a partir daquele dia, Ritinha passou a encarar a vida de uma maneira diferente, logo todos perceberam que não era mais a Ritinha sonhadora, agora era uma guerreira com os pés no chão. Sabia o que queria da vida e estava correndo atrás.
Estudou, se formou, se apaixonou, se frustrou. Viveu com intensidade.
Mas nunca, em nenhum momento deixou de pesquisar, estudar e procurar pelo Santo Graal. Quando questionada se aquela obsessão não seria uma perda de tempo ela sorria e simplesmente dizia.
- Não me importa encontrar ou não, para mim já basta estar no caminho, acredito em alguma coisa, tenho um objetivo na vida. E sou feliz na minha busca, não me falta mais nada.
E todas as noites ela fazia questão de ficar na varanda, observando as estrelas e pensando em Arthur.